quinta-feira, 2 de outubro de 2008

E. Bonavena e Pablo Picasso: uma comparação

Um ‘grito abafado’ por ‘ovos metálicos que explodem’: a influência nefasta da guerra na poesia de E. Bonavena e na pintura de Pablo Picasso

Guernica. óleo s/tela. 760 x 350 cm. 1937. Museu Reina Sofia

No poema de E. Bonavena “Guernica outra vez”, o eu lírico dialoga com a grande tela de Pablo Picasso, “Guernica”, que se tornou um libelo de toda a Humanidade a qualquer forma de opressão. Com “Guernica”, Picasso escandaliza o mundo ao retratar o bárbaro ataque aéreo à pacata cidade espanhola, na região basca, numa perversa parceria entre a força aérea hitleriana, a Legião Condor, com o ditador Franco durante a guerra civil espanhola.O ataque aconteceu em 26 de abril de 1937. A cidade foi bombardeada por quase três horas em um horário de grande movimento entre os agricultores da região. Estima-se que 40% da população foi morta ou gravemente ferida. Foi a primeira vez na história que uma cidade havia sido bombardeada. Segundo Perktold:“o fato, por ter ocorrido antes dos horrores da Segunda Guerra Mundial, quando cenas dessa natureza passaram a ser banais e quase diárias, tornou-se emblemático. Com Franco, a humanidade ratificou o que já aprendera na Primeira Guerra Mundial: matar pode ser como algumas atividades capitalistas – por atacado.” (PERKTOLD, 2006, p. 6)Picasso toma conhecimento do que acontece a Guernica na festa do 1o. de maio parisiense. Indignado com o brutal ataque aos seus conterrâneos, o artista, radicado em Paris há mais de trinta anos, fecha-se em seu ateliê e começa a elaborar o que seria uma de suas maiores obras, só comparável a “As mulheres de Avignon”, feita em 1907. “Guernica” marca também o início de um artista mais politizado, conduzindo-o aos ideais socialistas e ao expressionismo voraz que o acompanharia no decorrer da Grande Guerra.A genialidade de Picasso em “Guernica”, está no fato de não retratar o bombardeio da cidade basca, mas de um grito. Grito desesperado de todos os elementos da tela, menos o touro. O crítico de arte Fernando Morais ao comentar a obra, esclarece que na tela há:“Um grito calculado, que carrega atrás de si, ou consigo, uma rigorosa estrutura plástica. Não é a representação anedótica de um fato histórico, mas a sua reinvenção plástica, uma versão pessoal, na primeira pessoa. E, só por isso, ecoa ainda hoje como obra de arte e como denúncia dos bombardeios que continuam sendo feitos contra cidades, aldeias ou populações indefesas em todo o mundo. Comove por sua dimensão especificamente humana, isto é, política, e envolve por sua dimensão artística.Na simbologia picassiana, o touro representa a força bruta, o mal, por oposição ao cavalo, que representa a inocência, o bem. Se o touro é o homem e o cavalo a mulher, na fase preparatória de Guernica o touro será o fascismo e o cavalo, o povo espanhol. (MORAIS, 1999, p. 22)A importância de “Guernica” se dá por ser uma obra atemporal, porque “tudo ocorre no espaço fechado – um espaço doméstico. No espaço exíguo, (...) a destruição é maior e a extrema fragmentação e a aproximação de corpos de homens e animais aumenta consideravelmente a sensação de dor” (MORAIS, 1999, p. 22). Por valorizar aquilo que é humano, relacionamos a obra com a estupidez e a selvageria ocorridas entre a população angolana. De acordo com Perktold:“O painel é dirigido ao gênero humano e transmite esperança. É, também, fruto da mistura de amor às vítimas e de ódio ao inimigo, de indignação, horror, medo, empatia e da compreensão interna percebida pelo artista espanhol da dificuldade que o homem tem para lidar com o seu semelhante e, por isso, paradoxalmente cheio de humanismo. Ele é o registro (...) a impedir que a carnificina seja esquecida. (...)‘Guernica’ é, antes de tudo, uma manifestação profética do que o homem do século XX, com sua ciência e tecnologia, produziria nos anos seguintes: os mais devastadores artefatos de guerra e as piores idéias totalitárias, de direita e de esquerda.” (PERKTOLD, 2006, p. 6)Incomoda na tela os gritos inaudíveis e as expressões agonizantes das figuras despedaçadas. Os gritos são de pessoas, animais, objetos e sensações. Todos, impotentes sob a devastação propiciada pelo homem, como invoca o poema de Picasso: “gritos de criança, gritos de mulheres, gritos de pássaros, gritos de flores e de pedras, gritos de camas e cadeiras, de potes, gritos de gatos, de papéis de odores” (MORAIS, 1999, p. 22). Apesar de todo o horror de um grito abafado, o painel apresenta uma lâmpada em sua parte superior, alegoria da ciência e da tecnologia, as mesmas que proporcionaram o desumano ataque serão utilizadas para conduzir o homem ao caminho da paz entre os escombros.Como o mural feito por Picasso, que nos convida a uma nova forma de olhar a bestialidade humana, os versos de E. Bonavena demonstram a crueldade da realidade exposta de um conflito fratricida e duradouro.Seguindo o conselho de Henry Matisse, Picasso convenceu-se a pintar o mural como uma “sinfonia monocromática”, o que é compartilhado por E. Bonavena que também não consegue visualizar as cores, no caso, o azul, alegoria do universo onírico, esperança e sonhos inexistentes na Angola dilacerada pela guerra:"Se os meus olhosfossemos olhos de Picassoestariam transbordantesde azul,mas não – não o são." (p. 61)A desgastante situação de guerra entre seus pares, confunde e dispersa os sentidos do eu lírico que coloca em dúvida suas percepções, como nas divagações relatadas nos versos:"E se o fossem,Talvez,não tivessem percebidocomo a menina do Huambotem a pernamais linda do mundoque a outra se foipor um dólar.Talvez, os olhosde Picassonão teriam retidoo castanho-luz do seu olhar (...)Talvez, ou simplesmenteo Biésairia da boca dos cavalosde Guernica,Outra vez!" (p. 61-62)A reutilização e atualização de elementos da obra picassiana para a sangrenta realidade angolana são escancaradas, como na menina mutilada, denunciando o grave problema das minas implantadas por todo o país, causando até os dias atuais acidentes e mortes. Como em Bié, cidade próxima a Huambo, que sofreu violentos ataques no período da guerra, ao retomar o grito do cavalo de “Guernica” que passa a ser o “grito abafado” da população.E. Bonavena encerra “Os Limites da Luz” com o poema dedicado ao amor de outrora e aos ideais não concretizados que perpassam por toda a obra:Destas lágrimas não te digo porque as verti sem querer. Falar-te-ei da tristeza consciente, desta que alimento como talismã para me salvar da saudade. Deixei o sorriso exilado nos teus lábios. Contigo foram também os sonhos. Resta apenas a tua lembrança, como uma nódoa forte que jamais se vai separar do brim onde mora. (p. 73)É, de acordo com Alfredo Bosi, no “reinventar imagens da unidade perdida, eis o modo que a poesia do mito e do sonho encontrou para resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de ver” (BOSI, 1977, p. 155). Assim, o eu lírico “prisioneiro da saudade” assume o direito ao amor e à imaginação contra as agruras vivenciadas por décadas de uma guerra insana, que destruiu os sonhos por um país melhor. Sendo assim, o eu lírico refaz o passado pelos caminhos da palavra que trilha novos percursos para a poesia angolana do século XXI.Pablo Picasso e E. Bonavena, vivenciaram, em momentos distintos, a bestialidade humana perante o seu semelhante. Em um século que presenciou a criação de sangrentas e avassaladoras armas de destruição, o século XXI que se inicia se espanta com a voracidade do neoliberalismo das nações dominantes, ao impor sua maneira política, econômica e cultural de agir, excluindo toda e qualquer forma de expressão e autonomia dos países periféricos.Entretanto, artistas, como os dois analisados aqui, contribuem com seus pares ao denunciar a perversidade com que o poder trata os destinos das populações desfavorecidas. Picasso e E. Bonavena prestam suas colaborações à Humanidade ao fazer ouvir os gritos que suas obras eclodem em nós. Gritos contra a ganância, a estupidez e a violência exacerbada que marcaram e marcam os últimos tempos.Pablo Picasso e E. Bonavena, dois artistas que renovam a esperança no homem, valorizam a condição humana em suas obras. Dois artistas que nos fazem enxergar a luz.
Ricardo Riso

BIBLIOGRAFIA
BONAVENA, E. Os limites da luz. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, Universidade de São Paulo, 1977.
LEITE, Ana Mafalda. Poesia angolana: percursos (des)contínuos. In: Revista Poesia Sempre: Angola e Moçambique nº 23. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2006.
MORAIS, Frederico. Mitos e mitologias de Picasso. In: catálogo da exposição Picasso, Anos de Guerra 1937-1945. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de 27 de julho a 07 de setembro de 1999.
PERKTOLD, Carlos. Sinfonia monocromática. In: Jornal Estado de Minas. Caderno Pensar, p. 6, de 29 de abril de 2006.
Picasso. Coleção Gênios da Arte Vol. VI. Barueri: Girassol; Madri: Susaeta Ediciones, 2007. p. 70.

SECCO, Carmen Lucia Tindó. Sendas de sonho e beleza (algumas reflexões sobre a poesia angolana de hoje). In: CHAVES, Rita; MACEDO, Tânia (ORG). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.

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