sexta-feira, 24 de outubro de 2008

OS OLHOS DO PRINCIPE

Tal como o fascismo histórico, o regime actual ejecta do seu círculo os intelectuais no que eles têm de essencial e deles aproveita apenas o conhecimento e o prestígio social (como se tratassem de maiombolas do saber) sem que isso possa dar-lhes a oportunidade de se constituírem num corpus autónomo que não se submeta à disciplina de pensamento e de acção do regime

Nelson Pestana (Bonavena)*

Não faltou quem me tenha dito que o meu exercício de escrita, sobretudo se procuro falar para os “intelectuais do regime”, é comparável ao desespero de Santo António que se sentindo incompreendido pelos homens, foi “pregar aos peixes”. Ainda assim, seria um elogio porque inscreveriam o meu “esforço” na tradição de “Voz de Angola, Clamando no Deserto”(1901), no entendimento de que é um exercício que serve para planar arestas, afastar pedras, fazer um caminho, em busca de um futuro. Ou seja, um exercício de realismo e esperança.

Mas, é claro que se um esforço explicativo não pode contar com a atitude de Henriques Feijó (personagem de Crónica de um Mujimbo, o belo livro de Manuel Rui) também não pode justificar a sua utilidade pela apatia daqueles que querem constituir o corpus de uma intelectualidade que por definição não pode deixar de ser autónoma na produção das suas opiniões. Um intelectual não deixa de ver os problemas pelos seus próprios olhos. O regime autoritário não permite isso, não apenas aos governantes mas também a àqueles que queiram integrar as suas fileiras e a todos que desejem intervir no espaço público. O regime pela sua natureza ditatorial nega os intelectuais na sua própria condição de liberdade de pensamento, na sua autonomia de acção, despolitiza o saber e torna-o um puro instrumento do seu poder (daí a preferência semântica pelo “quadro”, em vez de “intelectual”).

Por isto, tal como o fascismo histórico, o regime actual ejecta do seu círculo os intelectuais no que eles têm de essencial e deles aproveita apenas o conhecimento e o prestígio social (como se tratassem de maiombolas do saber) sem que isso possa dar-lhes a oportunidade de se constituírem num corpus autónomo que não se submeta à disciplina de pensamento e de acção do regime que os deslegitima, os inferioriza e lhes inculca um complexo em relação à dita “vontade do povo”, que é subentendido o ditador encarnar.

“É conversando que os homens se entendem” diz o ditado que o Presidente da República evocou no seu discurso de posse do novo Governo. Mas fê-lo, em contramão, não para corroborar a democracia, a ideia de que do debate se faz luz, de que a discussão é uma peça central do desenvolvimento do pensamento nacional que é parte integrante e fundadora do desenvolvimento nacional sustentado porque assente na endogeneização crítica de todas as aquisições universais.

Contra o espírito do movimento “Vamos Descobrir Angola (1948) o Príncipe vem dizer ao Governo (e, por efeito simpático, a todo o país) que “é trabalhando bem, com dedicação, que todos se entendem”. Isto é, no Conselho de Ministros não há lugar ao debate, à troca de opiniões, à emulação de ideias, mesmo porque isto, segundo ele, não é trabalhar. E esta matriz tem poder reprodutivo a todos os níveis do Estado e das relações deste com a sociedade.

Esta afirmação (simples deslize, dirão alguns) do Presidente da República é bem característica de todas as formas de autoritarismo (também do fascismo histórico) porque não acredita na virtude do debate mas na força da “disciplina”. Esta é que é, para si, profícua. Já o disse, em texto anterior, antes mesmo desta evidente ilustração, que aqueles que separam a “liberdade” da “ordem” e a sobrepõem à primeira, na verdade, fazem dela uma “essência”, que se justifica por si própria para reprimir a liberdade que aparece como uma marginalidade excêntrica e não um elemento constitutivo e fundador da vida humana contemporânea.

Neste capítulo, o do substrato filosófico, o neofascismo não se diferencia do fascismo histórico, a diferença deles (mesmo se ambos falam em governar “a bem da Nação”) está no modus operandi, nas formas que assumem. Embora o regime angolano use ainda muita da “tecnologia” do fascismo histórico (o caso Ernesto Bartolomeu, o terrorismo intelectual do tipo editorial contra o OPSA, a partidarização da administração, a pressão contra a imprensa privada, a apetência para a truculência pura, as escutas telefónicas e outras) a tendência é procurar formas mais sofisticadas de autoritarismo, tornando-o menos do aparelho do Estado e mais dos mecanismos da sociedade.

É mais que evidente que o regime autoritário actual que se quer estruturante a partir dos ganhos simbólicos e políticos da maioria abusiva imposta ao país pelo Príncipe, não vai nunca perder a oportunidade de proclamar que vai “reforçar a democracia” e a “consolidação do Estado Democrático de Direito” pois estas são aquisições políticas, ao nível do discurso, fundamentais para a legitimação e reprodução do regime autoritário.

Mas apesar disto, ninguém está autorizado a ver a realidade pelos seus olhos mas apenas pelos olhos do Príncipe. O que os olhos do Príncipe não vêem não existe. E se os olhos do Príncipe vêem é porque existe. Não se pode colocar a hipótese sequer de que o Príncipe sofre de uma oftalmia (circunstancial) e, muito menos, de um estrabismo (estrutural). Os olhos do Príncipe são os mais sãos que existem, até porque são os “olhos do povo”, os “olhos da nação” que ele supostamente “encarna”. Por isto, os olhos dos seus partidários (e tendencialmente dos cidadãos) não têm existência própria, são parte de um grande mecanismo que se desdobra por todos e que a eles (e a nós) se sobrepõe e que ajuda a transformar os órgãos biológicos do Príncipe numa máquina poderosa de ver (policia), de fazer ver (propaganda) e de dar a impressão da sua conformidade com a natureza das coisas (legitimação) que leve todos a conformarem-se com o status quo existente (alienação).

Mesmo que os meus textos não tenham como destinatário particular as “pessoas do regime”, continuo a achar (para bem do país e da procura da manutenção da coesão social) que tem de haver disponibilidade destas, como indivíduos inteligentes e argutos como o são muitos dos intelectuais do regime, para aceitar o que se diz do regime, pelo menos como hipótese de indagação, como ponto de reflexão. Se se transforma o “regime” num dogma, se o “regime” é a verdade absoluta, para eles de nada valerá aduzir argumentos, articular explicações, extrair características, conformar o paradigma porque todo esse esforço será sempre apodado de “esquerdismo”, de “recalcamento”, de “ingenuidade”, “infantilismo” ou outro qualificativo pejorativo.

Num estado de barricada o país em nada aproveita e a mediocridade vai continuar a ganhar campo e a impor-se pela força, contra a razão. Esta diz-nos que a democracia é conceptual e factual. É conceptual na sua definição e factual na sua realização. Não é pelo simples facto de um regime se dizer democrático que o devemos ter como tal. Não é porque desejamos ardentemente que um regime (ou um partido), com o qual temos uma ligação afectiva, seja considerado democrático (com pensamentos subjacentes do género: “não, não podemos aceitar que seja “fascista”. É muito o desgosto!) que ele se torna efectivamente democrático. Temos que ter um referente de democracia e fazer a verificação quotidiana da sua prática em relação a esse referente.

O meu interesse não é que o regime seja “neofascista” para o poder denunciar. Não, pelo contrário, denuncio-o para que não se afaste dos marcos da democracia ou, pelo menos, tenha dificuldades em fazê-lo. Não tenho nenhum interesse que a predação se faça para ter um motivo de denúncia. Cada vez que isso acontece é o país que perde, que não se desenvolve porque se restringem os agentes do desenvolvimento, são os cidadãos que perdem, são pessoas que vão morrer por falta ou por insuficiência de recursos. Denuncio-o para que não se perpetue um ambiente de permissividade e impunidade absoluta. Faço-o por um dever de consciência mas também para minimizar os estragos pois a razão me diz que por muito poderoso que seja o regime autoritário, ele é tão-somente um cacimbo no desenvolvimento do país que procura com avidez formas alternativas de política, de desenvolvimento económico e social. E, neste sentido, (repito) o Príncipe tem que aceitar um terreno de negociação, aceitando devolver-nos os nossos olhos!

* Cientista Político


1 comentário:

  1. Oi, Sr. Nelson Pestana!
    Sou o Ricardo Riso e fico feliz por ter citado o texto que fiz sobre a sua obra aqui neste espaço.
    Não conhecia sua atuação política. Parabéns! Penso que é este o papel do intelectual em países em desenvolvimento.
    Apresentei um trabalho sobre a produção de artistas plásticos e escritores angolanos pós-1980, trabalhei com um poema do senhor. Quando puder, acesse http://www.slideshare.net/risoatelie/semana-de-letras-2008-letras-e-telas-de-angola-presentation/
    Meus sinceros agradecimentos e admiração,
    Ricardo Riso

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