Esta obra de Ruy Duarte de Carvalho é aparentemente uma estória simples, feita da "narrativa breve”, “da invenção completa da estória de um Inglês que em 1923 se suicidou no Kwando depois de ter morto tudo à sua volta”. Esta “invenção” teria como base uma sucinta crónica de Henrique Galvão", inserida no livro deste autor, “Em Terra de Pretos” (1929). É desta maneira que o livro é apresentado no seu rosto e, normalmente, pelos resumos que dele se fazem. Mas, apesar disto o romance do RDC não é apenas a reinvenção “completa” da crónica de Henrique Galvão.
Henrique Galvão, para além do seu nome ter ficado ligado a Angola também por outras razões e, nomeadamente pelo desvio do Santa Maria que viria a aportar Luanda, por volta de 4 de Fevereiro de 1961 - determinando assim a escolha da data do assalto às cadeias de Luanda, é um dos autores mais importantes da literatura colonial, tendo escrito vários textos em teatro, conto, aventuras de caça, crónicas (“Em Terra de Pretos”, 1929), romance (“O sol dos trópicos” e o “Velo d’oiro”), literatura de viagem e outros géneros. Os seus livros fizeram grande sucesso na época (quer na “metrópole”, quer na “colónia”), devido ao tom glorioso e heróico que dava às suas personagens, constituídas a maioria delas de colonos portugueses e suas aventuras em terras africanas (Omar Ribeiro Thomaz).
O romance Os Papéis do Inglês "decorre não apenas dos acontecimentos do Kwando relatados pelo Galvão” mas igualmente do facto (da “circunstância” – para usar a palavra do autor) de RDC os ter contado (p. 30) ao seu ajudante de campo, o Paulino que se lembrou do avô, já falecido mas que tinha sido, durante a juventude, precisamente, o Ganguela-do-Coice do carro bóer do tal Inglês. (Repare-se que “o Ganguela-do-Coice” é o subtítulo do livro) Ora o avô do Paulino, depois da tragédia do Kwando, narrada pelo Galvão, teria ficado com os papéis do Inglês.
A revelação do Paulino provocou em RDC um “sobressalto imaginativo” e uma grande expectativa. A partir dessa data, RDC “passou, com frequência, a divagar à volta do que me [lhe] ocorria emprestar à personagem do Inglês. O Galvão, de facto, pouco dizia da sua carreira anterior, no livro vinha apenas que o homem se tinha suicidado, em 1923 e que por essa data andava retirado do mundo civilizado havia já para aí uns bons 15 anos… mas eu, mesmo sem querer e bem à revelia do meu [seu] feroz programa de trabalho, estava afinal, por minha própria conta e risco, e a custa de alguma insónia, a saber cada vez mais. E hoje, já que nunca mais deixei de estar ligado a coisa, julgo saber tudo. E não vou ter descanso, conheço-me, enquanto não reduzir a ideia a objecto, ou acto”[1].
Estas explicações, captadas no próprio Ruy Duarte de Carvalho que enquanto nos reconta a estória do Inglês, nos fala do sua oficina e do seu próprio labor, permitem, por um lado, constar uma viva “consciência criativa” do autor e, por outro, dizer que o livro, “Os papéis do Inglês”, não é apenas a reinvenção dessa estória, nem, como se poderia pensar, o simples alargar das costuras da crónica de Henrique Galvão. A estória que Ruy Duarte de Carvalho nos conta, não é apenas a reinvenção da narrativa do "suicídio de um Inglês no interior mais fundo de Angola", em princípios do século XX. Não é simplesmente a simples “reinvenção” dessa sucinta mas impressionante estória que andou, durante mais de vinte anos, "a trabalhar a cabeça" dele (p. 14).
Longe disto! O que é então? Este livro é o resultado “da conjugação de muitos factores” e da "convergência de muitos outros". “Os papéis do Inglês” é uma estória muito mais complexa (p. 63), onde se misturam várias estórias, sendo uma delas a “versão” do RDC da estória inicial desse Inglês que tendo desertado da I Guerra Mundial se fixou nas bandas do Kwando, confrontada com outras estórias. (p. 21) Este livro, Os Papéis do Inglês é "uma narrativa com princípio e fim" – como nos garante o próprio RDC- mas não é um romance ou uma peça de ficção comum e foi escrita num lugar perdido, "numa das regiões menos povoadas de Angola, da África e do Mundo" (p. 22). Trata-se da estória de todas as estórias em torno dessa ideia que lhe trabalhava a cabeça há muito e no sulco das peugadas da época do Autor, em interlocução com a estória do seu romance com uma" destinatária que se insinua e se instala no texto" e a quem RDC dedica o livro e dirige cartas (como dirigia cassetes ao Filipe, em Vou Lá Visitar Pastores).
A estória foi também determinada pelo facto de Ruy Duarte de Carvalho não se sentir "capaz dos feitos de nenhum Conrad" (engano seu)! Esta convicção leva-o a adoptar, para a sua actividade epistolar, uma postura narrativa pessoana: "à laia de conversa mental", e a reflectir sobre a sua própria prática de narrador, enquanto recria os ambientes e as identidades necessárias para deslindar a breve estória de Henrique Galvão.
“Narrador” que ele próprio também descreve como "esse sujeito de barbas brancas que escreve debruçado sobre o caderno" (p. 62) sem saber até quando e que, há dado momento, se interroga (e a nós também) se "Seria altura de [se] alongar sobre o que lhe terá passado pela cabeça?" (pág. 58); ou compara a sua "versão" à “versão de Henrique Galvão", onde, segundo ele, "o Belga só intervêm depois da morte do Grego". (pág. 73); ou, se critica ao dizer, noutro passo, que está a ser "ligeiro" (pág. 141) na sua narrativa, ou, ainda, se justifica em relação as suas personagens: "é assim que os vejo e por causa disso andei o ano passado a reler "As neves de Kilimanjaro e as Verdes Colinas de África do Hemingway" (pág. 74).
Serão então as personagens de Ruy Duarte de Carvalho, o recorte das personagens de Hemingway? Claro que não! Mesmo porque RDC, pela maneira como trabalha a polifonia no romance e pela forma como mistura “a objectividade da pesquisa da pesquisa com o sal da fantasia” (Rita Chaves) se aproxima mais de Dostoiévski que é o monumento e o fundador do romance moderno (Milan Kundera)[2].
No entanto, RDC não aspira a ser considerado "romancista ou a ser tido como tal" (p. 58) e diga renunciar a qualquer esforço de transformar este livro num romance, Ruy Duarte de Carvalho, ao dar-nos notícia do seu trabalho e da sua consciência oficinal, mostra-nos que um livro que se escreve espontaneamente não é um livro, é tão somente um pensamento; um pensamento articulado ou uma soma de pensamentos. Para se tornar um livro o “autor” tem que se transformar precisamente em “Autor”, ou seja, deixar de ser um simples sujeito de múltiplas vivências que se articulam num ponto, para se apresentar como narrador de uma estória organizada em torno de um foco dramático, dando coerência e complementaridade a vários elementos que como simples vivências apareceriam como fragmentados.
Dito de outra maneira, para se ter um romance, não basta ser detentor de factos com algum potencial dramático, é preciso fazer entrar na oficina o conjunto de vivências, os vários materiais e os fazer sair organizados segundo um plano prévio ou apenas uma simples orientação (como é o caso do A.) que se vai refazendo e apurando, consoante o texto vai avançando e tomando corpo narrativo, isto é, consoante o texto vai se transformando em discurso literário.
A modéstia que Ruy Duarte de Carvalho manifesta no livro, traduz apenas uma opção: a de escrever uma prosa enxuta, onde tudo é explícito, num plano, e implícito, no outro. Por isto, faz entrar, no seu livro, vários outros livros, procurando uma intertextualidade (e um intertexto), marcada pelas várias citações que faz, sem complexos, de forma explícita, honesta e erudita que ilustra ainda mais o seu talento, mesmo porque o faz em toda a simplicidade e avisando a sua "destinatária", dando-lhe (a ela e a nós) "notícia explícita" do que é sua invenção (pág. 30), o que equivale, ao mesmo tempo, dizer do que não é sua criação.
Entram no livro Henrique Galvão, Conrad, Celine, o próprio Autor, quando nos remete, pela mediação da "destinatária", para o seu anterior livro, "Vou lá visitar os pastores" (p.15), a Bíblia, Michaux, Sade, Teodósio Cabral, Andrew Battel, Fenikov, Shakespeare… …e seguramente mais algum que me tenha escapado.
Todos os materiais que utiliza, segundo ele (e eu faço fé) entraram no livro porque foram ao seu encontro. Por exemplo, o livro do Galvão entrou-lhe pela janela (Carvalho 2001 p.-)… RDC apenas pegou nestes “materiais” e os potenciou na sua utilização através de um derrame imaginativo considerável. Neste "investimento criativo" (p. 142), que assume vários planos narrativos, é que está a genialidade de "Os Papéis do Inglês", ao harmoniza-lo e ao fazê-lo coabitar funcionalmente no interior da sua economia de texto. Esses planos narrativos são: primeiro, o da estória breve de Henrique Galvão e da de Luiz Simões, em "Manyama -Recordações de um caçador em Angola", na qual o Inglês e o Grego que ele abateu, antes da carnificina que precedeu o seu suicídio, aparecem como "dois aventureiros desertores dos exércitos aliados da I Grande Guerra e que caçavam e faziam negócio nessa região a que os ingleses chegaram a chamar "the criminal corner" (p. 19); segundo, o da estória, ao princípio, dos papéis do inglês que se tornou, mais lá para frente, a estória dos papéis do pai do próprio A, depois de ter sido, um pouco antes, a estória dos papéis do tio do Paulino; terceiro, o da narrativa do A. sobre a sua "perseguição" dos papéis; quarto o da estória do Inglês, aliás, sir Archibald Parkings que ante a imensa fadiga do meio académico londrino que frequentava e o seu desarranjo conjugal, viu fatalmente traçado o seu destino e, acreditando que "a verdade deste mundo é a morte" (p. 61) decidiu ir até ao fim; programou um suicídio a termo certo e, para tanto, partiu para África, de onde tinha vindo afinal, pois havia passado a sua meninice numa farm da Rodésia antes de vir para Liverpool licenciar-se; quinto plano, o da teoria da justificação do gesto extremo do Inglês (o suicídio). Este exercício é de cariz psicanálico mas nunca enfadonho; sexto, o intermezzo romântico que perpassa à voz calada da escrita dirigida "a destinatária", num jogo de espelhos através sobretudo das epistolas que precedem cada um dos capítulos do livro ou da discussão da sua identidade individual através do alter-ego que é o seu primo Kaluter.
A estes planos principais poder-se-ia, como na técnica cinematrográfica (não é por acaso que RDC é cineasta, incluir outros planos entrecortados (por exemplo): o da estória do "genial falsário Artur Virgílio Alves Reis" que passando então por “Moçamedes”, ao tempo da estória do Inglês, aí era esperado por "todas as forças vivas e a população em peso"; o da autobiografia do Autor que explica sobre a sua passagem da crença evolucionista darwinista à ideia da complexificação social de Teillard de Chardin; ou ainda, o das "etnografias" que é absorvido pelos demais por toda a economia do livro, pois que quando o próprio autor anuncia que "a etnografia vai entrar em campo", o romance, ou melhor, a poética, não sai de cena. Pelo contrário, incorpora-a no seu discurso literário e faz das "etnografias" uma circunstância da poética, procurando retirar o maior peso simbólico da sua inserção no meio e das ideias e das práticas que o rodeiam, nomeadamente através de um exercício de alteridade com as ideias e práticas que as suas leituras lhe proporcionam, talvez porque reconhece que em "toda a produção ideológica ou intelectual" o iluminismo e o evolucionismo estão implícitos, continuam a comandar a "aferição da qualidade dos homens segundo escalas físicas" e "segundo uma hierarquização das culturas"(Carvalho 2001: 153).
Com este livro, “Os papéis do Inglês”, Ruy Duarte de Carvalho, para além de tudo que já foi dito, ainda reencontra, por um lado, a tradição da oratura que ele já havia trabalhado em outros textos poéticos e, por outro, a nossa tradição narrativa romanesca que foi, nos primórdios, vertida em folhetins por penas como a de Alfredo Troni, em Nga Muturi (publicada no “Jornal de Loanda”, em 1878), a de Pedro Félix Machado, em Romance Íntimo (A Gazeta de Portugal, 1891-1892) e a de António de Assis Júnior, em O Segredo da Morta (A Vanguarda, 1928).
e. bonavena, in semanário Agora
[1] RDC, Os papéis do Inglês, p. 25 e 26.
[2] BAKTHIN, Problemas da poética de Dostoiévski, Forense Universitária, 1981, p. 237.
Henrique Galvão, para além do seu nome ter ficado ligado a Angola também por outras razões e, nomeadamente pelo desvio do Santa Maria que viria a aportar Luanda, por volta de 4 de Fevereiro de 1961 - determinando assim a escolha da data do assalto às cadeias de Luanda, é um dos autores mais importantes da literatura colonial, tendo escrito vários textos em teatro, conto, aventuras de caça, crónicas (“Em Terra de Pretos”, 1929), romance (“O sol dos trópicos” e o “Velo d’oiro”), literatura de viagem e outros géneros. Os seus livros fizeram grande sucesso na época (quer na “metrópole”, quer na “colónia”), devido ao tom glorioso e heróico que dava às suas personagens, constituídas a maioria delas de colonos portugueses e suas aventuras em terras africanas (Omar Ribeiro Thomaz).
O romance Os Papéis do Inglês "decorre não apenas dos acontecimentos do Kwando relatados pelo Galvão” mas igualmente do facto (da “circunstância” – para usar a palavra do autor) de RDC os ter contado (p. 30) ao seu ajudante de campo, o Paulino que se lembrou do avô, já falecido mas que tinha sido, durante a juventude, precisamente, o Ganguela-do-Coice do carro bóer do tal Inglês. (Repare-se que “o Ganguela-do-Coice” é o subtítulo do livro) Ora o avô do Paulino, depois da tragédia do Kwando, narrada pelo Galvão, teria ficado com os papéis do Inglês.
A revelação do Paulino provocou em RDC um “sobressalto imaginativo” e uma grande expectativa. A partir dessa data, RDC “passou, com frequência, a divagar à volta do que me [lhe] ocorria emprestar à personagem do Inglês. O Galvão, de facto, pouco dizia da sua carreira anterior, no livro vinha apenas que o homem se tinha suicidado, em 1923 e que por essa data andava retirado do mundo civilizado havia já para aí uns bons 15 anos… mas eu, mesmo sem querer e bem à revelia do meu [seu] feroz programa de trabalho, estava afinal, por minha própria conta e risco, e a custa de alguma insónia, a saber cada vez mais. E hoje, já que nunca mais deixei de estar ligado a coisa, julgo saber tudo. E não vou ter descanso, conheço-me, enquanto não reduzir a ideia a objecto, ou acto”[1].
Estas explicações, captadas no próprio Ruy Duarte de Carvalho que enquanto nos reconta a estória do Inglês, nos fala do sua oficina e do seu próprio labor, permitem, por um lado, constar uma viva “consciência criativa” do autor e, por outro, dizer que o livro, “Os papéis do Inglês”, não é apenas a reinvenção dessa estória, nem, como se poderia pensar, o simples alargar das costuras da crónica de Henrique Galvão. A estória que Ruy Duarte de Carvalho nos conta, não é apenas a reinvenção da narrativa do "suicídio de um Inglês no interior mais fundo de Angola", em princípios do século XX. Não é simplesmente a simples “reinvenção” dessa sucinta mas impressionante estória que andou, durante mais de vinte anos, "a trabalhar a cabeça" dele (p. 14).
Longe disto! O que é então? Este livro é o resultado “da conjugação de muitos factores” e da "convergência de muitos outros". “Os papéis do Inglês” é uma estória muito mais complexa (p. 63), onde se misturam várias estórias, sendo uma delas a “versão” do RDC da estória inicial desse Inglês que tendo desertado da I Guerra Mundial se fixou nas bandas do Kwando, confrontada com outras estórias. (p. 21) Este livro, Os Papéis do Inglês é "uma narrativa com princípio e fim" – como nos garante o próprio RDC- mas não é um romance ou uma peça de ficção comum e foi escrita num lugar perdido, "numa das regiões menos povoadas de Angola, da África e do Mundo" (p. 22). Trata-se da estória de todas as estórias em torno dessa ideia que lhe trabalhava a cabeça há muito e no sulco das peugadas da época do Autor, em interlocução com a estória do seu romance com uma" destinatária que se insinua e se instala no texto" e a quem RDC dedica o livro e dirige cartas (como dirigia cassetes ao Filipe, em Vou Lá Visitar Pastores).
A estória foi também determinada pelo facto de Ruy Duarte de Carvalho não se sentir "capaz dos feitos de nenhum Conrad" (engano seu)! Esta convicção leva-o a adoptar, para a sua actividade epistolar, uma postura narrativa pessoana: "à laia de conversa mental", e a reflectir sobre a sua própria prática de narrador, enquanto recria os ambientes e as identidades necessárias para deslindar a breve estória de Henrique Galvão.
“Narrador” que ele próprio também descreve como "esse sujeito de barbas brancas que escreve debruçado sobre o caderno" (p. 62) sem saber até quando e que, há dado momento, se interroga (e a nós também) se "Seria altura de [se] alongar sobre o que lhe terá passado pela cabeça?" (pág. 58); ou compara a sua "versão" à “versão de Henrique Galvão", onde, segundo ele, "o Belga só intervêm depois da morte do Grego". (pág. 73); ou, se critica ao dizer, noutro passo, que está a ser "ligeiro" (pág. 141) na sua narrativa, ou, ainda, se justifica em relação as suas personagens: "é assim que os vejo e por causa disso andei o ano passado a reler "As neves de Kilimanjaro e as Verdes Colinas de África do Hemingway" (pág. 74).
Serão então as personagens de Ruy Duarte de Carvalho, o recorte das personagens de Hemingway? Claro que não! Mesmo porque RDC, pela maneira como trabalha a polifonia no romance e pela forma como mistura “a objectividade da pesquisa da pesquisa com o sal da fantasia” (Rita Chaves) se aproxima mais de Dostoiévski que é o monumento e o fundador do romance moderno (Milan Kundera)[2].
No entanto, RDC não aspira a ser considerado "romancista ou a ser tido como tal" (p. 58) e diga renunciar a qualquer esforço de transformar este livro num romance, Ruy Duarte de Carvalho, ao dar-nos notícia do seu trabalho e da sua consciência oficinal, mostra-nos que um livro que se escreve espontaneamente não é um livro, é tão somente um pensamento; um pensamento articulado ou uma soma de pensamentos. Para se tornar um livro o “autor” tem que se transformar precisamente em “Autor”, ou seja, deixar de ser um simples sujeito de múltiplas vivências que se articulam num ponto, para se apresentar como narrador de uma estória organizada em torno de um foco dramático, dando coerência e complementaridade a vários elementos que como simples vivências apareceriam como fragmentados.
Dito de outra maneira, para se ter um romance, não basta ser detentor de factos com algum potencial dramático, é preciso fazer entrar na oficina o conjunto de vivências, os vários materiais e os fazer sair organizados segundo um plano prévio ou apenas uma simples orientação (como é o caso do A.) que se vai refazendo e apurando, consoante o texto vai avançando e tomando corpo narrativo, isto é, consoante o texto vai se transformando em discurso literário.
A modéstia que Ruy Duarte de Carvalho manifesta no livro, traduz apenas uma opção: a de escrever uma prosa enxuta, onde tudo é explícito, num plano, e implícito, no outro. Por isto, faz entrar, no seu livro, vários outros livros, procurando uma intertextualidade (e um intertexto), marcada pelas várias citações que faz, sem complexos, de forma explícita, honesta e erudita que ilustra ainda mais o seu talento, mesmo porque o faz em toda a simplicidade e avisando a sua "destinatária", dando-lhe (a ela e a nós) "notícia explícita" do que é sua invenção (pág. 30), o que equivale, ao mesmo tempo, dizer do que não é sua criação.
Entram no livro Henrique Galvão, Conrad, Celine, o próprio Autor, quando nos remete, pela mediação da "destinatária", para o seu anterior livro, "Vou lá visitar os pastores" (p.15), a Bíblia, Michaux, Sade, Teodósio Cabral, Andrew Battel, Fenikov, Shakespeare… …e seguramente mais algum que me tenha escapado.
Todos os materiais que utiliza, segundo ele (e eu faço fé) entraram no livro porque foram ao seu encontro. Por exemplo, o livro do Galvão entrou-lhe pela janela (Carvalho 2001 p.-)… RDC apenas pegou nestes “materiais” e os potenciou na sua utilização através de um derrame imaginativo considerável. Neste "investimento criativo" (p. 142), que assume vários planos narrativos, é que está a genialidade de "Os Papéis do Inglês", ao harmoniza-lo e ao fazê-lo coabitar funcionalmente no interior da sua economia de texto. Esses planos narrativos são: primeiro, o da estória breve de Henrique Galvão e da de Luiz Simões, em "Manyama -Recordações de um caçador em Angola", na qual o Inglês e o Grego que ele abateu, antes da carnificina que precedeu o seu suicídio, aparecem como "dois aventureiros desertores dos exércitos aliados da I Grande Guerra e que caçavam e faziam negócio nessa região a que os ingleses chegaram a chamar "the criminal corner" (p. 19); segundo, o da estória, ao princípio, dos papéis do inglês que se tornou, mais lá para frente, a estória dos papéis do pai do próprio A, depois de ter sido, um pouco antes, a estória dos papéis do tio do Paulino; terceiro, o da narrativa do A. sobre a sua "perseguição" dos papéis; quarto o da estória do Inglês, aliás, sir Archibald Parkings que ante a imensa fadiga do meio académico londrino que frequentava e o seu desarranjo conjugal, viu fatalmente traçado o seu destino e, acreditando que "a verdade deste mundo é a morte" (p. 61) decidiu ir até ao fim; programou um suicídio a termo certo e, para tanto, partiu para África, de onde tinha vindo afinal, pois havia passado a sua meninice numa farm da Rodésia antes de vir para Liverpool licenciar-se; quinto plano, o da teoria da justificação do gesto extremo do Inglês (o suicídio). Este exercício é de cariz psicanálico mas nunca enfadonho; sexto, o intermezzo romântico que perpassa à voz calada da escrita dirigida "a destinatária", num jogo de espelhos através sobretudo das epistolas que precedem cada um dos capítulos do livro ou da discussão da sua identidade individual através do alter-ego que é o seu primo Kaluter.
A estes planos principais poder-se-ia, como na técnica cinematrográfica (não é por acaso que RDC é cineasta, incluir outros planos entrecortados (por exemplo): o da estória do "genial falsário Artur Virgílio Alves Reis" que passando então por “Moçamedes”, ao tempo da estória do Inglês, aí era esperado por "todas as forças vivas e a população em peso"; o da autobiografia do Autor que explica sobre a sua passagem da crença evolucionista darwinista à ideia da complexificação social de Teillard de Chardin; ou ainda, o das "etnografias" que é absorvido pelos demais por toda a economia do livro, pois que quando o próprio autor anuncia que "a etnografia vai entrar em campo", o romance, ou melhor, a poética, não sai de cena. Pelo contrário, incorpora-a no seu discurso literário e faz das "etnografias" uma circunstância da poética, procurando retirar o maior peso simbólico da sua inserção no meio e das ideias e das práticas que o rodeiam, nomeadamente através de um exercício de alteridade com as ideias e práticas que as suas leituras lhe proporcionam, talvez porque reconhece que em "toda a produção ideológica ou intelectual" o iluminismo e o evolucionismo estão implícitos, continuam a comandar a "aferição da qualidade dos homens segundo escalas físicas" e "segundo uma hierarquização das culturas"(Carvalho 2001: 153).
Com este livro, “Os papéis do Inglês”, Ruy Duarte de Carvalho, para além de tudo que já foi dito, ainda reencontra, por um lado, a tradição da oratura que ele já havia trabalhado em outros textos poéticos e, por outro, a nossa tradição narrativa romanesca que foi, nos primórdios, vertida em folhetins por penas como a de Alfredo Troni, em Nga Muturi (publicada no “Jornal de Loanda”, em 1878), a de Pedro Félix Machado, em Romance Íntimo (A Gazeta de Portugal, 1891-1892) e a de António de Assis Júnior, em O Segredo da Morta (A Vanguarda, 1928).
e. bonavena, in semanário Agora
[1] RDC, Os papéis do Inglês, p. 25 e 26.
[2] BAKTHIN, Problemas da poética de Dostoiévski, Forense Universitária, 1981, p. 237.