“Em vez de procurar legitimar-se por este meio para se eternizar no poder independentemente da mudança social e da nova consciência nacional, o poder deveria, num país que viveu longos anos de guerra civil, optar, necessariamente, por um discurso sobre as formas de reconciliação e de reconhecimento do Outro”
Nelson Pestana (Bonavena)*
Dois acontecimentos recentes que ocorreram na mesma altura, embora de forma separada e sem aparente relação entre si, chamaram a minha atenção e suscitaram-me uma reflexão sobre o sentido de “nós mesmo”. Um foi um acto de memória, outro um quase fait-divers. O primeiro foi o simpósio sobre Holden Roberto, promovido pela FNLA, em que participaram intelectuais de vários quadrantes políticos, o outro a ida e as declarações in loco da Governadora de Luanda sobre o Mural do Hospital Militar Central, justificando a sua renovação e permanência das palavras de ordem do partido único e da propaganda das suas organizações de massas e departamentos. Este é do registo institucional e o anterior do discurso alternativo.
Os dois factos inscreveram-se em torno da ideia da construção da Nação, das suas representações e da sua função simbólica pois a justificação da governadora, embora tratando-se de propaganda política do partido de poder, falava da preservação do património como legado histórico de uma mesma comunidade, enquanto o Simpósio sobre Holden Roberto visou uma releitura do nacionalismo angolano que contrariasse a versão oficial redutora que privilegia a acção do partido-Estado e desvaloriza, estigmatiza ou mesmo ignora o contributo dos demais movimentos e grupos nacionalistas.
Para mim toda identidade é necessariamente uma “fabricação” que trabalha aspectos da história e da memória de um determinado colectivo com vista a um fim concreto de afirmação e/ou dominação. Esta “fabricação” é quase sempre fruto das elites intelectuais e da imposição de um poder sobre os demais membros da comunidade que a assume e a vivifica, dando-lhe curso e força reprodutiva. Mas, esta construção não é, de todo em todo, arbitrária, baseia-se em factos históricos e produtos sociais determinados.
Mas, apesar disto, pode conter “falsificações” (Christine Messiant dizia que, entre nós, mesmo o passado é imprevisível), o que faz do facto nacionalista angolano um mercado especulativo, tanto quanto qualquer outro, pois cada um dos protagonistas da história procura vender a sua participação, ao melhor preço, melhorando-a ou embelezando-a com artefactos e artifícios, dando azo aquilo que poderia chamar uma especulação da memória participativa. É pois um terreno de concorrência e de exclusão e, por isso, Siona Casimiro, tendo subjacente o 4 de Janeiro, a comemoração de mais um aniversário da revolta da Baixa de Cassanje, escreveu uma bela crónica, transmitida pela Rádio Ecclesia, em que procurava “reintegrar na história” aqueles que dela foram excluídos por razões conjunturais de dominação, atribuindo o incitamento da revolta ao Cónego Manuel das Neves.
O poeta Agostinho Neto tinha uma ideia de Nação que em vista das teorias sobre a Nação se aproxima da ideia de Renan, segundo o qual, o critério que funda a pertença é um princípio espiritual que articula, por um lado, as vivências comuns, ligadas à uma continuidade genealógica e, por outro, a vontade de “viver em comum”, o sentido de ser reconhecido como pertencente a uma dada comunidade. Já a revolução, por ele liderada, apaga as pessoas e toma como referentes os ícones em que algumas delas são transformadas ou que ela própria edifica, o que conduz a exclusão de todos os demais. É o sentido de utilidade para a revolução que determinava a pertença a essa colectividade.
A revolução angolana, protagonizada pelos mais diferentes actores do nacionalismo angolano, é por natureza produtora de exclusão e, in fini, autofágica. A autocracia que lhe imita os passos, não nos propósitos, não na bondade do seu projecto social, mas nos métodos de dominação e reprodução legítima, não quer privilegiar senão a reprodução e o reforço do seu poder. A prova da sua frágil legitimidade democrática, conseguida por golpe eleitoral, é que o regime continua a apostar, como o faz a Governadora de Luanda, em relação ao valor histórico-cultural do Mural do Hospital Central de Luanda, numa versão da história que faz do partido de poder a “vanguarda do povo”, através da qual a Nação se realiza.
No entanto, em vez de procurar legitimar-se por este meio para se eternizar no poder independentemente da mudança social e da nova consciência nacional, o poder deveria, num país que viveu longos anos de guerra civil, optar, necessariamente, por um discurso sobre as formas de reconciliação e de reconhecimento do Outro. A forma como se aceita o Outro, não somente no dia-a-dia mas sobretudo na história e em relação a memória de si, é o traço fundamental a compreender para se explicar os modos e lugares (reais ou de memória) da concretização da unidade nacional e da imagem que se constrói da Nação enquanto comunidade de destino.
As bases sobre as quais se constrói hoje (o discurso sobre) a Nação deveriam, pelo menos na escolha dos seus referentes, ser diferentes do passado período de partido único e não mais insistir nessa ideia bizarra de que o partido único (recauchutado) será a forma ideal de realização da Nação.
Sei que o debate sobre os símbolos nacionais, nomeadamente sobre a bandeira nacional, que virá adrede com a “discussão constitucional”, vai ainda carrear muito desse pensamento que pretende “universalizar” e dar como referente geral, uma experiência particular de um grupo contra outro(s). Isto tem levado a que, no interior de si, a identidade colectiva afecte a identidade singular dos indivíduos em relação à sua integração na estrutura do inconsciente colectivo, resultando na construção de uma fronteira imaginada entre núcleos culturais e, sobretudo, entre indivíduos. Pelo que a Nação aparece como um imaginário a geometria variável que dá a cada indivíduo uma visão diferente, a cada apreciação diferenciada.
Mas, sendo a Nação fundada sobre o imaginário colectivo, as paixões e fantasmas de “nós mesmo”, caracteriza-se também pela convivência do simbólico da diferença cultural e das representações do Outro. E, isto, é que é importante e mobilizador de todos nós e não insistir nos ganhos de uma crise de identidade (a guerra civil) apenas porque se detém o monopólio da força.
* Cientista político
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