Nelson Pestana (Bonavena)*Não tenhamos ilusões, deixar a iniciativa da democracia nas mãos do partido de poder, sobretudo agora, é como entregar cabras à guarda do leão, confiando na promessa deste de que não as vai devorar. Ora, está na natureza do leão comer as abras!
Volvidas três semanas após as eleições, publicados os resultados definitivos e estando em vias de tomar posse a nova câmara legislativa, com nova batota na distribuição dos mandatos, podemos afirmar com segurança que o “novo ciclo político”, anunciado por José Eduardo dos Santos, não é seguramente o da consolidação e alargamento da democracia, nem tão pouco o da construção de um Estado Social de Direito, como era propósito da FpD.
O partido no poder nunca deu provas de ter abandonado a ditadura, pelo contrário, durante 16 anos foi sempre a contramão da democracia e apenas gozava de uma maioria simples. A maioria absoluta serviu sempre como força de imposição, meio de bloqueio ao aprofundamento da democracia na vida política, económica e social. Nunca aceitou o processo de transição para a democracia, apenas o tolerou na medida do possível. Sempre perseguiu a sociedade civil, procurou controla-la, cooptar os seus dirigentes, imobilizou os sindicatos através da corrupção material e moral dos seus líderes, proporcionou benesses as igrejas para gozar de uma cumplicidade geral que lhe proporcionasse um estado de impunidade para as suas arbitrariedades. Em suma, a “legitimidade democrática” foi sempre entendida como a ditadura da maioria.
Ainda não tomaram assento e já estão a abusar do livre arbítrio. Não terem cumprido com a lei até na simples distribuição dos mandatos é uma demonstração mais do que eloquente do que se vai seguir. Afastar a Sonangol da compra das acções do BFA para as entregar a empresa da “filha do Presidente” é outra arbitrariedade no domínio da economia a juntar a tantas outras que já estão a acontecer ou virão em catadupa. O Ministério da Educação reunir com a OPA (organização de massas do partido de poder para as crianças), na sede desta, para analisar a alteração do manual escolar de Educação Cívica, bem como “a realização do Acampamento Nacional do Pioneiro e o Festival da Canção Infantil – está tudo dito no domínio social.
O processo de transição para a democracia está pois comprometido. Quando se diz que agora o papel de oposição tem que ser assumido pela sociedade civil é o reconhecimento de que voltamos aos tempos em que a oposição ao projecto totalitário do partido único era protagonizado pela sociedade civil e pela igreja porque os partidos políticos não podiam ter existência e aquelas organizações tiveram que assumir o papel de partidos de oposição de substituição.
Estamos pois num processo que já teve pontos mais altos do que onde está. Estamos perante um retrocesso que ainda vai mostrar o seu rosto completo. E nada disto é normal. E, toda a análise que ignore a anormalidade que constitui este resultado e, sobretudo, a forma como ele foi conseguido, está muito seguramente inquinada à partida.
Há em muitos intelectuais, jornalistas, caricaturistas e outros tantos um preconceito contra os partidos políticos porque essas pessoas apenas respeitam (ou temem) aquele que eles se habituaram (e continuam teimosamente) a chamar “o partido”. Este preconceito é na verdade a manifestação de uma oposição subliminar à democracia, ao pluralismo em todas as suas manifestações. Na verdade, são partidários da legitimidade exclusiva que está na natureza do partido autoritário corporativo. E, por isso, identificam a “vitória” do partido do poder como “a vitória do povo angolano”. Os discursos da vitória da democracia, vitória de todos e outros cabrolocossos de antes do voto deixaram de aparecer. Agora é hora de aquecer o ferro, onde seguramente voltarão a malhar. O “partido” tem sempre razão e é a “vanguarda do povo” (esse que é o deles e de que os outros, que não pensam como eles, não fazem parte).
E terá sempre razão nas prisões (Lello), nos assassinatos, nas purgas, na marginalização e nas perseguições? Não são hipóteses a descartar. Diante do olhar complacente dos bons e a cumplicidade dos intelectuais “orgânicos” (os Sabatas-intelectuais): haverá muito dinheiro para comprar consciências. O vil metal vai ser associado ao cassetete. A táctica da cenoura e do bastão vai disciplinar o espaço público. Ninguém há-de escapar à sanha autoritária que se adensa como nuvem negra.
Os próximos tempos dividirão as pessoas entre aqueles que defendem a “civilização” e os que defendem a “barbárie”. Também haverá os que assim-assim! Luther King tinha razão: “o que me preocupa não é o barulho dos maus, é o silêncio dos bons”. É uma questão de civilização viver numa sociedade regida por regras. Regras que obrigam a todos e que limitam a acção de cada um (incluindo o poder) em nome da paz civil e da realização da liberdade. Não há pois uma oposição entre liberdade e ordem. A ordem é um elemento constitutivo da liberdade. É este posicionamento que diferencia os democratas dos autoritários. Aqueles que defendem que a ordem se opõe à liberdade e que esta deve se submeter à ordem são defensores da ordem autoritária. Creio pois que aqueles que são partidários da civilização não podem aceitar o livre arbítrio por muito poderosos que sejam os seus partidários e promotores.
Ora, uma das componentes filosóficas do neofacismo angolano que foi durante este tempo meio errante e que será a partir de agora estruturante é precisamente a defesa da ordem em nome da realização de um hipotético bem-comum. Na ordem neofacista, como em todas as ordens em que prevalece o livre arbítrio, a vontade do chefe sobrepõe-se a determinação da lei (incluindo a Lei Constitucional). A vontade deste justifica o uso da coerção.
Governação repressiva, mesmo contra pessoas da mesma família política, (já o fizeram apenas com maioria simples, por exemplo, contra a Reitora da UAN), arrogância e desrespeito pelas instituições, nomeadamente da Justiça, exclusão, controlo pessoal dos recursos minerais e financeiros, corrupção económica, social e moral, política de marginalização ou cooptação acompanhada de repressão da diferença, disciplina autoritária no interior da bancada parlamentar única e partidarização da administração do Estado, num contexto de subalternização do parlamento, bloqueio às comissões de inquérito – que são um mecanismo fundamental para a afirmação da Assembleia Nacional como centro da política nacional que devia ser - como no passado, tudo se irá repetir, só que a uma escala maior (na dimensão da maioria abusiva actual).
Vamos assistir as ditas “oportunidades de negócios” para a corte restrita, a abertura da televisão da filha do chefe e seus aliados, em contraponto da não permissão da extensão do sinal da Rádio Ecclesia e da não autorização das cerca de 40 rádios que há quase uma década esperam pela luz verde do governo. Enquanto que as rádios comunitárias da sociedade civil não terão espaço (a não ser que surjam como piratas, como já têm havido casos) em contrapartida, o poder vai continuar a espalhar os desdobramentos da RNA, em rádios municipais e comunais, tudo muito bem controlado pela central ideológica do regime.
Quem nunca cumpriu um único programa de Governo, nunca cumpriu um único plano quinquenal, aprovados com toda a pompa e circunstância pelos congressos do partido único, vai agora ater-se à sua palavra, só porque ela está condensada numa dita “Agenda Nacional de Consenso”?
Não tenhamos ilusões, deixar a iniciativa da democracia nas mãos do partido de poder, sobretudo agora, é como entregar cabras à guarda do leão, confiando na promessa deste de que não as vai devorar. Ora, está na natureza do leão comer as cabras!
* Cientista Político
Sem comentários:
Enviar um comentário