sexta-feira, 10 de outubro de 2008

O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL E O MEU DESALENTO

A Lei Eleitoral é muito clara ao dizer que “em caso de restarem alguns mandatos, os Deputados são distribuídos em ordem do resto mais forte de cada partido” (art.º 33º, nº 3, al. c). O que quer dizer que o acesso à representação, quando a distribuição de mandatos se revela incompleta após a operação de divisão dos votos validamente expressos de cada partido pelo coeficiente eleitoral nacional, se faz também pela divisão dos restos.

Nelson Pestana (Bonavena)*

O Tribunal Constitucional, dando resposta ao recurso interposto pela FpD sobre a distribuição de mandatos, resultantes das eleições legislativas de 5 de Setembro de 2008, confirmou a deliberação da Comissão Nacional Eleitoral, negando provimento a petição do “partido da árvore”.

A FpD levantava fundamentalmente duas questões (a alusão à “cláusula barreira” era mais um contra-argumento do que uma questão): a primeira, tinham a ver com a distribuição dos restos no círculo nacional, nos termos do artigo 79.º, da Lei Constitucional, e do artigo 33, nº 3, al. c), da Lei Eleitoral. A segunda questão era referente à distribuição dos mandatos dos círculos provinciais, porque se invocava a inconstitucionalidade do art.º 33º, n.º 2, da Lei Eleitoral que determina a distribuição dos mandatos pelo sistema de Hondt, o que é contrário ao que está prescrito na Lei Constitucional que manda aplicar para todos os círculos (nacional, provinciais e do estrangeiro) o mesmo sistema proporcional (puro).

O Tribunal Constitucional, em vez de responder a estas questões, preferiu tergiversar sobre verdades lapalisseanas, numa manobra de diversão que nada aproveitou ao esclarecimento do caso, nem contribuiu para o desenvolvimento doutrinal do país. O Acórdão de nove páginas tem muita palha, jactância justificativa, muita opinião de facto e pouca sustentação jurídica. Um acórdão do Tribunal Constitucional que evita a Constituição é no mínimo estranho. Os juízes que assim procederam desvalorizaram-se aos olhos daqueles que neles depositaram confiança, não aceitando um sentimento de suspeição devido ao facto de terem sido nomeados pelo poder político. Quis acreditar que isto não lhes ia tolher os movimentos, pelo menos, a um certo nível. Não posso deixar de manifestar o meu desalento.

O Acórdão não faz a interpretação do artigo 79º, da Lei Eleitoral, mas tão somente a sua referencia tópica, e busca explica-lo dizendo que “uma das características essenciais do sistema de representação proporcional, previsto no artigo 79º, da Lei Constitucional, é precisamente de que para obter representação parlamentar a força política em causa tem que ultrapassar “um limiar mínimo”. Esta magistral argumentação vai busca-la a dupla de constitucionalistas portugueses, Gomes Canotilho e Vital Moreira.
Para mim e para a grande esmagadora maioria daqueles que escrevem sobre este sistema de representação ou o aplicam, desde o fim do século XIX, o objectivo fundamental do sistema de representação proporcional (integral) é o de reduzir a diferença entre a percentagem de votos obtidos por um partido e a percentagem dos lugares obtidos no parlamento. A sua característica essencial é a de permitir uma representatividade nacional muito próxima da pluralidade política expressa pelo voto. Pois, “os sistemas eleitorais proporcionais pretendem assegurar a representação das diferentes correntes de opinião, em termos que correspondam ao seu peso no universo eleitoral, garantindo a expressão das minorias (A. L. Cardoso, Sistemas eleitorais, Lx, 1993, citação tirada do Acórdão). Deste modo, é tido como o sistema que beneficia os pequenos partidos, por que lhes dá a possibilidade de obter representação na medida exacta da sua expressão, apesar de pequena, porque permite "representar todas as tendências políticas em proporção à sua força numérica" (Dieter Nohlen, “Os sistemas eleitorais entre a ciência e a ficção. Requisitos históricos e teóricos para uma discussão racional”, in M. B. Cruz, (Org.), Sistemas eleitorais: o debate científico, ICS, Universidade de Lisboa, 1998, p. 63).
De qualquer maneira, é confrangedor constatar o viés do Tribunal Constitucional ao dizer que os supracitados constitucionalistas portugueses, ao referir o “limiar mínimo”, se estavam a referir ao coeficiente eleitoral e a descartar os demais partidos da divisão de restos. É confrangedor ver o Tribunal Constitucional torcer a coisa a favor da solução que tinha que ser (a imposta pelo poder) e dizer que o partido que não atinge o coeficiente eleitoral fica de fora da representação nacional, mesmo antes da distribuição dos restos! Como pode uma tal bizarria acontecer se a distribuição de mandatos ainda não terminou e a representação nacional só fica completa com a distribuição dos restos? Como a CNE, primeiro, e o Tribunal Constitucional, depois, colocam fora da representação nacional uma parte dos partidos concorrentes se a atribuição de mandatos ainda não terminou? Com base em que fundamento constitucional ou legal o Tribunal Constitucional dá como procedente a ideia de que os partidos concorrentes que não atingem o quociente eleitoral nacional ficam de fora da distribuição de restos? Na dúvida, porque é que o Tribunal Constitucional não levou em consideração o facto (histórico) de que em 1992 se procedeu precisamente conforme diz a actual Lei Eleitoral?

A Lei Eleitoral é muito clara ao dizer que “em caso de restarem alguns mandatos, os Deputados são distribuídos em ordem do resto mais forte de cada partido” (art.º 33º, nº 3, al. c). O que quer dizer que o acesso à representação, quando a distribuição de mandatos se revela incompleta após a operação de divisão dos votos validamente expressos de cada partido pelo coeficiente eleitoral nacional, se faz também pela divisão dos restos. Há várias formas de o fazer (não estou interessado na jactância provinciana de reproduzir aqui essas formas que se podem encontrar facilmente através de um simples clic de um rato). Todos, no entanto, concordam num aspecto que se revela fundamental aqui: é que os votos a considerar são todos aqueles que não obtiveram representação na primeira operação de distribuição através do coeficiente eleitoral.

Quadro demonstrativo: CÍRCULO NACIONAL (130 ASSENTOS)


PARTIDO VOTOS MANDATOS RESTOS TOTAL DE
INTEIROS DEPUTADOS
MPLA 5266216 106 6653 106
UNITA 670363 13 25322,5 (+1) 14
PRS 204746 4 6272 4
ND 77141 1 27522,5 (+1) 2
FNLA 71416 1 21797,5 (+1) 2
PDP-ANA 32952 0 32952 (+1) 1
PLD 21341 0 21341 (+1) 1
AD-C 18968 0 18968 0
PADEPA 17509 0 17509 0
FpD 17073 0 17073 0
PAJOCA 15535 0 15535 0
PRD 14238 0 14238 0
PPE 12052 0 12052 0
FOFAC 10858 0 10858 0
TOTAIS 6450408 125 - 130

Ou seja, para o sistema proporcional puro, todos os votos que não foram suficientes para obter representação, são considerados “restos”. Basta olhar para o quadro demonstrativo para se perceber que o resto de cada partido é obtido através da subtracção dos votos representados, ao total de votos obtidos por cada partido. Isto é incontroverso e nesse sentido vai Adérito Correia que dizia que no caso da repartição de restos, pelo “resto mais forte”, como prescreve a Lei Eleitoral, art.º 33º, nº 3, al. c), “os lugares por preencher são atribuídos às listas que totalizem um maior número de votos não representados” (vide Sistemas e Processos Eleitorais, FES/UCAN, Luanda, 2001, p. 19. O exemplo inserto por Adérito Correia, neste artigo, inclui todos os partidos inclusive os que não atingiram o quociente eleitoral).

Logo, como se pode ver pelo quadro demonstrativo, não há nenhuma dúvida de que a distribuição dos cinco mandatos que restam após a distribuição através do coeficiente eleitoral nacional (49618,5) cabem, em primeiro lugar, ao PDP-ANA que tem 32952 votos de restos, depois a ND que tem de restos 27522,5, em terceiro lugar, a UNITA que tem 25322,5, em quarto, lugar a FNLA que tem 21797,5 e finalmente ao PLD que tem 21341. Assim sendo, O Tribunal Constitucional devia fazer a justiça de dar os lugares ao PDP-ANA e ao PLD.

Ao desprezar os votos das restantes nove formações políticas concorrentes o Tribunal Constitucional contrariou um dos principais méritos da representação proporcional integral que é a de "não deixar votos ociosos ou perdidos".

Quanto aos círculos provinciais bastava perguntar se a Lei Constitucional estabelece alguma diferença entre estes e o círculo nacional e os círculos do estrangeiro? A resposta é não! A Lei Constitucional estabelece um mesmo regime para os três círculos: o sistema proporcional (sem mais, ou seja, “puro” ou “integral”). Logo, o legislador comum não está autorizado a fazê-lo. Mais, o elemento histórico (que é importante em sede de interpretação da lei, contrariamente aquilo que considera o TC) indica que se a lei eleitoral de Agosto de 1992 consagrava o sistema de Hondt mas a Lei Constitucional de Setembro de 1992 não o consagrou é porque ele não queria e defendia um sistema proporcional integral para todos os círculos. E, tanto é assim, que as várias fontes constituintes da transição, sempre defenderam esse princípio que estava subjacente a ideia de um círculo nacional único que era o que estava consagrado nos Acordo de Bicesse (Maio de 1991) e que foi defendido na Primeira Reunião Multipartidária (Janeiro de 1992) pela maioria dos partidos presentes. Somente na bilateral do governo com a Unita a representação repartida entre um círculo nacional, 18 círculos provinciais e 2 do estrangeiro foi consagrada (vide Raul Araújo, Sistema e processos eleitorais, ibdem, p. 130-131). Mas também aí não foi consagrado o sistema de Hondt. Por isso, o Tribunal Constitucional tinha todos os meios e conhecimento para esclarecer a vontade do legislador constitucional de 1992.

Ora, se isto é tão transparente quanto fica demonstrado, se todos os constitucionalistas do regime sabem bem disto, porque terão eles virado o bico ao prego dizendo coisa diversa? Porquê esta “deriva deliberativa”, sabendo eles, porque são pessoas inteligentes, que isso iria trazer prejuízo para a sua imagem de isenção e integridade? A única explicação que posso encontrar é que havia uma força absoluta que lhe impôs esse comportamento. Não é por acaso que se dizia que o Príncipe não queria mais do que cinco formações na Assembleia Nacional e, sobretudo, não queria lá a presença de determinadas formações políticas. E, por isto, a batota não foi somente nos votos, continuou também na distribuição de mandatos e o Tribunal Constitucional “ratificou-a”.

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