"A oligarquia fidelista prepara-se para se transformar nos ricos do futuro, como ocorreu no Leste europeu"
O homem do pós-Fidel, o mais respeitado dissidente cubano, diz que o fim do comunismo depende apenas do "fatalismo biológico": a morte do ditador.
José Eduardo Barella
José Eduardo Barella
Fidel Castro mandou para a cadeia os principais dissidentes de Cuba – mas não prendeu Oswaldo Payá, de 51 anos, o mais conhecido deles. O cuidado se deve ao fato de esse dissidente ser uma celebridade internacional. Só neste ano, ele conversou com o papa no Vaticano, encontrou-se com o secretário de Estado Colin Powell, em Washington, e teve seu nome incluído entre os candidatos ao Prêmio Nobel da Paz. O que faz desse católico praticante, que fundou e dirige o Movimento Cristão Libertação, uma referência para o futuro de Cuba é sua bem articulada proposta de uma transição pacífica para a democracia. Payá é também o mentor do Projeto Varella, o abaixo-assinado pedindo abertura política. Em Havana, onde trabalha como engenheiro de manutenção de equipamentos hospitalares, ele não dá um passo sem ser seguido pela polícia. Mas não se deixa intimidar. Ainda menino, foi o único aluno de sua escola primária que se recusou a entrar para a Juventude Comunista. Adolescente, liderou uma manifestação contra a invasão soviética da Checoslováquia, em 1968. Por isso, passou três anos num campo de trabalhos forçados. Casado e pai de três filhos adolescentes, Payá falou a VEJA, por telefone, de sua casa em Havana.
Veja – Recentemente Fidel Castro prendeu e condenou os principais dissidentes cubanos. Por que o senhor continua solto?
Payá – Ninguém sabe dizer. Como o próprio Fidel Castro já me acusou publicamente de traidor e aliado dos Estados Unidos, acredito que posso ser preso a qualquer momento. A pergunta correta deveria ser por que dezenas de pessoas foram presas e condenadas sem que fossem encontradas com elas bombas nem planos subversivos. O crime delas foi reclamar seus direitos e expressar suas opiniões. Estamos chamando esses ativistas de "prisioneiros da primavera de Cuba". A exemplo do movimento esmagado pelos tanques soviéticos na Checoslováquia em 1968, estamos lutando de modo pacífico por mudanças.
Veja – Vários políticos e intelectuais fora de Cuba, incluindo alguns brasileiros, deram apoio a Fidel depois da prisão de dissidentes e das execuções ordenadas pelo regime cubano. O que o senhor acha disso?
Payá – Esse é um tema espinhoso para nós. O problema é que sempre houve uma grande desinformação sobre a realidade cubana. Todo o bloco soviético, incluindo o governo cubano, foi especialista em lançar uma imagem falsa de nosso país. O mundo sempre viu Cuba como a ilha da liberdade, povoada de líderes revolucionários, legendários e românticos. Tivemos de tudo aqui, menos liberdade e igualdade. Desde o início vigorou um sistema de castas, no qual a palavra de um único homem sempre foi incontestável. Por ter apoiado Fidel, infelizmente, a América Latina tem uma dívida para com os cubanos.
Veja – Por que tão poucos cubanos participam das manifestações contra as prisões?
Payá – Existe uma cultura do medo arraigada em Cuba há décadas. Os indicadores de insatisfação do povo em regimes totalitários não são os mesmos de um país democrático. Não é possível medir o sentimento do povo cubano por seu silêncio diante das condenações. E tampouco pelas praças lotadas nas manifestações convocadas pelo governo. O totalitarismo se expressa por meio de mecanismos de controle que exerce sobre a população. Posso garantir que a maioria dos cubanos rechaça essas condenações. O governo nunca permitiu que o Projeto Varella fosse divulgado nos meios de comunicação oficiais.
Veja – Por que o senhor decidiu organizar o Projeto Varella?
Payá – Porque Cuba precisa de mudanças profundas e pacíficas que sejam realizadas pelos próprios cubanos. Não há Estado de direito em Cuba e isso levou a maioria da população a uma situação de exclusão dentro do próprio país. O regime controla todos os aspectos da vida da população. Se um cubano pode trocar de casa ou de emprego, e o que se pode comprar ou vender – até isso está sob controle. Há uma vigilância completa sobre os cidadãos, o que inibe qualquer possibilidade de crescimento pessoal ou de liberdade individual. O Projeto Varella nasceu para que cada cubano possa recuperar o direito de programar o próprio futuro, sem intervenção do governo.
Veja – O senhor acredita que uma mobilização pacífica seja capaz de provocar a abertura política?
Payá – Sim, pois nosso projeto é apoiado pela Constituição cubana. Há um artigo que diz que, se 10 000 cidadãos apoiarem um projeto de lei, ele deve ser discutido na Assembléia Nacional. O Projeto Varella, que recolheu 11.000 assinaturas, consiste em pedir um referendo para que o povo decida sobre mudanças nas leis para garantir os direitos enunciados na Constituição e que não são respeitados, como os de liberdade de expressão e de associação. O segundo ponto é a libertação dos presos políticos que não tenham atentado contra a vida de ninguém. O terceiro ponto é permitir que os cubanos possuam um negócio próprio. Hoje, os estrangeiros podem ter uma empresa em Cuba, mas esse benefício é proibido aos cubanos. O quarto ponto é que os cubanos possam escolher livremente os deputados à Assembléia Nacional. No sistema atual, 609 candidatos, todos indicados pelo Partido Comunista, concorrem às 609 cadeiras de deputados.
Veja – Se houvesse uma eleição livre hoje, Fidel seria eleito?
Payá – Posso assegurar que não. Por isso o governo não se atreve a aceitar essa possibilidade. É claro que Fidel certamente venceria uma eleição com as regras do atual regime, nesse ambiente de terror. Mas, com liberdade partidária e de escolha, o resultado seria outro. Foi o que aconteceu em outros países socialistas, como a Polônia ou a Romênia. O que temos aqui é um regime que não quer mudar nada e uma população que precisa de todas as mudanças. E não podemos reduzir a discussão em termos de esquerda ou direita. É um erro e um insulto dizer que esse regime é de esquerda. Os homens de esquerda aqui em Cuba estão presos.
Veja – Muitos dizem que uma reforma política só será possível em Cuba após a morte de Fidel Castro. O senhor concorda?
Payá – Sim, é o que chamamos aqui de "fatalismo biológico". É terrível. Quanto mais o tempo passa, mais aumentam as tensões, a pobreza e o poder econômico da oligarquia comunista. Neste momento, ela está se preparando para se transformar nos ricos do futuro, a exemplo do que ocorreu com a classe dirigente em vários países da Europa Oriental no ocaso do comunismo.
Veja – O senhor acha que o regime comunista de Cuba não tem futuro?
Payá – Não. Aliás, não tem sequer presente. O regime não tem mais projeto, exceto o de manter seu poder e seus privilégios. Estamos diante de uma crise insolúvel. É o antagonismo entre os direitos do povo e essa forma absoluta de poder. Se chamam isso de comunismo, não vou discutir a teoria.
Veja – Quais são as medidas mais urgentes para tirar o país da crise econômica e social que ele atravessa?
Payá – É preciso reconhecer que Cuba tem suas particularidades. A produtividade é baixa, assim como os salários, e muito disso decorre da perseguição a muitas atividades e iniciativas individuais. Por outro lado, há uma minoria encastelada no governo e no Partido Comunista que controla toda a atividade econômica, das empresas estatais à cotação do dólar. As primeiras medidas, portanto, devem ser para garantir a sobrevivência da maioria dos cubanos, o que inclui a alimentação. Também é preciso liberar as potencialidades criativas de trabalho e de acesso ao próprio negócio dos cubanos. O país está parado. Os únicos setores em atividade são aqueles que o governo precisa manter funcionando para assegurar a própria sobrevivência. É errado supor que essa revitalização seria o primeiro passo rumo a um amplo programa de privatização, como afirma o governo. Pelo contrário, com mais impostos, haveria mais empregos, produção e condições para o Estado investir nos serviços públicos.
Veja – Como o senhor vai agir, agora que a maioria dos líderes dissidentes está na cadeia?
Payá – Há algo novo, que o medo e o terror não conseguiram paralisar. Muitas pessoas que estavam trabalhando no Projeto Varella já avisaram que pretendem continuar. Outras nos procuraram para dizer que, mais do que nunca, estão dispostas a participar. Os cubanos começaram a abrir os olhos para a falta de liberdade. Muitos que apoiavam o governo perceberam que, ao fazer uma crítica, passaram a ser perseguidos ou excluídos. E, pela primeira vez, a maioria dos exilados em Miami apóia uma solução nascida e desenvolvida em Cuba. O fato de termos tantas adesões mostra que o regime está acabando.
Veja – Os amigos de Fidel dizem que a falta de liberdade é um preço justo que os cubanos pagam para ter sistemas de saúde e de educação gratuitos. O senhor concorda?
Payá – É preciso lembrar que antes da revolução Cuba já tinha um dos melhores serviços de educação e saúde da América Latina, na maior parte geridos por organizações sem fins lucrativos. Com o regime comunista e a ajuda da União Soviética, eles foram ampliados, melhorados e se tornaram gratuitos. O que queremos para o futuro é manter a gratuidade desses sistemas e construir um novo país com todos os direitos. É um mito dizer que, para manter esses serviços, o povo precisa sacrificar tantas liberdades e necessidades materiais. Mesmo porque esses sistemas gratuitos são apenas uma sombra do que foram no passado. Ou seja, não temos mais a excelência desses serviços, tampouco justiça e liberdade. De 1959 para cá, dezenas de países obtiveram avanços no aspecto social sem sacrificar valores como a democracia e os direitos humanos.
Veja – O bloqueio econômico americano atrapalha tanto como Fidel alega ou é apenas uma desculpa para justificar os erros do governo cubano?
Payá – O governo americano decretou o embargo em represália ao confisco de propriedades de cidadãos americanos em Cuba. Só depois disso Cuba se transformou numa peça do jogo estratégico da Guerra Fria. A ajuda soviética fez com que o governo cubano ignorasse o bloqueio americano durante anos. O tema do embargo só foi retomado com o fim da União Soviética. Nunca apoiei o bloqueio ou qualquer outra lei americana como forma de pressionar por mudanças em Cuba. As reformas devem ser discutidas e feitas por cubanos. É claro que o embargo tem sido um recurso político usado pelo regime. Mas é preciso lembrar que, além do embargo americano, há um outro – o do governo cubano contra a própria população do país. Os cubanos não podem viajar, nem fazer negócios livremente com o Brasil, por exemplo. Mas o governo cubano pode. Ou seja, não é correto que estrangeiros tenham direito de montar uma empresa aqui, enquanto os cubanos continuam excluídos desse e de outros direitos em seu próprio país.
Veja – Se os EUA tentassem fazer com Cuba o que fizeram no Iraque, os cubanos lutariam por Fidel?
Payá – Essa pergunta sobrepõe duas realidades que parecem ser a mesma coisa e, na verdade, não são. Uma coisa é Fidel Castro, a outra é o povo cubano. Não queremos intervenção estrangeira, tampouco esse regime que aí está. Também não desejamos escolher entre uma coisa e outra. Já fizemos nossa opção: queremos mudanças, liberdade, democracia, transformações pacíficas e diálogo nacional.
Veja – O senhor tem sido ameaçado pelo regime?
Payá – As ameaças são públicas. O governo se refere ao Projeto Varella como uma manobra bancada pelos Estados Unidos, e a mim como um "líder contra-revolucionário". Há vigilância em redor da minha casa. Chega a ser ridículo. Quando saio de bicicleta, o meio de transporte que costumo usar, sou sempre seguido por uma frota de carros com agentes do governo. Há alguns meses, levei um susto: havia uma ameaça de morte pintada na parede da sala em tinta vermelha, imitando sangue. Também trancaram a porta do lado de fora com pregos.
Veja – Por que o senhor não foi para o exílio?
Payá – Aqui em Cuba não se pergunta por que você vai embora, e sim por que quis ficar. A opção de ficar é de fato um perigo e um sofrimento para minha família. Mas foi aqui que Deus me pôs e meu compromisso é ficar no meu país e com meu povo. Minha fé me sustenta aqui.
Veja – O que Fidel Castro teria a aprender com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que sempre foi seu admirador?
Payá – Ele poderia aprender a se submeter a eleições livres com vários candidatos, para que os cubanos tenham a oportunidade que tiveram Lula e o povo brasileiro de exercer a alternância de poder. Se no Brasil existisse um regime como o de Cuba, os brasileiros nunca poderiam ter fundado sindicatos independentes nem ter criado o Partido dos Trabalhadores. Em suma, o governo nunca deixaria que um líder sindical como Lula emergisse e chegasse à Presidência.
Veja – Recentemente Fidel Castro prendeu e condenou os principais dissidentes cubanos. Por que o senhor continua solto?
Payá – Ninguém sabe dizer. Como o próprio Fidel Castro já me acusou publicamente de traidor e aliado dos Estados Unidos, acredito que posso ser preso a qualquer momento. A pergunta correta deveria ser por que dezenas de pessoas foram presas e condenadas sem que fossem encontradas com elas bombas nem planos subversivos. O crime delas foi reclamar seus direitos e expressar suas opiniões. Estamos chamando esses ativistas de "prisioneiros da primavera de Cuba". A exemplo do movimento esmagado pelos tanques soviéticos na Checoslováquia em 1968, estamos lutando de modo pacífico por mudanças.
Veja – Vários políticos e intelectuais fora de Cuba, incluindo alguns brasileiros, deram apoio a Fidel depois da prisão de dissidentes e das execuções ordenadas pelo regime cubano. O que o senhor acha disso?
Payá – Esse é um tema espinhoso para nós. O problema é que sempre houve uma grande desinformação sobre a realidade cubana. Todo o bloco soviético, incluindo o governo cubano, foi especialista em lançar uma imagem falsa de nosso país. O mundo sempre viu Cuba como a ilha da liberdade, povoada de líderes revolucionários, legendários e românticos. Tivemos de tudo aqui, menos liberdade e igualdade. Desde o início vigorou um sistema de castas, no qual a palavra de um único homem sempre foi incontestável. Por ter apoiado Fidel, infelizmente, a América Latina tem uma dívida para com os cubanos.
Veja – Por que tão poucos cubanos participam das manifestações contra as prisões?
Payá – Existe uma cultura do medo arraigada em Cuba há décadas. Os indicadores de insatisfação do povo em regimes totalitários não são os mesmos de um país democrático. Não é possível medir o sentimento do povo cubano por seu silêncio diante das condenações. E tampouco pelas praças lotadas nas manifestações convocadas pelo governo. O totalitarismo se expressa por meio de mecanismos de controle que exerce sobre a população. Posso garantir que a maioria dos cubanos rechaça essas condenações. O governo nunca permitiu que o Projeto Varella fosse divulgado nos meios de comunicação oficiais.
Veja – Por que o senhor decidiu organizar o Projeto Varella?
Payá – Porque Cuba precisa de mudanças profundas e pacíficas que sejam realizadas pelos próprios cubanos. Não há Estado de direito em Cuba e isso levou a maioria da população a uma situação de exclusão dentro do próprio país. O regime controla todos os aspectos da vida da população. Se um cubano pode trocar de casa ou de emprego, e o que se pode comprar ou vender – até isso está sob controle. Há uma vigilância completa sobre os cidadãos, o que inibe qualquer possibilidade de crescimento pessoal ou de liberdade individual. O Projeto Varella nasceu para que cada cubano possa recuperar o direito de programar o próprio futuro, sem intervenção do governo.
Veja – O senhor acredita que uma mobilização pacífica seja capaz de provocar a abertura política?
Payá – Sim, pois nosso projeto é apoiado pela Constituição cubana. Há um artigo que diz que, se 10 000 cidadãos apoiarem um projeto de lei, ele deve ser discutido na Assembléia Nacional. O Projeto Varella, que recolheu 11.000 assinaturas, consiste em pedir um referendo para que o povo decida sobre mudanças nas leis para garantir os direitos enunciados na Constituição e que não são respeitados, como os de liberdade de expressão e de associação. O segundo ponto é a libertação dos presos políticos que não tenham atentado contra a vida de ninguém. O terceiro ponto é permitir que os cubanos possuam um negócio próprio. Hoje, os estrangeiros podem ter uma empresa em Cuba, mas esse benefício é proibido aos cubanos. O quarto ponto é que os cubanos possam escolher livremente os deputados à Assembléia Nacional. No sistema atual, 609 candidatos, todos indicados pelo Partido Comunista, concorrem às 609 cadeiras de deputados.
Veja – Se houvesse uma eleição livre hoje, Fidel seria eleito?
Payá – Posso assegurar que não. Por isso o governo não se atreve a aceitar essa possibilidade. É claro que Fidel certamente venceria uma eleição com as regras do atual regime, nesse ambiente de terror. Mas, com liberdade partidária e de escolha, o resultado seria outro. Foi o que aconteceu em outros países socialistas, como a Polônia ou a Romênia. O que temos aqui é um regime que não quer mudar nada e uma população que precisa de todas as mudanças. E não podemos reduzir a discussão em termos de esquerda ou direita. É um erro e um insulto dizer que esse regime é de esquerda. Os homens de esquerda aqui em Cuba estão presos.
Veja – Muitos dizem que uma reforma política só será possível em Cuba após a morte de Fidel Castro. O senhor concorda?
Payá – Sim, é o que chamamos aqui de "fatalismo biológico". É terrível. Quanto mais o tempo passa, mais aumentam as tensões, a pobreza e o poder econômico da oligarquia comunista. Neste momento, ela está se preparando para se transformar nos ricos do futuro, a exemplo do que ocorreu com a classe dirigente em vários países da Europa Oriental no ocaso do comunismo.
Veja – O senhor acha que o regime comunista de Cuba não tem futuro?
Payá – Não. Aliás, não tem sequer presente. O regime não tem mais projeto, exceto o de manter seu poder e seus privilégios. Estamos diante de uma crise insolúvel. É o antagonismo entre os direitos do povo e essa forma absoluta de poder. Se chamam isso de comunismo, não vou discutir a teoria.
Veja – Quais são as medidas mais urgentes para tirar o país da crise econômica e social que ele atravessa?
Payá – É preciso reconhecer que Cuba tem suas particularidades. A produtividade é baixa, assim como os salários, e muito disso decorre da perseguição a muitas atividades e iniciativas individuais. Por outro lado, há uma minoria encastelada no governo e no Partido Comunista que controla toda a atividade econômica, das empresas estatais à cotação do dólar. As primeiras medidas, portanto, devem ser para garantir a sobrevivência da maioria dos cubanos, o que inclui a alimentação. Também é preciso liberar as potencialidades criativas de trabalho e de acesso ao próprio negócio dos cubanos. O país está parado. Os únicos setores em atividade são aqueles que o governo precisa manter funcionando para assegurar a própria sobrevivência. É errado supor que essa revitalização seria o primeiro passo rumo a um amplo programa de privatização, como afirma o governo. Pelo contrário, com mais impostos, haveria mais empregos, produção e condições para o Estado investir nos serviços públicos.
Veja – Como o senhor vai agir, agora que a maioria dos líderes dissidentes está na cadeia?
Payá – Há algo novo, que o medo e o terror não conseguiram paralisar. Muitas pessoas que estavam trabalhando no Projeto Varella já avisaram que pretendem continuar. Outras nos procuraram para dizer que, mais do que nunca, estão dispostas a participar. Os cubanos começaram a abrir os olhos para a falta de liberdade. Muitos que apoiavam o governo perceberam que, ao fazer uma crítica, passaram a ser perseguidos ou excluídos. E, pela primeira vez, a maioria dos exilados em Miami apóia uma solução nascida e desenvolvida em Cuba. O fato de termos tantas adesões mostra que o regime está acabando.
Veja – Os amigos de Fidel dizem que a falta de liberdade é um preço justo que os cubanos pagam para ter sistemas de saúde e de educação gratuitos. O senhor concorda?
Payá – É preciso lembrar que antes da revolução Cuba já tinha um dos melhores serviços de educação e saúde da América Latina, na maior parte geridos por organizações sem fins lucrativos. Com o regime comunista e a ajuda da União Soviética, eles foram ampliados, melhorados e se tornaram gratuitos. O que queremos para o futuro é manter a gratuidade desses sistemas e construir um novo país com todos os direitos. É um mito dizer que, para manter esses serviços, o povo precisa sacrificar tantas liberdades e necessidades materiais. Mesmo porque esses sistemas gratuitos são apenas uma sombra do que foram no passado. Ou seja, não temos mais a excelência desses serviços, tampouco justiça e liberdade. De 1959 para cá, dezenas de países obtiveram avanços no aspecto social sem sacrificar valores como a democracia e os direitos humanos.
Veja – O bloqueio econômico americano atrapalha tanto como Fidel alega ou é apenas uma desculpa para justificar os erros do governo cubano?
Payá – O governo americano decretou o embargo em represália ao confisco de propriedades de cidadãos americanos em Cuba. Só depois disso Cuba se transformou numa peça do jogo estratégico da Guerra Fria. A ajuda soviética fez com que o governo cubano ignorasse o bloqueio americano durante anos. O tema do embargo só foi retomado com o fim da União Soviética. Nunca apoiei o bloqueio ou qualquer outra lei americana como forma de pressionar por mudanças em Cuba. As reformas devem ser discutidas e feitas por cubanos. É claro que o embargo tem sido um recurso político usado pelo regime. Mas é preciso lembrar que, além do embargo americano, há um outro – o do governo cubano contra a própria população do país. Os cubanos não podem viajar, nem fazer negócios livremente com o Brasil, por exemplo. Mas o governo cubano pode. Ou seja, não é correto que estrangeiros tenham direito de montar uma empresa aqui, enquanto os cubanos continuam excluídos desse e de outros direitos em seu próprio país.
Veja – Se os EUA tentassem fazer com Cuba o que fizeram no Iraque, os cubanos lutariam por Fidel?
Payá – Essa pergunta sobrepõe duas realidades que parecem ser a mesma coisa e, na verdade, não são. Uma coisa é Fidel Castro, a outra é o povo cubano. Não queremos intervenção estrangeira, tampouco esse regime que aí está. Também não desejamos escolher entre uma coisa e outra. Já fizemos nossa opção: queremos mudanças, liberdade, democracia, transformações pacíficas e diálogo nacional.
Veja – O senhor tem sido ameaçado pelo regime?
Payá – As ameaças são públicas. O governo se refere ao Projeto Varella como uma manobra bancada pelos Estados Unidos, e a mim como um "líder contra-revolucionário". Há vigilância em redor da minha casa. Chega a ser ridículo. Quando saio de bicicleta, o meio de transporte que costumo usar, sou sempre seguido por uma frota de carros com agentes do governo. Há alguns meses, levei um susto: havia uma ameaça de morte pintada na parede da sala em tinta vermelha, imitando sangue. Também trancaram a porta do lado de fora com pregos.
Veja – Por que o senhor não foi para o exílio?
Payá – Aqui em Cuba não se pergunta por que você vai embora, e sim por que quis ficar. A opção de ficar é de fato um perigo e um sofrimento para minha família. Mas foi aqui que Deus me pôs e meu compromisso é ficar no meu país e com meu povo. Minha fé me sustenta aqui.
Veja – O que Fidel Castro teria a aprender com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que sempre foi seu admirador?
Payá – Ele poderia aprender a se submeter a eleições livres com vários candidatos, para que os cubanos tenham a oportunidade que tiveram Lula e o povo brasileiro de exercer a alternância de poder. Se no Brasil existisse um regime como o de Cuba, os brasileiros nunca poderiam ter fundado sindicatos independentes nem ter criado o Partido dos Trabalhadores. Em suma, o governo nunca deixaria que um líder sindical como Lula emergisse e chegasse à Presidência.
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