quarta-feira, 16 de setembro de 2009

OSWALDO PAYÁ - entrevistado pela VEJA

"A oligarquia fidelista prepara-se para se transformar nos ricos do futuro, como ocorreu no Leste europeu"
O homem do pós-Fidel, o mais respeitado dissidente cubano, diz que o fim do comunismo depende apenas do "fatalismo biológico": a morte do ditador.
José Eduardo Barella

Fidel Castro mandou para a cadeia os principais dissidentes de Cuba – mas não prendeu Oswaldo Payá, de 51 anos, o mais conhecido deles. O cuidado se deve ao fato de esse dissidente ser uma celebridade internacional. Só neste ano, ele conversou com o papa no Vaticano, encontrou-se com o secretário de Estado Colin Powell, em Washington, e teve seu nome incluído entre os candidatos ao Prêmio Nobel da Paz. O que faz desse católico praticante, que fundou e dirige o Movimento Cristão Libertação, uma referência para o futuro de Cuba é sua bem articulada proposta de uma transição pacífica para a democracia. Payá é também o mentor do Projeto Varella, o abaixo-assinado pedindo abertura política. Em Havana, onde trabalha como engenheiro de manutenção de equipamentos hospitalares, ele não dá um passo sem ser seguido pela polícia. Mas não se deixa intimidar. Ainda menino, foi o único aluno de sua escola primária que se recusou a entrar para a Juventude Comunista. Adolescente, liderou uma manifestação contra a invasão soviética da Checoslováquia, em 1968. Por isso, passou três anos num campo de trabalhos forçados. Casado e pai de três filhos adolescentes, Payá falou a VEJA, por telefone, de sua casa em Havana.

Veja – Recentemente Fidel Castro prendeu e condenou os principais dissidentes cubanos. Por que o senhor continua solto?
Payá – Ninguém sabe dizer. Como o próprio Fidel Castro já me acusou publicamente de traidor e aliado dos Estados Unidos, acredito que posso ser preso a qualquer momento. A pergunta correta deveria ser por que dezenas de pessoas foram presas e condenadas sem que fossem encontradas com elas bombas nem planos subversivos. O crime delas foi reclamar seus direitos e expressar suas opiniões. Estamos chamando esses ativistas de "prisioneiros da primavera de Cuba". A exemplo do movimento esmagado pelos tanques soviéticos na Checoslováquia em 1968, estamos lutando de modo pacífico por mudanças.

Veja – Vários políticos e intelectuais fora de Cuba, incluindo alguns brasileiros, deram apoio a Fidel depois da prisão de dissidentes e das execuções ordenadas pelo regime cubano. O que o senhor acha disso?
Payá – Esse é um tema espinhoso para nós. O problema é que sempre houve uma grande desinformação sobre a realidade cubana. Todo o bloco soviético, incluindo o governo cubano, foi especialista em lançar uma imagem falsa de nosso país. O mundo sempre viu Cuba como a ilha da liberdade, povoada de líderes revolucionários, legendários e românticos. Tivemos de tudo aqui, menos liberdade e igualdade. Desde o início vigorou um sistema de castas, no qual a palavra de um único homem sempre foi incontestável. Por ter apoiado Fidel, infelizmente, a América Latina tem uma dívida para com os cubanos.

Veja – Por que tão poucos cubanos participam das manifestações contra as prisões?
Payá – Existe uma cultura do medo arraigada em Cuba há décadas. Os indicadores de insatisfação do povo em regimes totalitários não são os mesmos de um país democrático. Não é possível medir o sentimento do povo cubano por seu silêncio diante das condenações. E tampouco pelas praças lotadas nas manifestações convocadas pelo governo. O totalitarismo se expressa por meio de mecanismos de controle que exerce sobre a população. Posso garantir que a maioria dos cubanos rechaça essas condenações. O governo nunca permitiu que o Projeto Varella fosse divulgado nos meios de comunicação oficiais.

Veja – Por que o senhor decidiu organizar o Projeto Varella?
Payá – Porque Cuba precisa de mudanças profundas e pacíficas que sejam realizadas pelos próprios cubanos. Não há Estado de direito em Cuba e isso levou a maioria da população a uma situação de exclusão dentro do próprio país. O regime controla todos os aspectos da vida da população. Se um cubano pode trocar de casa ou de emprego, e o que se pode comprar ou vender – até isso está sob controle. Há uma vigilância completa sobre os cidadãos, o que inibe qualquer possibilidade de crescimento pessoal ou de liberdade individual. O Projeto Varella nasceu para que cada cubano possa recuperar o direito de programar o próprio futuro, sem intervenção do governo.

Veja – O senhor acredita que uma mobilização pacífica seja capaz de provocar a abertura política?
Payá – Sim, pois nosso projeto é apoiado pela Constituição cubana. Há um artigo que diz que, se 10 000 cidadãos apoiarem um projeto de lei, ele deve ser discutido na Assembléia Nacional. O Projeto Varella, que recolheu 11.000 assinaturas, consiste em pedir um referendo para que o povo decida sobre mudanças nas leis para garantir os direitos enunciados na Constituição e que não são respeitados, como os de liberdade de expressão e de associação. O segundo ponto é a libertação dos presos políticos que não tenham atentado contra a vida de ninguém. O terceiro ponto é permitir que os cubanos possuam um negócio próprio. Hoje, os estrangeiros podem ter uma empresa em Cuba, mas esse benefício é proibido aos cubanos. O quarto ponto é que os cubanos possam escolher livremente os deputados à Assembléia Nacional. No sistema atual, 609 candidatos, todos indicados pelo Partido Comunista, concorrem às 609 cadeiras de deputados.

Veja – Se houvesse uma eleição livre hoje, Fidel seria eleito?
Payá – Posso assegurar que não. Por isso o governo não se atreve a aceitar essa possibilidade. É claro que Fidel certamente venceria uma eleição com as regras do atual regime, nesse ambiente de terror. Mas, com liberdade partidária e de escolha, o resultado seria outro. Foi o que aconteceu em outros países socialistas, como a Polônia ou a Romênia. O que temos aqui é um regime que não quer mudar nada e uma população que precisa de todas as mudanças. E não podemos reduzir a discussão em termos de esquerda ou direita. É um erro e um insulto dizer que esse regime é de esquerda. Os homens de esquerda aqui em Cuba estão presos.

Veja – Muitos dizem que uma reforma política só será possível em Cuba após a morte de Fidel Castro. O senhor concorda?
Payá – Sim, é o que chamamos aqui de "fatalismo biológico". É terrível. Quanto mais o tempo passa, mais aumentam as tensões, a pobreza e o poder econômico da oligarquia comunista. Neste momento, ela está se preparando para se transformar nos ricos do futuro, a exemplo do que ocorreu com a classe dirigente em vários países da Europa Oriental no ocaso do comunismo.

Veja – O senhor acha que o regime comunista de Cuba não tem futuro?
Payá – Não. Aliás, não tem sequer presente. O regime não tem mais projeto, exceto o de manter seu poder e seus privilégios. Estamos diante de uma crise insolúvel. É o antagonismo entre os direitos do povo e essa forma absoluta de poder. Se chamam isso de comunismo, não vou discutir a teoria.

Veja – Quais são as medidas mais urgentes para tirar o país da crise econômica e social que ele atravessa?
Payá – É preciso reconhecer que Cuba tem suas particularidades. A produtividade é baixa, assim como os salários, e muito disso decorre da perseguição a muitas atividades e iniciativas individuais. Por outro lado, há uma minoria encastelada no governo e no Partido Comunista que controla toda a atividade econômica, das empresas estatais à cotação do dólar. As primeiras medidas, portanto, devem ser para garantir a sobrevivência da maioria dos cubanos, o que inclui a alimentação. Também é preciso liberar as potencialidades criativas de trabalho e de acesso ao próprio negócio dos cubanos. O país está parado. Os únicos setores em atividade são aqueles que o governo precisa manter funcionando para assegurar a própria sobrevivência. É errado supor que essa revitalização seria o primeiro passo rumo a um amplo programa de privatização, como afirma o governo. Pelo contrário, com mais impostos, haveria mais empregos, produção e condições para o Estado investir nos serviços públicos.

Veja – Como o senhor vai agir, agora que a maioria dos líderes dissidentes está na cadeia?
Payá – Há algo novo, que o medo e o terror não conseguiram paralisar. Muitas pessoas que estavam trabalhando no Projeto Varella já avisaram que pretendem continuar. Outras nos procuraram para dizer que, mais do que nunca, estão dispostas a participar. Os cubanos começaram a abrir os olhos para a falta de liberdade. Muitos que apoiavam o governo perceberam que, ao fazer uma crítica, passaram a ser perseguidos ou excluídos. E, pela primeira vez, a maioria dos exilados em Miami apóia uma solução nascida e desenvolvida em Cuba. O fato de termos tantas adesões mostra que o regime está acabando.

Veja – Os amigos de Fidel dizem que a falta de liberdade é um preço justo que os cubanos pagam para ter sistemas de saúde e de educação gratuitos. O senhor concorda?
Payá – É preciso lembrar que antes da revolução Cuba já tinha um dos melhores serviços de educação e saúde da América Latina, na maior parte geridos por organizações sem fins lucrativos. Com o regime comunista e a ajuda da União Soviética, eles foram ampliados, melhorados e se tornaram gratuitos. O que queremos para o futuro é manter a gratuidade desses sistemas e construir um novo país com todos os direitos. É um mito dizer que, para manter esses serviços, o povo precisa sacrificar tantas liberdades e necessidades materiais. Mesmo porque esses sistemas gratuitos são apenas uma sombra do que foram no passado. Ou seja, não temos mais a excelência desses serviços, tampouco justiça e liberdade. De 1959 para cá, dezenas de países obtiveram avanços no aspecto social sem sacrificar valores como a democracia e os direitos humanos.

Veja – O bloqueio econômico americano atrapalha tanto como Fidel alega ou é apenas uma desculpa para justificar os erros do governo cubano?
Payá – O governo americano decretou o embargo em represália ao confisco de propriedades de cidadãos americanos em Cuba. Só depois disso Cuba se transformou numa peça do jogo estratégico da Guerra Fria. A ajuda soviética fez com que o governo cubano ignorasse o bloqueio americano durante anos. O tema do embargo só foi retomado com o fim da União Soviética. Nunca apoiei o bloqueio ou qualquer outra lei americana como forma de pressionar por mudanças em Cuba. As reformas devem ser discutidas e feitas por cubanos. É claro que o embargo tem sido um recurso político usado pelo regime. Mas é preciso lembrar que, além do embargo americano, há um outro – o do governo cubano contra a própria população do país. Os cubanos não podem viajar, nem fazer negócios livremente com o Brasil, por exemplo. Mas o governo cubano pode. Ou seja, não é correto que estrangeiros tenham direito de montar uma empresa aqui, enquanto os cubanos continuam excluídos desse e de outros direitos em seu próprio país.

Veja – Se os EUA tentassem fazer com Cuba o que fizeram no Iraque, os cubanos lutariam por Fidel?
Payá – Essa pergunta sobrepõe duas realidades que parecem ser a mesma coisa e, na verdade, não são. Uma coisa é Fidel Castro, a outra é o povo cubano. Não queremos intervenção estrangeira, tampouco esse regime que aí está. Também não desejamos escolher entre uma coisa e outra. Já fizemos nossa opção: queremos mudanças, liberdade, democracia, transformações pacíficas e diálogo nacional.

Veja – O senhor tem sido ameaçado pelo regime?
Payá – As ameaças são públicas. O governo se refere ao Projeto Varella como uma manobra bancada pelos Estados Unidos, e a mim como um "líder contra-revolucionário". Há vigilância em redor da minha casa. Chega a ser ridículo. Quando saio de bicicleta, o meio de transporte que costumo usar, sou sempre seguido por uma frota de carros com agentes do governo. Há alguns meses, levei um susto: havia uma ameaça de morte pintada na parede da sala em tinta vermelha, imitando sangue. Também trancaram a porta do lado de fora com pregos.

Veja – Por que o senhor não foi para o exílio?
Payá – Aqui em Cuba não se pergunta por que você vai embora, e sim por que quis ficar. A opção de ficar é de fato um perigo e um sofrimento para minha família. Mas foi aqui que Deus me pôs e meu compromisso é ficar no meu país e com meu povo. Minha fé me sustenta aqui.

VejaO que Fidel Castro teria a aprender com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que sempre foi seu admirador?
Payá – Ele poderia aprender a se submeter a eleições livres com vários candidatos, para que os cubanos tenham a oportunidade que tiveram Lula e o povo brasileiro de exercer a alternância de poder. Se no Brasil existisse um regime como o de Cuba, os brasileiros nunca poderiam ter fundado sindicatos independentes nem ter criado o Partido dos Trabalhadores. Em suma, o governo nunca deixaria que um líder sindical como Lula emergisse e chegasse à Presidência.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A DECLARAÇÃO DE BENGUELA SOBRE AS DEMOLIÇÕES

Os subscritores da “Declaração de Benguela sobre as Demolições” têm pois razão de “pensar que esta onda de desalojamentos forçados pode aumentar e violar os direitos de muitas outras famílias” e, por isto, tomam posição “contra o recurso sistemático a desalojamentos forçados, demolições de casas e expropriação de terras”.
Esta semana tiveram lugar três acontecimentos que prenderam particularmente a minha atenção: a Conferência Internacional sobre a vida e obra de Óscar Ribas, a visita do Presidente Zuma e a Declaração de Benguela sobre as Demolições. Em relação a Óscar Ribas falaremos em texto próprio, na próxima semana. Sobre a visita do Presidente da África de Sul deixo apenas algumas considerações para me poder debruçar com mais amplitude sobre a barbárie das demolições que foi, em Benguela, objecto de uma declaração da sociedade civil.

A visita de Zuma (e da importantíssima delegação que o acompanhou) significa antes de mais que as relações entre os dois Estados, para lá da retórica habitual, entram numa nova era. Esta tem como principal característica a transformação das “boas relações políticas entre as duas lideranças” em projectos de desenvolvimento ou, pelo menos, em frutuosas relações (e acções) de negócios. Revoluto o tempo das simples cumplicidades ideológicas, poderíamos dizer que parece que o novo nome da diplomacia é a economia. Mas, esta visita significa também uma mudança de atitude de ambos os lados que aceitam agora uma liderança conjunta da África Austral, o que pressupõe não mais a rivalidade das “duas potências” por essa liderança. O que permite a entrada a corpo inteiro de Angola na região e um incremento nos planos de desenvolvimento regionais. Possibilita também à África de Sul uma entrada na África Central, pela porta de Angola, onde esta afirma já um lugar de potência regional. É claro que isto significa que os interesses económicos dos grupos de poder, num e noutro país, são agora coincidentes, o que não acontecia antes.

Quanto a “Declaração de Benguela sobre as Demolições” ela é, antes de mais, um sinal de que a sociedade civil angolana quer ter voz própria na senda do desenvolvimento nacional e não quer ser cúmplice da voracidade dos grupos de poder pela especulação imobiliária, denunciando o facto de trinta mil famílias terem sido desalojadas (entre 2001 e 2007) e da ira do camartelo ter demolido três mil casas, o mês passado, no Kilamba Kiaxi, em poucos dias e aos nossos olhos.

Esta declaração é pois uma tomada de posição dos seus subscritores em relação a “recrudescência de desalojamentos forçados já havidos ou anunciados que constituem uma violação dos direitos dos cidadãos a uma vida digna”. É também um veemente protesto contra os desalojamentos perpetrados e a exigência do respeito, pelas instituições do Estado, dos direitos dos cidadãos, nomeadamente à uma habitação condigna, possível no quadro de uma política habitacional participativa, abrangente e que apoie os mais desprovidos de recursos.

A política do camartelo é justificada, pelo discurso oficial, pela necessidade da reconstrução nacional, traduzida em requalificação de espaços, expropriação por utilidade pública, realização do CAN ou implementação de investimentos públicos ou privados. É verdade que cabe ao Governo, nos termos da Constituição, artigo 9º, orientar o desenvolvimento da economia nacional mas tem que o fazer, por força desse articulado, de forma a garantir (1) o crescimento harmonioso das regiões do país, (2) a racional e eficaz utilização dos recursos e capacidades produtivas (do país) e (3) a elevação do bem-estar e da qualidade de vida dos cidadãos”. Isto quer dizer que o desenvolvimento não pode ser senão um desenvolvimento integrado, feito com os cidadãos, sob pena de ser inconstitucional, ilegal e um verdadeiro acto de violência.

A expropriação não pode ser utilizada como um acto arbitrário do Estado. Embora sendo um acto discricionário tem que estar fundada numa razão de interesse público. E, por isto, a expropriação não ser um meio que faça do Estado um instrumento para privilegiar um grupo de cidadãos, em desfavor de outros. As demolições das casas dos moradores dos bairros populares que vão acontecendo ou virão a acontecer por todo o país não podem servir para proporcionar terrenos baratos à especulação imobiliária de qualquer grupo de poder.

Pelo seu teor se percebe que para a “Declaração de Benguela sobre as Demolições” não é o desenvolvimento que é objecto de inquietação mas a forma como são encarados os “futuros grandes investimentos no país, seja para a produção de biocombustíveis, em Malanje, alumínio, em Benguela, prata, no Kwanza-norte, cobre, no Uíge ou urânio, no sul do país”. Se estes investimentos estimulam o crescimento económico e proporcionam a criação tão necessária de empregos, perante uma política despreocupada do Governo de protecção das populações locais, vai seguramente haver um aumento dos confiscos de terras e de desalojados, “sem alternativas nem compensações”.

Os subscritores da “Declaração de Benguela sobre as Demolições” têm pois razão de “pensar que esta onda de desalojamentos forçados pode aumentar e violar os direitos de muitas outras famílias” e, por isto, tomam posição “contra o recurso sistemático a desalojamentos forçados, demolições de casas e expropriação de terras”. E apelam também a criação de “comissões, em cada município, com ampla participação da sociedade civil e representantes de cada bairro e comunidade” que se pronunciaria sobre “os planos de construção, desalojamento e realojamento na área”. Incentivando assim o Governo a colocar “o direito a uma habitação adequada” no centro “da sua política, programas e orçamentos habitacionais, urbanísticos e de utilização do espaço”.

Nelson Pestana (Bonavena)


O MODELO CONSTITUCIONAL DO PRÍNCIPE

José Eduardo dos Santos disse: não vai haver mais eleições presidenciais (nem directas, nem indirectas). O modelo constitucional proposto por ele não é típico, nem atípico, não é próximo, nem distante do sul-africano; é o seu próprio modelo que não é um modelo de eleições presidenciais porque, de facto, acaba com elas.


José Eduardo dos Santos revelou uma nova faceta, na sua longa e cansativa carreira política: a de inventor de modelos políticos. Inventor sim, porque o modelo explicitado não existe em mais parte alguma, é uma verdadeira invenção e merecia figurar no Guiness book.
Uma eleição universal, directa, em que o presidente é cabeça de lista, podendo ser formalizada pela Assembleia Nacional, parece ser um "non sense", qualquer coisa que não faz sentido porque é contraditória nos seus próprios termos. Desde logo, porque não se vota para um órgão uninominal por lista. Mas, passado esse momento de estranheza, compreende-se bem o que José Eduardo dos Santos disse: não vai haver mais eleições presidenciais (nem directas, nem indirectas). O modelo constitucional proposto por ele não é típico, nem atípico, não é próximo, nem distante do sul-africano; é o seu próprio modelo que não tem nada a ver com as eleições presidenciais porque, de facto, acaba com elas.
Uma eleição indirecta (típica) é aquela em que o Presidente da República, em vez de ser eleito directamente pelo conjunto dos cidadãos, é eleito por um colégio eleitoral, previamente escolhido pelos cidadãos. Ao propor aquilo que chamou “eleição indirecta atípica”, ele inventou um modelo político em que não há eleição do Presidente da República. Este passa a ser indicado pelos aparelhos partidários, desde que a sua lista seja vencedora nas eleições legislativas. Este modelo “atípico” que afasta os cidadãos da esfera política e reduz drasticamente a sua soberania, transferindo-a para os aparelhos partidários, surge para confortar a vontade do Príncipe de se ver legitimado retroactivamente, porque foi cabeça de lista do partido vencedor das eleições legislativas de 2008 (daí o empenho na grande batota) e para elidir as eleições presidenciais republicanas que deveriam ter lugar este ano, segundo o compromisso que assumiu com o país, em 2006, reiterado na campanha eleitoral e na sequência, afinal, de muitos outros, também não honrados.
Depois da sua declaração, muitas perguntas se colocaram e outras tantas explicações foram procuradas pelos mais diversos sectores da sociedade. Não faltou quem quisesse saber o que diz a Constituição sobre a matéria. Ora, a Lei Constitucional diz que o Presidente da República deve ser eleito, de cinco em cinco anos, e não pode exercer o poder para lá de quinze anos. O que está aqui em causa é a alternância política mas também evitar-se o poder vitalício, próprio dos poderes absolutos. Então como não vai haver eleições este ano, nem no próximo, nem nos vindouros, vamos continuar com um poder vitalício, ilegítimo, autoritário e corrupto como temos vivido até agora. Com uma diferença, é que a Constituição vai ser reescrita para autorizar todas estas práticas e não será, como todos gostaríamos, o poder a reintegrar a ordem constitucional democrática. Alguns dirão, mas afinal já vivemos essa inconstitucionalidade desde há muito tempo. É verdade, o poder mantêm-se por força do "golpe de Estado permanente", ou seja, governa contra a Constituição e contra a vontade do soberano que é o povo.
A vantagem que o Príncipe vê nisto é a de se perpetuar no poder sem ser submetido ao escrutínio popular. É pois uma machadada na soberania do Povo, nos termos da Constituição, é um verdadeiro recuo no sistema político e no catálogo de direitos e liberdades dos cidadãos. Com este modelo deixa de haver candidatos, e muito menos candidatos independentes, emanados directamente dos cidadãos sem partido, já que não há mais eleição presidencial e toda a vida política passa a estar dependente do espartilho dos aparelhos políticos. Na verdade, um dos objectivos do dito “novo ciclo” político foi o de afastar a política, a escolha, a decisão sobre a res publica dos cidadãos. Em termos analógicos, estamos em presença de um retorno ao partido único que como vanguarda do povo, escolhe sabiamente em seu nome.
A anunciada IIIª República será então uma República das bananas, com toda a Nação submetida aos caprichos de um ditador (e da sua corte) e de um poder sustentado pela fraude e pela violência, num quadro de progressiva contracção económica e grave crise social. O Presidente da República sempre atropelou a Constituição mas desta vez foi longe demais. Isto é uma ofensa a todos nós. Teria sido mais apropriado e melhor para o país anunciar a negociação de uma dinastia que respeitasse a Democracia e a ordem constitucional.

Nelson Pestana (Bonavena)

domingo, 13 de setembro de 2009

UM DISSIDENTE CUBANO DE ESQUERDA

A intervenção cubana, em Angola, tendo por pretexto o combate contra o apartheid sul-africano e a libertação total de África do colonialismo, já “estava preparada há muito tempo, e tinha como objectivo colocar o MPLA no poder”, numa situação de fragilidade que lhes permitiu “levar para Cuba todos os recursos naturais que puderam”, num acto de “pilhagem geral”.

Carlos Moore veio a Luanda para participar da homenagem a Mário Pinto de Andrade, de quem foi amigo, nos idos anos de 1960/70. Ao discursar sobre a grande figura que foi este “intelectual emprestado à política”, logo nas primeiras frases, proferidas de pé, e quase de improviso, incendiou de entusiasmo a plateia do Auditório da Universidade Lusíada de Angola que estava repleto de jovens estudantes que não se cansavam de redobrar as palmas, assobios e a algazarra, para expressarem o seu apoio e contentamento por aquelas palavras.
O “etnólogo e cientista político cubano”, para falar de Mário Pinto de Andrade, de forma viva e fiel à sua memória, quis, desde logo, demarcar-se da “África neocolonial”, dos dirigentes que apenas se interessam pelas riquezas naturais dos países e que não investem no homem africano. Desses dirigentes que se preocupam mais com a pessoalização do poder e com a egomania e nada com o destino dos seus povos. Firme e irreverente, perguntou, alto e a bom som, para incómodo dos dirigentes do partido da situação ai presentes: “o que será de Angola, quando o petróleo acabar?”. A pergunta continua no ar!
A semana passada, o Novo Jornal publicou uma entrevista que Carlos Moore concedeu a este hebdomadário, na sua passagem por Luanda. A entrevista é muito rica e interessante. Mesmo pessoas que se julguem bem informadas sobre a nossa história política encontrarão nela informação digna de registo. Retenho as palavras de Carlos Moore também porque elas abonam em minha defesa. Algumas vezes, abordei alguns dos temas tratados por ele e minhas palavras foram tidas como levianas, como fruto de ressabio ou mágoa pessoal. Por exemplo, em relação ao racismo em Cuba ou sobre a intervenção cubana, em Angola, ou ainda sobre as falsificações históricas dos movimentos de libertação nacional (seja no MPLA ou na UNITA).
Nesta entrevista, Carlos Moore, mais uma vez, deve ter incomodado os pobres “deuses domésticos”, pela franqueza e autenticidade da sua atitude perante a história de que é portador. Primeiro, conta a sua aventura de dissidente de esquerda do regime ditatorial dos Castro. A propósito, põe a descoberto a questão do racismo em Cuba e mostra que ela não é mera “propaganda imperialista” como o regime pretende. Tomei contacto, pela primeira vez, com esta questão através de Régis Debray, num livro que ele escreveu para justificar a sua ruptura com o regime castrista, depois da fracassada aventura junto de Che Guevara, na Bolívia. Mas, muitos anos mais tarde, testemunhei esse racismo descarado e gritante, em Cuba, em 1981, já havia um bom tempo que as suas tropas expansionistas se encontravam em África e o regime fazia o discurso da demagogia internacionalista, do reencontro de Cuba com África e da revalorização da “cultura negra”, no seu país.
A questão, como é sabido, vem de longe, de uma longínqua e teimosa herança escravocrata. Não do regime de produção escravista mas da mentalidade, da sua teimosa ideologia. Carlos Moore explica que ainda no tempo de Fulgêncio Baptista, pessoas como o etnólogo e historiador Walterio Carbonell ou o sociólogo Juan Bettencourt levantaram o problema do racismo naquele país do Caribe. Quando Fidel de Castro chegou ao poder, em 1959, “negou-se a partilhá-lo com a maioria negra”. Os negros representavam então 35 a 45 por cento da população e estavam organizados em 525 agremiações. A “pequena burguesia hispano-cubana”, diz Carlos Moore, sob a capa do marxismo-leninismo e da revolução, baniu as chamadas “sociedades de cor”, prendeu ou exilou os intelectuais negros e proibiu os seus livros que falavam do problema e insistiu na ideia de que havia uma “democracia racial”, traduzida na demagogia de que a única cor em Cuba era a “cor cubana”.
Carlos Moore que acreditava na revolução em curso, quis uma oportunidade para discutir o problema do racismo. Em 1961, levou o seu “protesto ao chefe do exército, o comandante Juan Almeida Bosques”. Acabou preso. Levaram-no para a chamada Villa Marista, onde esteve “numa cela, com perto de 30 pessoas, que iam sendo levadas, noite após noite, para serem fuziladas”. Esteve aí “28 dias à espera de ser morto” e só escapou “porque na altura trabalhava com um grande dirigente dos direitos civis dos Estados Unidos, Robert Williams que estava a viver em Cuba sob a protecção de Fidel de Castro”. Aquele, ao saber da sua prisão, “moveu contactos junto do chefe da contra-inteligência cubana, Manuel Piñero Losada” e acabou por ser libertado. Persistiu! E, “um dia, em 1962, estava numa rua de Havana quando os carros de Fidel pararam do outro lado da rua”. Impulsivamente começou a correr, a segurança quase o ia matando mas Fidel não permitiu e perguntou-lhe: “Quem és tu?”. Carlos Moore respondeu-lhe que “fazia parte de um grupo de intelectuais revolucionários que não estava de acordo com a forma como ele colocava a questão racial”. El Comandante “ficou colérico” mas disse-lhe para ir ao seu gabinete e levar as preocupações do grupo “num papel e uma lista com os nomes de toda a gente envolvida”. Mais tarde, Célia Sanchez, braço direito de Fidel, recebeu-os e leu o manifesto do grupo. No dia seguinte estavam todos presos. Ramiro Valdez Menéndez, actual vice-presidente cubano, era o chefe da polícia secreta e coube a ele o papel de inquisidor. Depois de seis horas de interrogatório, Carlos Moore assinou “uma confissão a dizer que não havia racismo em Cuba e que tinha sido contaminado pelas ideias do imperialismo, durante o tempo em que tinha vivido nos Estados Unidos. Ou isso ou a morte”. Ainda assim foi parar a um “campo de reabilitação” (um dos goulag cubanos, de triste memória), de onde saiu depois de um acidente. Puseram-no então a trabalhar no Ministério de Informação e depois no Ministério das Relações Exteriores. Um dia, aproveitou uma confusão no trabalho, apanhou um táxi e refugiou-se na embaixada da Guiné-Conacri. Já tinha compreendido que o regime de Castro & sus muchachos “era uma máquina infernal que estava a tragar toda a gente, inclusive da esquerda cubana e revolucionários”.
Saiu do seu país, em direcção ao Cairo, a 4 de Novembro de 1963, depois de três meses de negociações entre as autoridades cubanas e o embaixador guineense, “apoiado pelos embaixadores do Mali, Egipto e Gana”. Em África, trabalhou com os movimentos de libertação nacional, nomeadamente angolanos (disto falaremos em próximo texto).
Depois foi para Paris e passou por outras academias. Escreveu, entre outros livros, “Castro, os Negros e África”, onde defende a ideia segundo a qual “os dirigentes cubanos começaram a construir a sua política para a Africa a partir de 1965, depois da crise dos mísseis, quando Cuba ficou altamente dependente da União Soviética”. A orientação de Castro era a de estabelecer uma série de Estados vassalos que gravitassem a volta de Cuba que se afirmaria então como potência intermédia, “para fazer com que a URSS dependesse de Cuba para aceder aos recursos africanos” e, igualmente, “impedir a entrada da China que estava a apostar forte em divisões dentro dos movimentos africanos”. Por isto, a intervenção cubana, em Angola, tendo por pretexto o combate contra o apartheid sul-africano e a libertação total de África do colonialismo, já “estava preparada há muito tempo, e tinha como objectivo colocar o MPLA no poder”, numa situação de fragilidade que lhes permitiu “levar para Cuba todos os recursos naturais que puderam”, num acto de “pilhagem geral”. Por isto, segundo Carlos Moore “há que terminar com a mitologia mentirosa que apresenta a acção de Cuba, em África, como uma acção de puro altruísmo”. Porque Cuba, não tendo percebido as complexidades de Angola, "veio para África com o complexo de Tarzan".

Carlos Moore que agora vive em São Salvador, da Bahia, continua utópico, lúcido e combatente e afirma categórico: “não entrego a ninguém o sonho da dignidade humana”.

Nelson Pestana (Bonavena)