sexta-feira, 24 de outubro de 2008

OS OLHOS DO PRINCIPE

Tal como o fascismo histórico, o regime actual ejecta do seu círculo os intelectuais no que eles têm de essencial e deles aproveita apenas o conhecimento e o prestígio social (como se tratassem de maiombolas do saber) sem que isso possa dar-lhes a oportunidade de se constituírem num corpus autónomo que não se submeta à disciplina de pensamento e de acção do regime

Nelson Pestana (Bonavena)*

Não faltou quem me tenha dito que o meu exercício de escrita, sobretudo se procuro falar para os “intelectuais do regime”, é comparável ao desespero de Santo António que se sentindo incompreendido pelos homens, foi “pregar aos peixes”. Ainda assim, seria um elogio porque inscreveriam o meu “esforço” na tradição de “Voz de Angola, Clamando no Deserto”(1901), no entendimento de que é um exercício que serve para planar arestas, afastar pedras, fazer um caminho, em busca de um futuro. Ou seja, um exercício de realismo e esperança.

Mas, é claro que se um esforço explicativo não pode contar com a atitude de Henriques Feijó (personagem de Crónica de um Mujimbo, o belo livro de Manuel Rui) também não pode justificar a sua utilidade pela apatia daqueles que querem constituir o corpus de uma intelectualidade que por definição não pode deixar de ser autónoma na produção das suas opiniões. Um intelectual não deixa de ver os problemas pelos seus próprios olhos. O regime autoritário não permite isso, não apenas aos governantes mas também a àqueles que queiram integrar as suas fileiras e a todos que desejem intervir no espaço público. O regime pela sua natureza ditatorial nega os intelectuais na sua própria condição de liberdade de pensamento, na sua autonomia de acção, despolitiza o saber e torna-o um puro instrumento do seu poder (daí a preferência semântica pelo “quadro”, em vez de “intelectual”).

Por isto, tal como o fascismo histórico, o regime actual ejecta do seu círculo os intelectuais no que eles têm de essencial e deles aproveita apenas o conhecimento e o prestígio social (como se tratassem de maiombolas do saber) sem que isso possa dar-lhes a oportunidade de se constituírem num corpus autónomo que não se submeta à disciplina de pensamento e de acção do regime que os deslegitima, os inferioriza e lhes inculca um complexo em relação à dita “vontade do povo”, que é subentendido o ditador encarnar.

“É conversando que os homens se entendem” diz o ditado que o Presidente da República evocou no seu discurso de posse do novo Governo. Mas fê-lo, em contramão, não para corroborar a democracia, a ideia de que do debate se faz luz, de que a discussão é uma peça central do desenvolvimento do pensamento nacional que é parte integrante e fundadora do desenvolvimento nacional sustentado porque assente na endogeneização crítica de todas as aquisições universais.

Contra o espírito do movimento “Vamos Descobrir Angola (1948) o Príncipe vem dizer ao Governo (e, por efeito simpático, a todo o país) que “é trabalhando bem, com dedicação, que todos se entendem”. Isto é, no Conselho de Ministros não há lugar ao debate, à troca de opiniões, à emulação de ideias, mesmo porque isto, segundo ele, não é trabalhar. E esta matriz tem poder reprodutivo a todos os níveis do Estado e das relações deste com a sociedade.

Esta afirmação (simples deslize, dirão alguns) do Presidente da República é bem característica de todas as formas de autoritarismo (também do fascismo histórico) porque não acredita na virtude do debate mas na força da “disciplina”. Esta é que é, para si, profícua. Já o disse, em texto anterior, antes mesmo desta evidente ilustração, que aqueles que separam a “liberdade” da “ordem” e a sobrepõem à primeira, na verdade, fazem dela uma “essência”, que se justifica por si própria para reprimir a liberdade que aparece como uma marginalidade excêntrica e não um elemento constitutivo e fundador da vida humana contemporânea.

Neste capítulo, o do substrato filosófico, o neofascismo não se diferencia do fascismo histórico, a diferença deles (mesmo se ambos falam em governar “a bem da Nação”) está no modus operandi, nas formas que assumem. Embora o regime angolano use ainda muita da “tecnologia” do fascismo histórico (o caso Ernesto Bartolomeu, o terrorismo intelectual do tipo editorial contra o OPSA, a partidarização da administração, a pressão contra a imprensa privada, a apetência para a truculência pura, as escutas telefónicas e outras) a tendência é procurar formas mais sofisticadas de autoritarismo, tornando-o menos do aparelho do Estado e mais dos mecanismos da sociedade.

É mais que evidente que o regime autoritário actual que se quer estruturante a partir dos ganhos simbólicos e políticos da maioria abusiva imposta ao país pelo Príncipe, não vai nunca perder a oportunidade de proclamar que vai “reforçar a democracia” e a “consolidação do Estado Democrático de Direito” pois estas são aquisições políticas, ao nível do discurso, fundamentais para a legitimação e reprodução do regime autoritário.

Mas apesar disto, ninguém está autorizado a ver a realidade pelos seus olhos mas apenas pelos olhos do Príncipe. O que os olhos do Príncipe não vêem não existe. E se os olhos do Príncipe vêem é porque existe. Não se pode colocar a hipótese sequer de que o Príncipe sofre de uma oftalmia (circunstancial) e, muito menos, de um estrabismo (estrutural). Os olhos do Príncipe são os mais sãos que existem, até porque são os “olhos do povo”, os “olhos da nação” que ele supostamente “encarna”. Por isto, os olhos dos seus partidários (e tendencialmente dos cidadãos) não têm existência própria, são parte de um grande mecanismo que se desdobra por todos e que a eles (e a nós) se sobrepõe e que ajuda a transformar os órgãos biológicos do Príncipe numa máquina poderosa de ver (policia), de fazer ver (propaganda) e de dar a impressão da sua conformidade com a natureza das coisas (legitimação) que leve todos a conformarem-se com o status quo existente (alienação).

Mesmo que os meus textos não tenham como destinatário particular as “pessoas do regime”, continuo a achar (para bem do país e da procura da manutenção da coesão social) que tem de haver disponibilidade destas, como indivíduos inteligentes e argutos como o são muitos dos intelectuais do regime, para aceitar o que se diz do regime, pelo menos como hipótese de indagação, como ponto de reflexão. Se se transforma o “regime” num dogma, se o “regime” é a verdade absoluta, para eles de nada valerá aduzir argumentos, articular explicações, extrair características, conformar o paradigma porque todo esse esforço será sempre apodado de “esquerdismo”, de “recalcamento”, de “ingenuidade”, “infantilismo” ou outro qualificativo pejorativo.

Num estado de barricada o país em nada aproveita e a mediocridade vai continuar a ganhar campo e a impor-se pela força, contra a razão. Esta diz-nos que a democracia é conceptual e factual. É conceptual na sua definição e factual na sua realização. Não é pelo simples facto de um regime se dizer democrático que o devemos ter como tal. Não é porque desejamos ardentemente que um regime (ou um partido), com o qual temos uma ligação afectiva, seja considerado democrático (com pensamentos subjacentes do género: “não, não podemos aceitar que seja “fascista”. É muito o desgosto!) que ele se torna efectivamente democrático. Temos que ter um referente de democracia e fazer a verificação quotidiana da sua prática em relação a esse referente.

O meu interesse não é que o regime seja “neofascista” para o poder denunciar. Não, pelo contrário, denuncio-o para que não se afaste dos marcos da democracia ou, pelo menos, tenha dificuldades em fazê-lo. Não tenho nenhum interesse que a predação se faça para ter um motivo de denúncia. Cada vez que isso acontece é o país que perde, que não se desenvolve porque se restringem os agentes do desenvolvimento, são os cidadãos que perdem, são pessoas que vão morrer por falta ou por insuficiência de recursos. Denuncio-o para que não se perpetue um ambiente de permissividade e impunidade absoluta. Faço-o por um dever de consciência mas também para minimizar os estragos pois a razão me diz que por muito poderoso que seja o regime autoritário, ele é tão-somente um cacimbo no desenvolvimento do país que procura com avidez formas alternativas de política, de desenvolvimento económico e social. E, neste sentido, (repito) o Príncipe tem que aceitar um terreno de negociação, aceitando devolver-nos os nossos olhos!

* Cientista Político


terça-feira, 21 de outubro de 2008

FpD INDIGNADA COM PRISÕES DE PROFESSORES DO BENGO

Dirigentes do SINPROF na província do Bengo são presos por terem desencadeado
uma greve.

A FpD (Frente para a Democracia) tomou conhecimento da detenção, ontem, dia 20 de Outubro, na cidade do Caxito de membros do SINPROF (sindicato de professores de Angola) – Província do Bengo, a saber:-
Manuel Azevedo, Secretário geral provincial;
Gonçalves Lopes, Secretário municipal do Dande;
César Gomes, Secretário do Conselho Fiscal do Bengo;
Moniz Muginga, membro do núcleo da escola Missionária;
Américo Augusto Cristovão, membro do núcleo de Escola.
A causa das detenções prende-se com a greve decretada pelo SINPROF – BENGO, com início no dia das detenções com base no abandono das negociações pelos representantes de entidade empregadora, Ministério da Educação e na pretensão dos grevistas em ver satisfeitas as seguintes reivindicações:
- A aplicação do novo Estatuto da Carreira Docente;- A Remuneração dos cargos de direcção e chefia;- O pagamento das dívidas salariais dos professores dos municípios de Ambriz e Quibaxi dos anos 2003 e 2004;- O pagamento das dívidas salariais dos meses de Março, Abril e Agosto dos anos 2007 e 2008 dos professores do município do Dande.
A FpD nota com apreensão que este acto gratuito de violência e de desrespeito pelos direitos humanos e pelos princípios mais elementares do Estado democrático de direito enquadra-se na estratégia da restauração autoritária reiniciada pelo Governo após a usurpação da maioria qualificada nas eleições de 5 de Setembro último e que já se abateu sobre populares na Lunda-Norte saldando-se em 1 a 5 mortos e mais de uma centena de detidos(!!!) e na detenção de aproximadamente 5 (cinco) autoridades tradicionais da Lunda-Sul.
A FpD está a investigar esta última situação (detenção dos sobas) a fim de poder informar e pronunciar-se sobre o caso com propriedade.
A FpD apela à solidariedade de todos os democratas, patriotas e republicanos para com todas as vítimas das práticas totalitárias do regime, bem como apela à unidade do movimento democrático, pois, como a FpD vem alertando, o regime vai fazer dos resultados do pleito eleitoral de 5 de Setembro último o instrumento de liquidação de todas as reivindicações de liberdade, prosperidade e progresso social. Urge, pois, fazer Frente a esta restauração autoritária em marcha.
Luanda, 21 de Outubro de 2008. O Gabinete de Imprensa da FpD
Para divulgação Imediata
Contactos: ANGOLA +244 928 554 655, +244 912 587 716, +244 923 827 193PORTUGAL +351 93 457 54 48

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL E O MEU DESALENTO

A Lei Eleitoral é muito clara ao dizer que “em caso de restarem alguns mandatos, os Deputados são distribuídos em ordem do resto mais forte de cada partido” (art.º 33º, nº 3, al. c). O que quer dizer que o acesso à representação, quando a distribuição de mandatos se revela incompleta após a operação de divisão dos votos validamente expressos de cada partido pelo coeficiente eleitoral nacional, se faz também pela divisão dos restos.

Nelson Pestana (Bonavena)*

O Tribunal Constitucional, dando resposta ao recurso interposto pela FpD sobre a distribuição de mandatos, resultantes das eleições legislativas de 5 de Setembro de 2008, confirmou a deliberação da Comissão Nacional Eleitoral, negando provimento a petição do “partido da árvore”.

A FpD levantava fundamentalmente duas questões (a alusão à “cláusula barreira” era mais um contra-argumento do que uma questão): a primeira, tinham a ver com a distribuição dos restos no círculo nacional, nos termos do artigo 79.º, da Lei Constitucional, e do artigo 33, nº 3, al. c), da Lei Eleitoral. A segunda questão era referente à distribuição dos mandatos dos círculos provinciais, porque se invocava a inconstitucionalidade do art.º 33º, n.º 2, da Lei Eleitoral que determina a distribuição dos mandatos pelo sistema de Hondt, o que é contrário ao que está prescrito na Lei Constitucional que manda aplicar para todos os círculos (nacional, provinciais e do estrangeiro) o mesmo sistema proporcional (puro).

O Tribunal Constitucional, em vez de responder a estas questões, preferiu tergiversar sobre verdades lapalisseanas, numa manobra de diversão que nada aproveitou ao esclarecimento do caso, nem contribuiu para o desenvolvimento doutrinal do país. O Acórdão de nove páginas tem muita palha, jactância justificativa, muita opinião de facto e pouca sustentação jurídica. Um acórdão do Tribunal Constitucional que evita a Constituição é no mínimo estranho. Os juízes que assim procederam desvalorizaram-se aos olhos daqueles que neles depositaram confiança, não aceitando um sentimento de suspeição devido ao facto de terem sido nomeados pelo poder político. Quis acreditar que isto não lhes ia tolher os movimentos, pelo menos, a um certo nível. Não posso deixar de manifestar o meu desalento.

O Acórdão não faz a interpretação do artigo 79º, da Lei Eleitoral, mas tão somente a sua referencia tópica, e busca explica-lo dizendo que “uma das características essenciais do sistema de representação proporcional, previsto no artigo 79º, da Lei Constitucional, é precisamente de que para obter representação parlamentar a força política em causa tem que ultrapassar “um limiar mínimo”. Esta magistral argumentação vai busca-la a dupla de constitucionalistas portugueses, Gomes Canotilho e Vital Moreira.
Para mim e para a grande esmagadora maioria daqueles que escrevem sobre este sistema de representação ou o aplicam, desde o fim do século XIX, o objectivo fundamental do sistema de representação proporcional (integral) é o de reduzir a diferença entre a percentagem de votos obtidos por um partido e a percentagem dos lugares obtidos no parlamento. A sua característica essencial é a de permitir uma representatividade nacional muito próxima da pluralidade política expressa pelo voto. Pois, “os sistemas eleitorais proporcionais pretendem assegurar a representação das diferentes correntes de opinião, em termos que correspondam ao seu peso no universo eleitoral, garantindo a expressão das minorias (A. L. Cardoso, Sistemas eleitorais, Lx, 1993, citação tirada do Acórdão). Deste modo, é tido como o sistema que beneficia os pequenos partidos, por que lhes dá a possibilidade de obter representação na medida exacta da sua expressão, apesar de pequena, porque permite "representar todas as tendências políticas em proporção à sua força numérica" (Dieter Nohlen, “Os sistemas eleitorais entre a ciência e a ficção. Requisitos históricos e teóricos para uma discussão racional”, in M. B. Cruz, (Org.), Sistemas eleitorais: o debate científico, ICS, Universidade de Lisboa, 1998, p. 63).
De qualquer maneira, é confrangedor constatar o viés do Tribunal Constitucional ao dizer que os supracitados constitucionalistas portugueses, ao referir o “limiar mínimo”, se estavam a referir ao coeficiente eleitoral e a descartar os demais partidos da divisão de restos. É confrangedor ver o Tribunal Constitucional torcer a coisa a favor da solução que tinha que ser (a imposta pelo poder) e dizer que o partido que não atinge o coeficiente eleitoral fica de fora da representação nacional, mesmo antes da distribuição dos restos! Como pode uma tal bizarria acontecer se a distribuição de mandatos ainda não terminou e a representação nacional só fica completa com a distribuição dos restos? Como a CNE, primeiro, e o Tribunal Constitucional, depois, colocam fora da representação nacional uma parte dos partidos concorrentes se a atribuição de mandatos ainda não terminou? Com base em que fundamento constitucional ou legal o Tribunal Constitucional dá como procedente a ideia de que os partidos concorrentes que não atingem o quociente eleitoral nacional ficam de fora da distribuição de restos? Na dúvida, porque é que o Tribunal Constitucional não levou em consideração o facto (histórico) de que em 1992 se procedeu precisamente conforme diz a actual Lei Eleitoral?

A Lei Eleitoral é muito clara ao dizer que “em caso de restarem alguns mandatos, os Deputados são distribuídos em ordem do resto mais forte de cada partido” (art.º 33º, nº 3, al. c). O que quer dizer que o acesso à representação, quando a distribuição de mandatos se revela incompleta após a operação de divisão dos votos validamente expressos de cada partido pelo coeficiente eleitoral nacional, se faz também pela divisão dos restos. Há várias formas de o fazer (não estou interessado na jactância provinciana de reproduzir aqui essas formas que se podem encontrar facilmente através de um simples clic de um rato). Todos, no entanto, concordam num aspecto que se revela fundamental aqui: é que os votos a considerar são todos aqueles que não obtiveram representação na primeira operação de distribuição através do coeficiente eleitoral.

Quadro demonstrativo: CÍRCULO NACIONAL (130 ASSENTOS)


PARTIDO VOTOS MANDATOS RESTOS TOTAL DE
INTEIROS DEPUTADOS
MPLA 5266216 106 6653 106
UNITA 670363 13 25322,5 (+1) 14
PRS 204746 4 6272 4
ND 77141 1 27522,5 (+1) 2
FNLA 71416 1 21797,5 (+1) 2
PDP-ANA 32952 0 32952 (+1) 1
PLD 21341 0 21341 (+1) 1
AD-C 18968 0 18968 0
PADEPA 17509 0 17509 0
FpD 17073 0 17073 0
PAJOCA 15535 0 15535 0
PRD 14238 0 14238 0
PPE 12052 0 12052 0
FOFAC 10858 0 10858 0
TOTAIS 6450408 125 - 130

Ou seja, para o sistema proporcional puro, todos os votos que não foram suficientes para obter representação, são considerados “restos”. Basta olhar para o quadro demonstrativo para se perceber que o resto de cada partido é obtido através da subtracção dos votos representados, ao total de votos obtidos por cada partido. Isto é incontroverso e nesse sentido vai Adérito Correia que dizia que no caso da repartição de restos, pelo “resto mais forte”, como prescreve a Lei Eleitoral, art.º 33º, nº 3, al. c), “os lugares por preencher são atribuídos às listas que totalizem um maior número de votos não representados” (vide Sistemas e Processos Eleitorais, FES/UCAN, Luanda, 2001, p. 19. O exemplo inserto por Adérito Correia, neste artigo, inclui todos os partidos inclusive os que não atingiram o quociente eleitoral).

Logo, como se pode ver pelo quadro demonstrativo, não há nenhuma dúvida de que a distribuição dos cinco mandatos que restam após a distribuição através do coeficiente eleitoral nacional (49618,5) cabem, em primeiro lugar, ao PDP-ANA que tem 32952 votos de restos, depois a ND que tem de restos 27522,5, em terceiro lugar, a UNITA que tem 25322,5, em quarto, lugar a FNLA que tem 21797,5 e finalmente ao PLD que tem 21341. Assim sendo, O Tribunal Constitucional devia fazer a justiça de dar os lugares ao PDP-ANA e ao PLD.

Ao desprezar os votos das restantes nove formações políticas concorrentes o Tribunal Constitucional contrariou um dos principais méritos da representação proporcional integral que é a de "não deixar votos ociosos ou perdidos".

Quanto aos círculos provinciais bastava perguntar se a Lei Constitucional estabelece alguma diferença entre estes e o círculo nacional e os círculos do estrangeiro? A resposta é não! A Lei Constitucional estabelece um mesmo regime para os três círculos: o sistema proporcional (sem mais, ou seja, “puro” ou “integral”). Logo, o legislador comum não está autorizado a fazê-lo. Mais, o elemento histórico (que é importante em sede de interpretação da lei, contrariamente aquilo que considera o TC) indica que se a lei eleitoral de Agosto de 1992 consagrava o sistema de Hondt mas a Lei Constitucional de Setembro de 1992 não o consagrou é porque ele não queria e defendia um sistema proporcional integral para todos os círculos. E, tanto é assim, que as várias fontes constituintes da transição, sempre defenderam esse princípio que estava subjacente a ideia de um círculo nacional único que era o que estava consagrado nos Acordo de Bicesse (Maio de 1991) e que foi defendido na Primeira Reunião Multipartidária (Janeiro de 1992) pela maioria dos partidos presentes. Somente na bilateral do governo com a Unita a representação repartida entre um círculo nacional, 18 círculos provinciais e 2 do estrangeiro foi consagrada (vide Raul Araújo, Sistema e processos eleitorais, ibdem, p. 130-131). Mas também aí não foi consagrado o sistema de Hondt. Por isso, o Tribunal Constitucional tinha todos os meios e conhecimento para esclarecer a vontade do legislador constitucional de 1992.

Ora, se isto é tão transparente quanto fica demonstrado, se todos os constitucionalistas do regime sabem bem disto, porque terão eles virado o bico ao prego dizendo coisa diversa? Porquê esta “deriva deliberativa”, sabendo eles, porque são pessoas inteligentes, que isso iria trazer prejuízo para a sua imagem de isenção e integridade? A única explicação que posso encontrar é que havia uma força absoluta que lhe impôs esse comportamento. Não é por acaso que se dizia que o Príncipe não queria mais do que cinco formações na Assembleia Nacional e, sobretudo, não queria lá a presença de determinadas formações políticas. E, por isto, a batota não foi somente nos votos, continuou também na distribuição de mandatos e o Tribunal Constitucional “ratificou-a”.

O LEÃO E AS CABRAS

Não tenhamos ilusões, deixar a iniciativa da democracia nas mãos do partido de poder, sobretudo agora, é como entregar cabras à guarda do leão, confiando na promessa deste de que não as vai devorar. Ora, está na natureza do leão comer as abras!

Nelson Pestana (Bonavena)*

Volvidas três semanas após as eleições, publicados os resultados definitivos e estando em vias de tomar posse a nova câmara legislativa, com nova batota na distribuição dos mandatos, podemos afirmar com segurança que o “novo ciclo político”, anunciado por José Eduardo dos Santos, não é seguramente o da consolidação e alargamento da democracia, nem tão pouco o da construção de um Estado Social de Direito, como era propósito da FpD.
O partido no poder nunca deu provas de ter abandonado a ditadura, pelo contrário, durante 16 anos foi sempre a contramão da democracia e apenas gozava de uma maioria simples. A maioria absoluta serviu sempre como força de imposição, meio de bloqueio ao aprofundamento da democracia na vida política, económica e social. Nunca aceitou o processo de transição para a democracia, apenas o tolerou na medida do possível. Sempre perseguiu a sociedade civil, procurou controla-la, cooptar os seus dirigentes, imobilizou os sindicatos através da corrupção material e moral dos seus líderes, proporcionou benesses as igrejas para gozar de uma cumplicidade geral que lhe proporcionasse um estado de impunidade para as suas arbitrariedades. Em suma, a “legitimidade democrática” foi sempre entendida como a ditadura da maioria.
Ainda não tomaram assento e já estão a abusar do livre arbítrio. Não terem cumprido com a lei até na simples distribuição dos mandatos é uma demonstração mais do que eloquente do que se vai seguir. Afastar a Sonangol da compra das acções do BFA para as entregar a empresa da “filha do Presidente” é outra arbitrariedade no domínio da economia a juntar a tantas outras que já estão a acontecer ou virão em catadupa. O Ministério da Educação reunir com a OPA (organização de massas do partido de poder para as crianças), na sede desta, para analisar a alteração do manual escolar de Educação Cívica, bem como “a realização do Acampamento Nacional do Pioneiro e o Festival da Canção Infantil – está tudo dito no domínio social.
O processo de transição para a democracia está pois comprometido. Quando se diz que agora o papel de oposição tem que ser assumido pela sociedade civil é o reconhecimento de que voltamos aos tempos em que a oposição ao projecto totalitário do partido único era protagonizado pela sociedade civil e pela igreja porque os partidos políticos não podiam ter existência e aquelas organizações tiveram que assumir o papel de partidos de oposição de substituição.
Estamos pois num processo que já teve pontos mais altos do que onde está. Estamos perante um retrocesso que ainda vai mostrar o seu rosto completo. E nada disto é normal. E, toda a análise que ignore a anormalidade que constitui este resultado e, sobretudo, a forma como ele foi conseguido, está muito seguramente inquinada à partida.
Há em muitos intelectuais, jornalistas, caricaturistas e outros tantos um preconceito contra os partidos políticos porque essas pessoas apenas respeitam (ou temem) aquele que eles se habituaram (e continuam teimosamente) a chamar “o partido”. Este preconceito é na verdade a manifestação de uma oposição subliminar à democracia, ao pluralismo em todas as suas manifestações. Na verdade, são partidários da legitimidade exclusiva que está na natureza do partido autoritário corporativo. E, por isso, identificam a “vitória” do partido do poder como “a vitória do povo angolano”. Os discursos da vitória da democracia, vitória de todos e outros cabrolocossos de antes do voto deixaram de aparecer. Agora é hora de aquecer o ferro, onde seguramente voltarão a malhar. O “partido” tem sempre razão e é a “vanguarda do povo” (esse que é o deles e de que os outros, que não pensam como eles, não fazem parte).
E terá sempre razão nas prisões (Lello), nos assassinatos, nas purgas, na marginalização e nas perseguições? Não são hipóteses a descartar. Diante do olhar complacente dos bons e a cumplicidade dos intelectuais “orgânicos” (os Sabatas-intelectuais): haverá muito dinheiro para comprar consciências. O vil metal vai ser associado ao cassetete. A táctica da cenoura e do bastão vai disciplinar o espaço público. Ninguém há-de escapar à sanha autoritária que se adensa como nuvem negra.
Os próximos tempos dividirão as pessoas entre aqueles que defendem a “civilização” e os que defendem a “barbárie”. Também haverá os que assim-assim! Luther King tinha razão: “o que me preocupa não é o barulho dos maus, é o silêncio dos bons”. É uma questão de civilização viver numa sociedade regida por regras. Regras que obrigam a todos e que limitam a acção de cada um (incluindo o poder) em nome da paz civil e da realização da liberdade. Não há pois uma oposição entre liberdade e ordem. A ordem é um elemento constitutivo da liberdade. É este posicionamento que diferencia os democratas dos autoritários. Aqueles que defendem que a ordem se opõe à liberdade e que esta deve se submeter à ordem são defensores da ordem autoritária. Creio pois que aqueles que são partidários da civilização não podem aceitar o livre arbítrio por muito poderosos que sejam os seus partidários e promotores.
Ora, uma das componentes filosóficas do neofacismo angolano que foi durante este tempo meio errante e que será a partir de agora estruturante é precisamente a defesa da ordem em nome da realização de um hipotético bem-comum. Na ordem neofacista, como em todas as ordens em que prevalece o livre arbítrio, a vontade do chefe sobrepõe-se a determinação da lei (incluindo a Lei Constitucional). A vontade deste justifica o uso da coerção.
Governação repressiva, mesmo contra pessoas da mesma família política, (já o fizeram apenas com maioria simples, por exemplo, contra a Reitora da UAN), arrogância e desrespeito pelas instituições, nomeadamente da Justiça, exclusão, controlo pessoal dos recursos minerais e financeiros, corrupção económica, social e moral, política de marginalização ou cooptação acompanhada de repressão da diferença, disciplina autoritária no interior da bancada parlamentar única e partidarização da administração do Estado, num contexto de subalternização do parlamento, bloqueio às comissões de inquérito – que são um mecanismo fundamental para a afirmação da Assembleia Nacional como centro da política nacional que devia ser - como no passado, tudo se irá repetir, só que a uma escala maior (na dimensão da maioria abusiva actual).
Vamos assistir as ditas “oportunidades de negócios” para a corte restrita, a abertura da televisão da filha do chefe e seus aliados, em contraponto da não permissão da extensão do sinal da Rádio Ecclesia e da não autorização das cerca de 40 rádios que há quase uma década esperam pela luz verde do governo. Enquanto que as rádios comunitárias da sociedade civil não terão espaço (a não ser que surjam como piratas, como já têm havido casos) em contrapartida, o poder vai continuar a espalhar os desdobramentos da RNA, em rádios municipais e comunais, tudo muito bem controlado pela central ideológica do regime.
Quem nunca cumpriu um único programa de Governo, nunca cumpriu um único plano quinquenal, aprovados com toda a pompa e circunstância pelos congressos do partido único, vai agora ater-se à sua palavra, só porque ela está condensada numa dita “Agenda Nacional de Consenso”?
Não tenhamos ilusões, deixar a iniciativa da democracia nas mãos do partido de poder, sobretudo agora, é como entregar cabras à guarda do leão, confiando na promessa deste de que não as vai devorar. Ora, está na natureza do leão comer as cabras!

* Cientista Político

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

REFLEXÃO DO OPSA SOBRE AS ELEIÇÕES DE 2008

O processo eleitoral, que culminou com a votação no dia 5 de Setembro de 2008, foi um importante passo para a normalização do sistema político angolano, em especial, no que concerne à legitimação dos mandatos dos representantes à Assembleia Nacional.

Após análise da preparação das eleições, do acto eleitoral e das possíveis tendências do processo político angolano, o OPSA partilha com o público as reflexões que se seguem.

As eleições legislativas representam um enorme progresso para a construção da democracia em Angola. Contudo, o processo demonstrou, no seu todo, que a falta de referências e de práticas afectam a existência de uma cultura democrática a nível de praticamente todos os actores envolvidos. Nesse sentido são de realçar três elementos:
A importância da criação de condições favoráveis à luta de ideias num ambiente de equidade no acesso aos órgãos de informação e de regulação por instituições independentes e autónomas;
A necessidade das instituições públicas e se assegurarem um tratamento igual a todos os actores políticos, principalmente no que toca à liberdade de movimentos e ao cumprimento da lei;
A necessidade de se impedir a mercantilização da política, e de se evitar que o dinheiro ou os bens materiais - em vez das ideias e da cidadania - se transformem na principal determinante do comportamento dos cidadãos e do desfecho do processo.

Da análise do período pré-eleitoral, incluindo a campanha, do acto eleitoral e do apuramento de resultados, realçou-se:

1. O registo eleitoral contou com meios sofisticados e foi no geral considerado de positivo e tendo oferecido as bases para que o processo eleitoral pudesse ser bem conduzido e abrangente. Contudo, a base tecnológica não foi integrada na fase do voto, o que não permitiu a votação com processo biométrico, nem a transmissão electrónica de dados, criando vulnerabilidades desnecessárias à integridade dos dados e ao consequente controlo do processo.
2. A criação ou existência de importantes instituições reguladoras e fiscalizadoras embora em vários casos se tenha verificado que o funcionamento de algumas destas ficou aquém do desejável. Mais concretamente, verificou-se que:
a. O Conselho Nacional para a Comunicação Social (CNCS) foi omisso face à manifesta parcialidade dos órgãos estatais da comunicação social, que frequentemente perderam de vista o seu mandato de servir o público através da oferta de informação isenta, com pluralidade de pontos de vista. Num período de campanha ou pré-campanha seria importante que os media, públicos e privados, servissem de arena para o contraditório entre esses distintos pontos de vista. Tal não aconteceu, e o CNCS, pela sua omissão, poderá ter comprometido a sua relevância e credibilidade. Estranhamente, e contra o que seria de esperar, as próprias rádios privadas deixaram de oferecer ao público, no período de campanha eleitoral, os espaços de debate a que habituou o público de Luanda. Os media públicos posicionaram-se de forma inaceitável a favor do partido no poder. A secção “Tempo de Antena” do Jornal de Angola é um exemplo, infelizmente não raro, do que se afirma, ridicularizando sistematicamente a forma de actuação de quase todos os partidos da oposição.
b. A composição da Comissão Nacional Eleitoral é pouco equilibrada em relação às diferentes sensibilidades políticas, o que, à partida, causa suspeição. Como consequência, verificou-se uma insuficiente interacção com os partidos políticos, queixando-se alguns deles de não terem obtido respostas a técnicas ou petições e reclamações diversas, incluindo por escrito. A educação cívica dos eleitores foi também insuficiente, quer por omissões, quer por mensagens dúbias relativamente ao processo de recolha de assinaturas e de manuseamento dos cartões de eleitor. Embora não estejam ainda publicamente atribuídas as responsabilidades pelos graves problemas que ocorreram no acto eleitoral em vários centros urbanos (como, por exemplo, em Luanda, Benguela, Bié e Lubango), é evidente a falta de competência ou capacidade para gerir o processo. A inexistência de um posto como o de Director Geral das Eleições que havia as eleições de 1992, com um perfil mais técnico, poderia ter mitigado o nível de desorganização verificado. Apesar dos consideráveis recursos disponibilizados e da sua sofisticação, foi penoso o nível de desorganização, no credenciamento dos agentes eleitorais, na distribuição de material para as assembleias de voto, no apoio aos agentes eleitorais durante o acto (muitos foram apoiados pelos cidadãos com água e alimentos) e na remuneração dos mesmos. A falta de clareza em relação às remunerações e a sua não conclusão até agora revela uma incompreensível desorganização. No que respeita ao credenciamento dos observadores, as falhas verificadas permitiram que muitas opiniões pusessem em causa a boa fé da CNE e, consequentemente, a sua credibilidade.
c. A formação do Tribunal Constitucional foi um passo importante para criação do quadro institucional para a regulação do processo. Sendo conhecido que estavam criadas as condições para a criação atempada deste importante órgão, é de lamentar que a sua efectivação tenha sido tão tardia. Este facto resultou em decisões sob a pressão do tempo, atrasos em decisões que eram importantes para orientar o processo uma vez que o Tribunal Supremo não conseguiu dar as respostas necessárias. A ausência de regras claras, como no caso da subscrição, forçou este órgão a pronunciar-se sobre o assunto. Lamentavelmente, como resultado de insuficiências administrativas, muitas candidaturas foram chumbadas devido a atrasos ou irregularidades nos registos criminais e reconhecimento de assinaturas. O Tribunal Constitucional geriu o processo de registo das candidaturas dos partidos com o entendimento que as suas decisões eram essencialmente políticas, e não meramente técnicas, o que foi bastante apropriado para a situação, representando um sinal muito positivo.
d. O comportamento da Polícia Nacional foi, salvo poucas excepções, motivo de elogio de todos e seguramente que contribuiu para criar um ambiente de segurança e estabilidade que é possivelmente o mais importante aspecto positivo de todo este processo. Excepções ao desempenho globalmente positivo foram casos de presença de Polícias no interior de Assembleias de voto sem serem chamados, incluindo no ordenamento de filas, bem como ao transporte de urnas. De realçar ainda como positivo o sistema de ligação telefónica entre a Polícia e os Partidos Políticos durante a campanha eleitoral Este comportamento geralmente positivo contrastou com a posição que alguns agentes tomaram aquando da subscrição dos partidos políticos.
e. A legislação produzida e a criação tardia do Tribunal Constitucional resultaram numa calendarização que só muito tarde permitiu conhecer que partidos iriam participar nas eleições. O comportamento de alguns serviços de notariado dificultaram com preocupante frequência a tarefa dos partidos da oposição de constituírem os seus processos administrativos. Tudo isto prejudicou a pré-campanha e atrasou o acesso a recursos públicos por parte dos partidos da oposição. Essa mesma legislação não parece ter protegido suficientemente os recursos públicos do uso na campanha pelo partido maioritário. Assim, tanto o tempo de funcionários públicos, como o uso de meios de transporte e outros meios logísticos parecem ter ficado à disposição no partido do poder sem qualquer possibilidade de controlo por parte de algumas instituições competentes do Estado e da sociedade. Tal prática resultou por vezes na paralisia de estruturas administrativas do estado e até privadas (bancos) dificultando a vida da população e dos partidos competidores.
f. No geral os partidos da oposição não tiveram capacidade para quebrar a dependência dos recursos públicos e de actuar de forma eficaz num ambiente que não lhes era favorável. A fraca qualidade dos tempos de antena dos partidos da oposição mostra que a falta de acesso aos media públicos não foi o único motivo para as dificuldades de transmissão das suas mensagens ao eleitorado. Garantir um fiscal da oposição em cada mesa de voto parecia ser uma importante meta que deveria ter sido alcançada, se necessário, através de uma maior coordenação entre partidos. O recurso a meios alternativos para comunicação, como acontece em países onde o acesso aos media públicos também não é fácil, poderia ser uma solução para muitos partidos e situações. O retirar de lições e de agir em consequência, será fundamental para o futuro da qualidade do nosso processo político. É de louvar o civismo com que reconheceram a derrota eleitoral e a utilização das instituições adequadas para lidar com as múltiplas reclamações.
g. É também de louvar a sobriedade com que os vencedores festejaram a sua vitória. É aqui de realçar que a sociedade se deve habituar a ver casos a serem levados ao tribunal, como um sinal positivo. Quando há diferença de entendimento em relação a questões fundamentais como a condução de um processo ao eleitoral, são os tribunais o fórum próprio para se conseguir justiça. Nesse sentido foi negativo ouvir alguns pronunciamentos que dramatizaram o recurso ao tribunal para impugnar as eleições de Luanda, quando isso deveria merecer elogios. Reclamar junto de um tribunal é seguramente um direito e não deve ser rotulado de acção que denigre a imagem do país, e os juristas de profissão deveriam estar na linha da frente na defesa desse tipo de acções.
h. Durante o processo eleitoral e o acto de votação, a sociedade civil esteve bastante envolvida numa série de actividades de nível local mas, ao nível macro, revelou-se relativamente ausente ou pouco eficaz. O papel em actividades de educação cívica foi valioso mas limitado. Foram colocadas exigências para o credenciamento dos observadores – certificado de registo criminal – que não tomaram em consideração a morosidade na sua obtenção resultado da excessiva centralização e burocracia dos serviços.
i. A qualidade da observação eleitoral foi afectada pelo aspecto referido acima e por pronunciamentos exagerados ou precipitados e prematuros. Lamentavelmente a observação feita por organizações autónomas da sociedade angolana foi bastante limitada. Numa altura em que se põe em causa, por parte de vários actores, a presença de observadores estrangeiros, essas dificuldades a observadores nacionais põe em causa a credibilidade do processo. Aqui também a actuação dos media públicos não foi correcta, pois as declarações de observadores mais críticas não mereceram o mesmo destaque de outras. O louvor ao nosso comportamento, por parte de entidades estrangeiras, foi quase insultuoso. É como se fossemos pessoas das quais só seria de esperar violência e comportamentos pouco civilizados. Por outro lado, achar que fomos exemplos para África e para o mundo parece excessivo para o nível de organização de que demos mostra.
j. O facto de não ter sido dada informação sobre o número total de eleitores logo após o início da contagem dos votos constituiu uma irregularidade passível de interpretações que conduzem à dúvida, principalmente quando depois surgem resultados anómalos, como os da província do Kuanza Norte, em que o número de votantes é exactamente igual ao dos registados, quando se tem informação de que muitas pessoas registadas na província votaram em Luanda e deve ter havido outros casos de mobilidade, como mortes, por exemplo, ou de absentismo. O enorme número de votos nulos poderá significar um insuficiente trabalho de educação cívica por parte dos partidos e das organizações da sociedade civil. O também elevado nível de abstenção e número de votos em branco podem expressar um sentimento de frustração com os partidos e com a ausência de alternativas.
k. O apuramento poderia ter beneficiado de uma melhor fiscalização e observação na consolidação da informação proveniente das províncias. As discussões em torno do método para apurar os lugares no parlamento mostram que é necessário aperfeiçoar a legislação de forma a não deixar margens para dúvidas.
Pela análise reconheceu-se:
Quão positivo é para Angola a organização regular de eleições para permitir a renovação de mandatos de quem exerce o poder e a consolidação da consciência da soberania popular. O processo de competição pelo poder estimula todos os actores a melhorarem o seu desempenho e a prestarem atenção aos anseios da população, trazendo um considerável potencial de progresso para o país.
A enorme disparidade entre os meios investidos no processo eleitoral e o nível de organização, tendo ficado uma uma vez demonstrada a necessidade de se priorizar o investimento no factor humano, tanto ao nível de habilidades como ao nível da promoção de valores de integridade, imparcialidade e responsabilidade. Para além das lições a retirar da forma como decorreu o processo, parece fundamental que se apurem responsabilidades pelas falhas verificadas. Seria desejável que se estudasse objectivamente o processo de Luanda e as possíveis implicações que teve no abstencionismo.
A necessidade de se reforçarem as instituições públicas e a sua capacidade para funcionarem de forma autónoma e protegendo os interesses de todos os cidadãos e os do Estado. Nesse sentido será crucial promover a despartidarização e continuar a descentralização do aparelho do Estado. A despartidarização afigura-se mais difícil neste mandato, dada a dimensão da vitória por parte do MPLA.
A importância de se reforçarem as condições para a livre expressão de ideias e para o debate político em todo o território nacional, através dos media tanto públicos como privados. Nesse sentido, a monitoria dos media e a defesa da independência editorial face aos partidos e aos grandes grupos económicos nacionais e estrangeiros, bem como o desenvolvimento do espaço público revela-se uma necessidade. É de realçar que permitir aos vários actores políticos a expressão das suas ideias nos media públicos não deve limitar-se ao período de campanha, e aos tempos de antena legalmente definidos. A revisão constitucional necessitará de um ambiente aberto e pluralista e de um engajamento da sociedade para além dos alinhamentos partidários.
O desenvolvimento da economia e, em especial, do sector privado nacional, de forma autónoma do poder político, pode permitir que o Estado deixe de ser o maior empregador. As principais empresas privadas devem também deixar de estar fortemente dependentes do poder político, o que facilitará o desenvolvimento de instituições autónomas e de relações mais democráticas.
A importância de continuar a reforçar o Estado de direito estimulando os cidadãos e suas organizações a utilizarem as instituições judiciais para gerirem situações de conflito.
Que o crescimento da economia deve caminhar a par do aprofundamento da democracia e do reforço dos direitos económicos e sociais dos cidadãos, sendo desejável a realização de eleições para o poder local, tão cedo quanto possível.
Angola terá muito a ganhar se a eleição presidencial que se avizinha tomar em conta as lições que podem ser retiradas do presente pleito fazendo sendo feitas as correcções e ajustamentos necessários.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

E. Bonavena e Pablo Picasso: uma comparação

Um ‘grito abafado’ por ‘ovos metálicos que explodem’: a influência nefasta da guerra na poesia de E. Bonavena e na pintura de Pablo Picasso

Guernica. óleo s/tela. 760 x 350 cm. 1937. Museu Reina Sofia

No poema de E. Bonavena “Guernica outra vez”, o eu lírico dialoga com a grande tela de Pablo Picasso, “Guernica”, que se tornou um libelo de toda a Humanidade a qualquer forma de opressão. Com “Guernica”, Picasso escandaliza o mundo ao retratar o bárbaro ataque aéreo à pacata cidade espanhola, na região basca, numa perversa parceria entre a força aérea hitleriana, a Legião Condor, com o ditador Franco durante a guerra civil espanhola.O ataque aconteceu em 26 de abril de 1937. A cidade foi bombardeada por quase três horas em um horário de grande movimento entre os agricultores da região. Estima-se que 40% da população foi morta ou gravemente ferida. Foi a primeira vez na história que uma cidade havia sido bombardeada. Segundo Perktold:“o fato, por ter ocorrido antes dos horrores da Segunda Guerra Mundial, quando cenas dessa natureza passaram a ser banais e quase diárias, tornou-se emblemático. Com Franco, a humanidade ratificou o que já aprendera na Primeira Guerra Mundial: matar pode ser como algumas atividades capitalistas – por atacado.” (PERKTOLD, 2006, p. 6)Picasso toma conhecimento do que acontece a Guernica na festa do 1o. de maio parisiense. Indignado com o brutal ataque aos seus conterrâneos, o artista, radicado em Paris há mais de trinta anos, fecha-se em seu ateliê e começa a elaborar o que seria uma de suas maiores obras, só comparável a “As mulheres de Avignon”, feita em 1907. “Guernica” marca também o início de um artista mais politizado, conduzindo-o aos ideais socialistas e ao expressionismo voraz que o acompanharia no decorrer da Grande Guerra.A genialidade de Picasso em “Guernica”, está no fato de não retratar o bombardeio da cidade basca, mas de um grito. Grito desesperado de todos os elementos da tela, menos o touro. O crítico de arte Fernando Morais ao comentar a obra, esclarece que na tela há:“Um grito calculado, que carrega atrás de si, ou consigo, uma rigorosa estrutura plástica. Não é a representação anedótica de um fato histórico, mas a sua reinvenção plástica, uma versão pessoal, na primeira pessoa. E, só por isso, ecoa ainda hoje como obra de arte e como denúncia dos bombardeios que continuam sendo feitos contra cidades, aldeias ou populações indefesas em todo o mundo. Comove por sua dimensão especificamente humana, isto é, política, e envolve por sua dimensão artística.Na simbologia picassiana, o touro representa a força bruta, o mal, por oposição ao cavalo, que representa a inocência, o bem. Se o touro é o homem e o cavalo a mulher, na fase preparatória de Guernica o touro será o fascismo e o cavalo, o povo espanhol. (MORAIS, 1999, p. 22)A importância de “Guernica” se dá por ser uma obra atemporal, porque “tudo ocorre no espaço fechado – um espaço doméstico. No espaço exíguo, (...) a destruição é maior e a extrema fragmentação e a aproximação de corpos de homens e animais aumenta consideravelmente a sensação de dor” (MORAIS, 1999, p. 22). Por valorizar aquilo que é humano, relacionamos a obra com a estupidez e a selvageria ocorridas entre a população angolana. De acordo com Perktold:“O painel é dirigido ao gênero humano e transmite esperança. É, também, fruto da mistura de amor às vítimas e de ódio ao inimigo, de indignação, horror, medo, empatia e da compreensão interna percebida pelo artista espanhol da dificuldade que o homem tem para lidar com o seu semelhante e, por isso, paradoxalmente cheio de humanismo. Ele é o registro (...) a impedir que a carnificina seja esquecida. (...)‘Guernica’ é, antes de tudo, uma manifestação profética do que o homem do século XX, com sua ciência e tecnologia, produziria nos anos seguintes: os mais devastadores artefatos de guerra e as piores idéias totalitárias, de direita e de esquerda.” (PERKTOLD, 2006, p. 6)Incomoda na tela os gritos inaudíveis e as expressões agonizantes das figuras despedaçadas. Os gritos são de pessoas, animais, objetos e sensações. Todos, impotentes sob a devastação propiciada pelo homem, como invoca o poema de Picasso: “gritos de criança, gritos de mulheres, gritos de pássaros, gritos de flores e de pedras, gritos de camas e cadeiras, de potes, gritos de gatos, de papéis de odores” (MORAIS, 1999, p. 22). Apesar de todo o horror de um grito abafado, o painel apresenta uma lâmpada em sua parte superior, alegoria da ciência e da tecnologia, as mesmas que proporcionaram o desumano ataque serão utilizadas para conduzir o homem ao caminho da paz entre os escombros.Como o mural feito por Picasso, que nos convida a uma nova forma de olhar a bestialidade humana, os versos de E. Bonavena demonstram a crueldade da realidade exposta de um conflito fratricida e duradouro.Seguindo o conselho de Henry Matisse, Picasso convenceu-se a pintar o mural como uma “sinfonia monocromática”, o que é compartilhado por E. Bonavena que também não consegue visualizar as cores, no caso, o azul, alegoria do universo onírico, esperança e sonhos inexistentes na Angola dilacerada pela guerra:"Se os meus olhosfossemos olhos de Picassoestariam transbordantesde azul,mas não – não o são." (p. 61)A desgastante situação de guerra entre seus pares, confunde e dispersa os sentidos do eu lírico que coloca em dúvida suas percepções, como nas divagações relatadas nos versos:"E se o fossem,Talvez,não tivessem percebidocomo a menina do Huambotem a pernamais linda do mundoque a outra se foipor um dólar.Talvez, os olhosde Picassonão teriam retidoo castanho-luz do seu olhar (...)Talvez, ou simplesmenteo Biésairia da boca dos cavalosde Guernica,Outra vez!" (p. 61-62)A reutilização e atualização de elementos da obra picassiana para a sangrenta realidade angolana são escancaradas, como na menina mutilada, denunciando o grave problema das minas implantadas por todo o país, causando até os dias atuais acidentes e mortes. Como em Bié, cidade próxima a Huambo, que sofreu violentos ataques no período da guerra, ao retomar o grito do cavalo de “Guernica” que passa a ser o “grito abafado” da população.E. Bonavena encerra “Os Limites da Luz” com o poema dedicado ao amor de outrora e aos ideais não concretizados que perpassam por toda a obra:Destas lágrimas não te digo porque as verti sem querer. Falar-te-ei da tristeza consciente, desta que alimento como talismã para me salvar da saudade. Deixei o sorriso exilado nos teus lábios. Contigo foram também os sonhos. Resta apenas a tua lembrança, como uma nódoa forte que jamais se vai separar do brim onde mora. (p. 73)É, de acordo com Alfredo Bosi, no “reinventar imagens da unidade perdida, eis o modo que a poesia do mito e do sonho encontrou para resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de ver” (BOSI, 1977, p. 155). Assim, o eu lírico “prisioneiro da saudade” assume o direito ao amor e à imaginação contra as agruras vivenciadas por décadas de uma guerra insana, que destruiu os sonhos por um país melhor. Sendo assim, o eu lírico refaz o passado pelos caminhos da palavra que trilha novos percursos para a poesia angolana do século XXI.Pablo Picasso e E. Bonavena, vivenciaram, em momentos distintos, a bestialidade humana perante o seu semelhante. Em um século que presenciou a criação de sangrentas e avassaladoras armas de destruição, o século XXI que se inicia se espanta com a voracidade do neoliberalismo das nações dominantes, ao impor sua maneira política, econômica e cultural de agir, excluindo toda e qualquer forma de expressão e autonomia dos países periféricos.Entretanto, artistas, como os dois analisados aqui, contribuem com seus pares ao denunciar a perversidade com que o poder trata os destinos das populações desfavorecidas. Picasso e E. Bonavena prestam suas colaborações à Humanidade ao fazer ouvir os gritos que suas obras eclodem em nós. Gritos contra a ganância, a estupidez e a violência exacerbada que marcaram e marcam os últimos tempos.Pablo Picasso e E. Bonavena, dois artistas que renovam a esperança no homem, valorizam a condição humana em suas obras. Dois artistas que nos fazem enxergar a luz.
Ricardo Riso

BIBLIOGRAFIA
BONAVENA, E. Os limites da luz. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, Universidade de São Paulo, 1977.
LEITE, Ana Mafalda. Poesia angolana: percursos (des)contínuos. In: Revista Poesia Sempre: Angola e Moçambique nº 23. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2006.
MORAIS, Frederico. Mitos e mitologias de Picasso. In: catálogo da exposição Picasso, Anos de Guerra 1937-1945. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de 27 de julho a 07 de setembro de 1999.
PERKTOLD, Carlos. Sinfonia monocromática. In: Jornal Estado de Minas. Caderno Pensar, p. 6, de 29 de abril de 2006.
Picasso. Coleção Gênios da Arte Vol. VI. Barueri: Girassol; Madri: Susaeta Ediciones, 2007. p. 70.

SECCO, Carmen Lucia Tindó. Sendas de sonho e beleza (algumas reflexões sobre a poesia angolana de hoje). In: CHAVES, Rita; MACEDO, Tânia (ORG). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.