sábado, 24 de outubro de 2009

POBREZA, ÁGUA E DESIGUALDADE SOCIAL

“As populações do país inteiro consideram que a vida delas poderia melhorar muito se tivessem acesso à água potável para as pessoas e, no caso particular do campo, para os animais e para a lavoura”.

Mais uma vez, este ano, se assinalou o dia mundial de combate à pobreza. Para o assinalar resolvi fazer uma breve reflexão sobre a situação do acesso à água (potável) que é uma condição fundamental para à vida, para o bem-estar e a saúde das populações e para o desenvolvimento económico e social do país. Há cerca de um ano, escrevi um artigo em que constatava que o acesso à água potável é uma prioridade social pois, a não realização deste direito de cidadania, está estreitamente relacionada com a pobreza e com a vulnerabilidade das populações às doenças, com os altos índices de mortalidade infantil, de doenças diarreicas agudas e outras. Basta ler os relatórios (mesmo os oficiais) ou falar com as pessoas para nos darmos conta disso.
As populações do país inteiro consideram que a vida delas poderia melhorar muito se tivessem acesso à água (potável) para as pessoas e, no caso particular do campo, para os animais e para a lavoura. Mas, infelizmente, apesar de termos um país rico, também em recursos hídricos, a situação vem-se repetindo e os níveis de satisfação dos cidadãos estão longe de ser satisfatórios.
A razão de ser desta situação, de uma fraca e desigual progressão nos índices de satisfação das necessidades das populações em água, tem a ver com a descoordenação das politicas adoptas, com a falta de compromisso dos governantes com estas políticas, com as opções casuísticas que inviabilizam o cumprimento das metas estabelecidas e com um certo desprezo pelo conjunto da população, traduzido também na persistente forte desigualdade de acesso ao precioso líquido, na diferença de qualidade e do seu preço. Paradoxalmente, os mais pobres são aqueles que para além (e por força desta situação) de serem marginalizados na construção de sistemas de abastecimento, são os que pagam a água mais cara do país, pois são abastecidos por terceiros, nomeadamente através dos camiões-cisterna, consumindo assim também a água de menor qualidade. Em verdade, o consumo de água potável, tal como o país, é também profundamente assimétrico e muito desigual, varia em função da situação social e económica de cada família mas também em função do desenvolvimento desequilibrado e despótico do país.
Pelas condições em que as populações vivem as políticas públicas sobre a água deviam ter “carácter de urgência”, sem prejudicar o seu enquadramento na estratégia de desenvolvimento económico e social do país. No entanto, são preteridas em relação a outras prioridades. Não restam dúvidas de que há ligações intrínsecas e inegáveis entre o acesso à água e a saúde das populações, entre o acesso à água e a educação pelo que a política de água, no país, devia merecer a maior atenção da parte dos governantes.
Porém, para além dos baixos níveis de resposta às grandes necessidades da população, constatamos ainda que a política de abastecimento de água é regida por critérios de desenvolvimento separado que não têm nada a ver com os técnicos que a operacionalizam mas com os governantes que tomam as decisões políticas.
Para demonstrar uma tal afirmação, basta olharmos, com olhos de ver, para os dados de uma peça jornalística inserta no semanário Expansão, de 18 de Setembro de 2009, sob o título, “EPAL investe 183 milhões de USD para aumentar capacidade de oferta”. Nela, Juvenis Paulo, o autor da peça, refere que a EPAL tem em curso um programa para “aumentar a captação, produção e distribuição” de água à Luanda. Esse programa está repartido por quatro projectos; três já em curso, que perfazem 183,4 milhões de dólares americanos, e um ainda em fase de aprovação no Conselho de Ministros, no valor estimado de 140 milhões de dólares americanos. Ora, o primeiro projecto, que visa a construção de centros de distribuição e instalação de dez quilómetros de condutas adutoras, destina-se a fornecer água ao Estádio do CAN, ao Campus Universitário e a zona residencial do Camama. O segundo projecto visa o reforço da capacidade da Estação de Tratamento de Água (ETA) de Sudeste e a construção de novos centros de distribuição e de alguns fontanários na zona do Camama. O terceiro projecto visa aduzir água para o Pólo Industrial de Viana, a partir do sistema 1. Finalmente, o quarto projecto visa, na primeira fase, ampliar a captação das ETAs do Bengo e do Candelambro e, na segunda, construir um sistema de distribuição de 120 km, no bairro dos Mulenvos de Cima e ainda implantar 240 fontenários nas zonas de Cacuaco, Viana e Cazenga.
Parece que há uma prioridade no abastecimento de água, pelos meios públicos, às zonas das novas urbanizações, ligadas aos interesses imobiliários do círculo do poder. Mas, qualquer que seja o critério utilizado, parece que para a política de água há cidadãos que tão-somente merecem chafarizes (tal como o colono lhes oferecia) e outros merecem água canalizada, em suas casas. Pelos vistos, para os governantes angolanos, as chamadas zonas residenciais estruturadas são consideradas como fazendo parte da civitas e, por isso, os seus habitantes são considerados cidadãos portadores do direito ao acesso à água potável, nas suas residências. Por outro lado, para esses governantes, os demais cidadãos, moradores nas chamadas zonas não estruturadas, são (des)considerados como não fazendo parte da civitas mas do espaço do indigenato, sem direito ao acesso à água potável, nas suas residências mas tão-somente ao chafariz comunitário.
É claro que em pleno século XXI não podemos aceitar um dito desenvolvimento na base do chafariz por aquilo que esta limitação representa para a saúde pública, para o asseio pessoal, a higiene doméstica, a redução de oportunidades, a carga física e social, nomeadamente em relação às mulheres, às crianças, às jovens meninas, e a perturbação do percurso escolar. Para além de que não é uma solução segura e obriga a muitas reposições, tornando-a dispendiosa. Há que encontrar soluções inovadoras, no espírito da parceria público/privado com as comunidades, de maneira que elas próprias possam contribuir para levarem a canalização final até as suas casas. Temos que ter como meta imediata colocar uma torneira em cada casa, de cada família angolana, acabando com o apartheid social que esta política traduz.

Nelson Pestana (Bonavena)

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O PRÍNCIPE E OS SEUS VENTRILOQUOS

Assistimos então a uma coisa fenomenal (=atípica) que foi a “escolarização” do bureau político de JES para que o seu “esperto” explicasse aos seus membros a posição do partido. Para que depois
estes fossem, pelo país, num esforço coordenado centralmente, “explicar aos militantes do Mpla a posição do partido”. Para depois “o partido”, reunido em Congresso, sufragar a vontade bizarra (= atípica) do chefe como linha programática, em nome da “estabilidade política extraordinária” do país.

Já era de prever: José Eduardo dos Santos não iria aceitar aparecer como o mau da fita. Como aquele que contra a vontade nacional, impôs um modelo bizarramente atípico de legitimar a continuidade do seu poder vitalício. Afinal ele, falando sobretudo para o interior do seu grupo, já nos tinha intimidado a todos, quando disse, num contexto em que tinha que usar uma linguagem moderada e diplomática, que ele era o Presidente de um partido que goza de uma maioria (abusiva) e, por isso, não iria permitir que a sua vontade “atípica” não se tornasse lei.

Perante a reacção da opinião pública, a instabilidade nas suas hostes, lançou os seus ventríloquos para nos convencerem que essa sua anormalidade política é uma normalidade jurídico-doutrinária. Antes, chamou dois “evangelistas” para nos explicarem o “novo evangelho”, nem que para isso tivessem que dizer uma coisa e o seu contrário, tivessem que desdizer tudo o que tinham dito até então. Pouco importava para ele que estes “evangelistas”, para atingir o seu desiderato, tivessem que empenhar os seus créditos políticos, académicos e pessoais, degradando-se aos nossos olhos. A primeira acção era drenar a hemorragia provocada pelas suas declarações, par que ele não aparecesse como o responsável da destabilização, da incerteza e do descrédito do processo constituinte que estava em curso. Não podendo reerguer a árvore, então que se escondesse o machado que a tinha derrubado e, sobretudo, a mão que tinha guiado a acção do machado. O mais importante é que a imposição do chefe aparecesse, no final, como a decisão de todos. Então, havia, primeiro, a necessidade de dizerem todos a mesma coisa. Começando por dizer que sempre estiveram de acordo com o que chefe, que já o tinham dito antes e que não havia falta de “sintonia” entre eles e a pretensão bizarra (= atípica) do chefe. Mas, acontece que alguns estavam de acordo com o que chefe tinha dito mas não sabiam bem o que ele tinha dito. Havia que dizer que todos já tinham discutido, antes, no interior do grupo mas não tinham escrito na sua proposta de Constituição porque queriam fazer prova de “evolução do pensamento”. Perante um tal estado de desarrumação, o chefe apercebeu-se que era preciso um maestro para os ensaiar, para que todos eles pudessem dizer, uns com maior acerto, outros com menos, a mesma coisa, mesmo porque a primeira tentativa pública de salvar a loiça partida pelo chefe tinha metido muita água.

Assistimos então a uma coisa fenomenal (=atípica) que foi a “escolarização” do bureau político de JES para que o seu “esperto” explicasse aos seus membros a posição do partido. Para que depois estes fossem, pelo país, num esforço coordenado centralmente, “explicar aos militantes do Mpla a posição do partido”. Para depois “o partido”, reunido em Congresso, sufragar a vontade bizarra (= atípica) do chefe como linha programática, em nome da “estabilidade política extraordinária” do país. No fim das contas, JES aparece não como o político que não consegue controlar a sua libido dominandi, tornando-se politicamente cada vez mais autista, mas como o “esforçado cidadão” que faz o favor à Nação de garantir a estabilidade ao país. Uma estabilidade que pelos vistos só pode ser garantida pela ditadura autocrática. E, portanto, como em todos os partidos autoritários, “os militantes”, não sendo eles próprios o “partido”, devem colocar-se ao serviço do partido do Chefe. E, por isto, não há nada de incoerente em tudo isto, pois a vontade do “partido” não é (nem pode ser) o resultado da vontade dos militantes. Ela é expressão do chefe iluminado e é transmitida de cima para baixo, no bom estilo corporativo.

É essa vontade do partido-chefe que tem que ser explicada “as tropas de choque”, pelos ventríloquos do chefe (e suas declinações instrumentais). O chefe não queria a eleição do Presidente da República por “sufrágio universal directo”, em eleição própria, a duas voltas, para que a escolha dos cidadãos seja a mais próxima possível da vontade dele, como prescreve a Constituição actual, como está no programa eleitoral de todas as formações políticas angolanas (incluindo o partido do chefe), como está na proposta de Constituição que o partido de poder apresentou à Comissão Constitucional e à opinião pública.

Depois, o chefe mudou de opinião, “evoluiu” no pensamento, a caminho do reforço da ditadura e, então, mandou construir uma “teoria” para legitimar todas estas suas pretensões. A vinda de Jacob Zuma precipitou as coisas e ele anunciou o “novo evangelho”, ainda com imprecisões, o que deu lugar a um apuramento em função da denúncia e da reacção da opinião pública.

Agora é a vez dos ventríloquos do Príncipe explicarem, primeiro aos “militantes” e depois a toda a sociedade como o chefe quer ser visto na lei como chefe. Políticos, técnicos e técnicos-políticos todos se misturam para aparelhar o partido do chefe para defender a sua vontade e para que esta apareça como sendo a vontade de todos nós ou, pelo menos, da maioria, depois de um “amplo debate”. Mas, por um momento, as instituições públicas envolvidas no dito processo constituinte fazem um parêntese e ficam a espera que o chefe arrume a sua própria casa para depois então cumprirem o seu papel legitimador. A linguagem utilizada, e particularmente as inflexões operadas, apelam ao não dito, a uma língua subliminar que entende que a estabilidade do país (a dita “estabilidade politica extraordinária”) está, não no fortalecimento das suas intuições mas na continuidade do poder do Príncipe.

Os meus leitores habituais hão de se lembrar do que escrevi nos meus textos, nomeadamente, “Viva la Muerte”, “O leão e as cabras” e “As glórias do general – já vi este filme”. Desenganem-se! Tudo segue uma linha coerente de perpetuação do poder autocrático.

Nelson Pestana (Bonavena)

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

OSWALDO PAYÁ - entrevistado pela VEJA

"A oligarquia fidelista prepara-se para se transformar nos ricos do futuro, como ocorreu no Leste europeu"
O homem do pós-Fidel, o mais respeitado dissidente cubano, diz que o fim do comunismo depende apenas do "fatalismo biológico": a morte do ditador.
José Eduardo Barella

Fidel Castro mandou para a cadeia os principais dissidentes de Cuba – mas não prendeu Oswaldo Payá, de 51 anos, o mais conhecido deles. O cuidado se deve ao fato de esse dissidente ser uma celebridade internacional. Só neste ano, ele conversou com o papa no Vaticano, encontrou-se com o secretário de Estado Colin Powell, em Washington, e teve seu nome incluído entre os candidatos ao Prêmio Nobel da Paz. O que faz desse católico praticante, que fundou e dirige o Movimento Cristão Libertação, uma referência para o futuro de Cuba é sua bem articulada proposta de uma transição pacífica para a democracia. Payá é também o mentor do Projeto Varella, o abaixo-assinado pedindo abertura política. Em Havana, onde trabalha como engenheiro de manutenção de equipamentos hospitalares, ele não dá um passo sem ser seguido pela polícia. Mas não se deixa intimidar. Ainda menino, foi o único aluno de sua escola primária que se recusou a entrar para a Juventude Comunista. Adolescente, liderou uma manifestação contra a invasão soviética da Checoslováquia, em 1968. Por isso, passou três anos num campo de trabalhos forçados. Casado e pai de três filhos adolescentes, Payá falou a VEJA, por telefone, de sua casa em Havana.

Veja – Recentemente Fidel Castro prendeu e condenou os principais dissidentes cubanos. Por que o senhor continua solto?
Payá – Ninguém sabe dizer. Como o próprio Fidel Castro já me acusou publicamente de traidor e aliado dos Estados Unidos, acredito que posso ser preso a qualquer momento. A pergunta correta deveria ser por que dezenas de pessoas foram presas e condenadas sem que fossem encontradas com elas bombas nem planos subversivos. O crime delas foi reclamar seus direitos e expressar suas opiniões. Estamos chamando esses ativistas de "prisioneiros da primavera de Cuba". A exemplo do movimento esmagado pelos tanques soviéticos na Checoslováquia em 1968, estamos lutando de modo pacífico por mudanças.

Veja – Vários políticos e intelectuais fora de Cuba, incluindo alguns brasileiros, deram apoio a Fidel depois da prisão de dissidentes e das execuções ordenadas pelo regime cubano. O que o senhor acha disso?
Payá – Esse é um tema espinhoso para nós. O problema é que sempre houve uma grande desinformação sobre a realidade cubana. Todo o bloco soviético, incluindo o governo cubano, foi especialista em lançar uma imagem falsa de nosso país. O mundo sempre viu Cuba como a ilha da liberdade, povoada de líderes revolucionários, legendários e românticos. Tivemos de tudo aqui, menos liberdade e igualdade. Desde o início vigorou um sistema de castas, no qual a palavra de um único homem sempre foi incontestável. Por ter apoiado Fidel, infelizmente, a América Latina tem uma dívida para com os cubanos.

Veja – Por que tão poucos cubanos participam das manifestações contra as prisões?
Payá – Existe uma cultura do medo arraigada em Cuba há décadas. Os indicadores de insatisfação do povo em regimes totalitários não são os mesmos de um país democrático. Não é possível medir o sentimento do povo cubano por seu silêncio diante das condenações. E tampouco pelas praças lotadas nas manifestações convocadas pelo governo. O totalitarismo se expressa por meio de mecanismos de controle que exerce sobre a população. Posso garantir que a maioria dos cubanos rechaça essas condenações. O governo nunca permitiu que o Projeto Varella fosse divulgado nos meios de comunicação oficiais.

Veja – Por que o senhor decidiu organizar o Projeto Varella?
Payá – Porque Cuba precisa de mudanças profundas e pacíficas que sejam realizadas pelos próprios cubanos. Não há Estado de direito em Cuba e isso levou a maioria da população a uma situação de exclusão dentro do próprio país. O regime controla todos os aspectos da vida da população. Se um cubano pode trocar de casa ou de emprego, e o que se pode comprar ou vender – até isso está sob controle. Há uma vigilância completa sobre os cidadãos, o que inibe qualquer possibilidade de crescimento pessoal ou de liberdade individual. O Projeto Varella nasceu para que cada cubano possa recuperar o direito de programar o próprio futuro, sem intervenção do governo.

Veja – O senhor acredita que uma mobilização pacífica seja capaz de provocar a abertura política?
Payá – Sim, pois nosso projeto é apoiado pela Constituição cubana. Há um artigo que diz que, se 10 000 cidadãos apoiarem um projeto de lei, ele deve ser discutido na Assembléia Nacional. O Projeto Varella, que recolheu 11.000 assinaturas, consiste em pedir um referendo para que o povo decida sobre mudanças nas leis para garantir os direitos enunciados na Constituição e que não são respeitados, como os de liberdade de expressão e de associação. O segundo ponto é a libertação dos presos políticos que não tenham atentado contra a vida de ninguém. O terceiro ponto é permitir que os cubanos possuam um negócio próprio. Hoje, os estrangeiros podem ter uma empresa em Cuba, mas esse benefício é proibido aos cubanos. O quarto ponto é que os cubanos possam escolher livremente os deputados à Assembléia Nacional. No sistema atual, 609 candidatos, todos indicados pelo Partido Comunista, concorrem às 609 cadeiras de deputados.

Veja – Se houvesse uma eleição livre hoje, Fidel seria eleito?
Payá – Posso assegurar que não. Por isso o governo não se atreve a aceitar essa possibilidade. É claro que Fidel certamente venceria uma eleição com as regras do atual regime, nesse ambiente de terror. Mas, com liberdade partidária e de escolha, o resultado seria outro. Foi o que aconteceu em outros países socialistas, como a Polônia ou a Romênia. O que temos aqui é um regime que não quer mudar nada e uma população que precisa de todas as mudanças. E não podemos reduzir a discussão em termos de esquerda ou direita. É um erro e um insulto dizer que esse regime é de esquerda. Os homens de esquerda aqui em Cuba estão presos.

Veja – Muitos dizem que uma reforma política só será possível em Cuba após a morte de Fidel Castro. O senhor concorda?
Payá – Sim, é o que chamamos aqui de "fatalismo biológico". É terrível. Quanto mais o tempo passa, mais aumentam as tensões, a pobreza e o poder econômico da oligarquia comunista. Neste momento, ela está se preparando para se transformar nos ricos do futuro, a exemplo do que ocorreu com a classe dirigente em vários países da Europa Oriental no ocaso do comunismo.

Veja – O senhor acha que o regime comunista de Cuba não tem futuro?
Payá – Não. Aliás, não tem sequer presente. O regime não tem mais projeto, exceto o de manter seu poder e seus privilégios. Estamos diante de uma crise insolúvel. É o antagonismo entre os direitos do povo e essa forma absoluta de poder. Se chamam isso de comunismo, não vou discutir a teoria.

Veja – Quais são as medidas mais urgentes para tirar o país da crise econômica e social que ele atravessa?
Payá – É preciso reconhecer que Cuba tem suas particularidades. A produtividade é baixa, assim como os salários, e muito disso decorre da perseguição a muitas atividades e iniciativas individuais. Por outro lado, há uma minoria encastelada no governo e no Partido Comunista que controla toda a atividade econômica, das empresas estatais à cotação do dólar. As primeiras medidas, portanto, devem ser para garantir a sobrevivência da maioria dos cubanos, o que inclui a alimentação. Também é preciso liberar as potencialidades criativas de trabalho e de acesso ao próprio negócio dos cubanos. O país está parado. Os únicos setores em atividade são aqueles que o governo precisa manter funcionando para assegurar a própria sobrevivência. É errado supor que essa revitalização seria o primeiro passo rumo a um amplo programa de privatização, como afirma o governo. Pelo contrário, com mais impostos, haveria mais empregos, produção e condições para o Estado investir nos serviços públicos.

Veja – Como o senhor vai agir, agora que a maioria dos líderes dissidentes está na cadeia?
Payá – Há algo novo, que o medo e o terror não conseguiram paralisar. Muitas pessoas que estavam trabalhando no Projeto Varella já avisaram que pretendem continuar. Outras nos procuraram para dizer que, mais do que nunca, estão dispostas a participar. Os cubanos começaram a abrir os olhos para a falta de liberdade. Muitos que apoiavam o governo perceberam que, ao fazer uma crítica, passaram a ser perseguidos ou excluídos. E, pela primeira vez, a maioria dos exilados em Miami apóia uma solução nascida e desenvolvida em Cuba. O fato de termos tantas adesões mostra que o regime está acabando.

Veja – Os amigos de Fidel dizem que a falta de liberdade é um preço justo que os cubanos pagam para ter sistemas de saúde e de educação gratuitos. O senhor concorda?
Payá – É preciso lembrar que antes da revolução Cuba já tinha um dos melhores serviços de educação e saúde da América Latina, na maior parte geridos por organizações sem fins lucrativos. Com o regime comunista e a ajuda da União Soviética, eles foram ampliados, melhorados e se tornaram gratuitos. O que queremos para o futuro é manter a gratuidade desses sistemas e construir um novo país com todos os direitos. É um mito dizer que, para manter esses serviços, o povo precisa sacrificar tantas liberdades e necessidades materiais. Mesmo porque esses sistemas gratuitos são apenas uma sombra do que foram no passado. Ou seja, não temos mais a excelência desses serviços, tampouco justiça e liberdade. De 1959 para cá, dezenas de países obtiveram avanços no aspecto social sem sacrificar valores como a democracia e os direitos humanos.

Veja – O bloqueio econômico americano atrapalha tanto como Fidel alega ou é apenas uma desculpa para justificar os erros do governo cubano?
Payá – O governo americano decretou o embargo em represália ao confisco de propriedades de cidadãos americanos em Cuba. Só depois disso Cuba se transformou numa peça do jogo estratégico da Guerra Fria. A ajuda soviética fez com que o governo cubano ignorasse o bloqueio americano durante anos. O tema do embargo só foi retomado com o fim da União Soviética. Nunca apoiei o bloqueio ou qualquer outra lei americana como forma de pressionar por mudanças em Cuba. As reformas devem ser discutidas e feitas por cubanos. É claro que o embargo tem sido um recurso político usado pelo regime. Mas é preciso lembrar que, além do embargo americano, há um outro – o do governo cubano contra a própria população do país. Os cubanos não podem viajar, nem fazer negócios livremente com o Brasil, por exemplo. Mas o governo cubano pode. Ou seja, não é correto que estrangeiros tenham direito de montar uma empresa aqui, enquanto os cubanos continuam excluídos desse e de outros direitos em seu próprio país.

Veja – Se os EUA tentassem fazer com Cuba o que fizeram no Iraque, os cubanos lutariam por Fidel?
Payá – Essa pergunta sobrepõe duas realidades que parecem ser a mesma coisa e, na verdade, não são. Uma coisa é Fidel Castro, a outra é o povo cubano. Não queremos intervenção estrangeira, tampouco esse regime que aí está. Também não desejamos escolher entre uma coisa e outra. Já fizemos nossa opção: queremos mudanças, liberdade, democracia, transformações pacíficas e diálogo nacional.

Veja – O senhor tem sido ameaçado pelo regime?
Payá – As ameaças são públicas. O governo se refere ao Projeto Varella como uma manobra bancada pelos Estados Unidos, e a mim como um "líder contra-revolucionário". Há vigilância em redor da minha casa. Chega a ser ridículo. Quando saio de bicicleta, o meio de transporte que costumo usar, sou sempre seguido por uma frota de carros com agentes do governo. Há alguns meses, levei um susto: havia uma ameaça de morte pintada na parede da sala em tinta vermelha, imitando sangue. Também trancaram a porta do lado de fora com pregos.

Veja – Por que o senhor não foi para o exílio?
Payá – Aqui em Cuba não se pergunta por que você vai embora, e sim por que quis ficar. A opção de ficar é de fato um perigo e um sofrimento para minha família. Mas foi aqui que Deus me pôs e meu compromisso é ficar no meu país e com meu povo. Minha fé me sustenta aqui.

VejaO que Fidel Castro teria a aprender com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que sempre foi seu admirador?
Payá – Ele poderia aprender a se submeter a eleições livres com vários candidatos, para que os cubanos tenham a oportunidade que tiveram Lula e o povo brasileiro de exercer a alternância de poder. Se no Brasil existisse um regime como o de Cuba, os brasileiros nunca poderiam ter fundado sindicatos independentes nem ter criado o Partido dos Trabalhadores. Em suma, o governo nunca deixaria que um líder sindical como Lula emergisse e chegasse à Presidência.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A DECLARAÇÃO DE BENGUELA SOBRE AS DEMOLIÇÕES

Os subscritores da “Declaração de Benguela sobre as Demolições” têm pois razão de “pensar que esta onda de desalojamentos forçados pode aumentar e violar os direitos de muitas outras famílias” e, por isto, tomam posição “contra o recurso sistemático a desalojamentos forçados, demolições de casas e expropriação de terras”.
Esta semana tiveram lugar três acontecimentos que prenderam particularmente a minha atenção: a Conferência Internacional sobre a vida e obra de Óscar Ribas, a visita do Presidente Zuma e a Declaração de Benguela sobre as Demolições. Em relação a Óscar Ribas falaremos em texto próprio, na próxima semana. Sobre a visita do Presidente da África de Sul deixo apenas algumas considerações para me poder debruçar com mais amplitude sobre a barbárie das demolições que foi, em Benguela, objecto de uma declaração da sociedade civil.

A visita de Zuma (e da importantíssima delegação que o acompanhou) significa antes de mais que as relações entre os dois Estados, para lá da retórica habitual, entram numa nova era. Esta tem como principal característica a transformação das “boas relações políticas entre as duas lideranças” em projectos de desenvolvimento ou, pelo menos, em frutuosas relações (e acções) de negócios. Revoluto o tempo das simples cumplicidades ideológicas, poderíamos dizer que parece que o novo nome da diplomacia é a economia. Mas, esta visita significa também uma mudança de atitude de ambos os lados que aceitam agora uma liderança conjunta da África Austral, o que pressupõe não mais a rivalidade das “duas potências” por essa liderança. O que permite a entrada a corpo inteiro de Angola na região e um incremento nos planos de desenvolvimento regionais. Possibilita também à África de Sul uma entrada na África Central, pela porta de Angola, onde esta afirma já um lugar de potência regional. É claro que isto significa que os interesses económicos dos grupos de poder, num e noutro país, são agora coincidentes, o que não acontecia antes.

Quanto a “Declaração de Benguela sobre as Demolições” ela é, antes de mais, um sinal de que a sociedade civil angolana quer ter voz própria na senda do desenvolvimento nacional e não quer ser cúmplice da voracidade dos grupos de poder pela especulação imobiliária, denunciando o facto de trinta mil famílias terem sido desalojadas (entre 2001 e 2007) e da ira do camartelo ter demolido três mil casas, o mês passado, no Kilamba Kiaxi, em poucos dias e aos nossos olhos.

Esta declaração é pois uma tomada de posição dos seus subscritores em relação a “recrudescência de desalojamentos forçados já havidos ou anunciados que constituem uma violação dos direitos dos cidadãos a uma vida digna”. É também um veemente protesto contra os desalojamentos perpetrados e a exigência do respeito, pelas instituições do Estado, dos direitos dos cidadãos, nomeadamente à uma habitação condigna, possível no quadro de uma política habitacional participativa, abrangente e que apoie os mais desprovidos de recursos.

A política do camartelo é justificada, pelo discurso oficial, pela necessidade da reconstrução nacional, traduzida em requalificação de espaços, expropriação por utilidade pública, realização do CAN ou implementação de investimentos públicos ou privados. É verdade que cabe ao Governo, nos termos da Constituição, artigo 9º, orientar o desenvolvimento da economia nacional mas tem que o fazer, por força desse articulado, de forma a garantir (1) o crescimento harmonioso das regiões do país, (2) a racional e eficaz utilização dos recursos e capacidades produtivas (do país) e (3) a elevação do bem-estar e da qualidade de vida dos cidadãos”. Isto quer dizer que o desenvolvimento não pode ser senão um desenvolvimento integrado, feito com os cidadãos, sob pena de ser inconstitucional, ilegal e um verdadeiro acto de violência.

A expropriação não pode ser utilizada como um acto arbitrário do Estado. Embora sendo um acto discricionário tem que estar fundada numa razão de interesse público. E, por isto, a expropriação não ser um meio que faça do Estado um instrumento para privilegiar um grupo de cidadãos, em desfavor de outros. As demolições das casas dos moradores dos bairros populares que vão acontecendo ou virão a acontecer por todo o país não podem servir para proporcionar terrenos baratos à especulação imobiliária de qualquer grupo de poder.

Pelo seu teor se percebe que para a “Declaração de Benguela sobre as Demolições” não é o desenvolvimento que é objecto de inquietação mas a forma como são encarados os “futuros grandes investimentos no país, seja para a produção de biocombustíveis, em Malanje, alumínio, em Benguela, prata, no Kwanza-norte, cobre, no Uíge ou urânio, no sul do país”. Se estes investimentos estimulam o crescimento económico e proporcionam a criação tão necessária de empregos, perante uma política despreocupada do Governo de protecção das populações locais, vai seguramente haver um aumento dos confiscos de terras e de desalojados, “sem alternativas nem compensações”.

Os subscritores da “Declaração de Benguela sobre as Demolições” têm pois razão de “pensar que esta onda de desalojamentos forçados pode aumentar e violar os direitos de muitas outras famílias” e, por isto, tomam posição “contra o recurso sistemático a desalojamentos forçados, demolições de casas e expropriação de terras”. E apelam também a criação de “comissões, em cada município, com ampla participação da sociedade civil e representantes de cada bairro e comunidade” que se pronunciaria sobre “os planos de construção, desalojamento e realojamento na área”. Incentivando assim o Governo a colocar “o direito a uma habitação adequada” no centro “da sua política, programas e orçamentos habitacionais, urbanísticos e de utilização do espaço”.

Nelson Pestana (Bonavena)


O MODELO CONSTITUCIONAL DO PRÍNCIPE

José Eduardo dos Santos disse: não vai haver mais eleições presidenciais (nem directas, nem indirectas). O modelo constitucional proposto por ele não é típico, nem atípico, não é próximo, nem distante do sul-africano; é o seu próprio modelo que não é um modelo de eleições presidenciais porque, de facto, acaba com elas.


José Eduardo dos Santos revelou uma nova faceta, na sua longa e cansativa carreira política: a de inventor de modelos políticos. Inventor sim, porque o modelo explicitado não existe em mais parte alguma, é uma verdadeira invenção e merecia figurar no Guiness book.
Uma eleição universal, directa, em que o presidente é cabeça de lista, podendo ser formalizada pela Assembleia Nacional, parece ser um "non sense", qualquer coisa que não faz sentido porque é contraditória nos seus próprios termos. Desde logo, porque não se vota para um órgão uninominal por lista. Mas, passado esse momento de estranheza, compreende-se bem o que José Eduardo dos Santos disse: não vai haver mais eleições presidenciais (nem directas, nem indirectas). O modelo constitucional proposto por ele não é típico, nem atípico, não é próximo, nem distante do sul-africano; é o seu próprio modelo que não tem nada a ver com as eleições presidenciais porque, de facto, acaba com elas.
Uma eleição indirecta (típica) é aquela em que o Presidente da República, em vez de ser eleito directamente pelo conjunto dos cidadãos, é eleito por um colégio eleitoral, previamente escolhido pelos cidadãos. Ao propor aquilo que chamou “eleição indirecta atípica”, ele inventou um modelo político em que não há eleição do Presidente da República. Este passa a ser indicado pelos aparelhos partidários, desde que a sua lista seja vencedora nas eleições legislativas. Este modelo “atípico” que afasta os cidadãos da esfera política e reduz drasticamente a sua soberania, transferindo-a para os aparelhos partidários, surge para confortar a vontade do Príncipe de se ver legitimado retroactivamente, porque foi cabeça de lista do partido vencedor das eleições legislativas de 2008 (daí o empenho na grande batota) e para elidir as eleições presidenciais republicanas que deveriam ter lugar este ano, segundo o compromisso que assumiu com o país, em 2006, reiterado na campanha eleitoral e na sequência, afinal, de muitos outros, também não honrados.
Depois da sua declaração, muitas perguntas se colocaram e outras tantas explicações foram procuradas pelos mais diversos sectores da sociedade. Não faltou quem quisesse saber o que diz a Constituição sobre a matéria. Ora, a Lei Constitucional diz que o Presidente da República deve ser eleito, de cinco em cinco anos, e não pode exercer o poder para lá de quinze anos. O que está aqui em causa é a alternância política mas também evitar-se o poder vitalício, próprio dos poderes absolutos. Então como não vai haver eleições este ano, nem no próximo, nem nos vindouros, vamos continuar com um poder vitalício, ilegítimo, autoritário e corrupto como temos vivido até agora. Com uma diferença, é que a Constituição vai ser reescrita para autorizar todas estas práticas e não será, como todos gostaríamos, o poder a reintegrar a ordem constitucional democrática. Alguns dirão, mas afinal já vivemos essa inconstitucionalidade desde há muito tempo. É verdade, o poder mantêm-se por força do "golpe de Estado permanente", ou seja, governa contra a Constituição e contra a vontade do soberano que é o povo.
A vantagem que o Príncipe vê nisto é a de se perpetuar no poder sem ser submetido ao escrutínio popular. É pois uma machadada na soberania do Povo, nos termos da Constituição, é um verdadeiro recuo no sistema político e no catálogo de direitos e liberdades dos cidadãos. Com este modelo deixa de haver candidatos, e muito menos candidatos independentes, emanados directamente dos cidadãos sem partido, já que não há mais eleição presidencial e toda a vida política passa a estar dependente do espartilho dos aparelhos políticos. Na verdade, um dos objectivos do dito “novo ciclo” político foi o de afastar a política, a escolha, a decisão sobre a res publica dos cidadãos. Em termos analógicos, estamos em presença de um retorno ao partido único que como vanguarda do povo, escolhe sabiamente em seu nome.
A anunciada IIIª República será então uma República das bananas, com toda a Nação submetida aos caprichos de um ditador (e da sua corte) e de um poder sustentado pela fraude e pela violência, num quadro de progressiva contracção económica e grave crise social. O Presidente da República sempre atropelou a Constituição mas desta vez foi longe demais. Isto é uma ofensa a todos nós. Teria sido mais apropriado e melhor para o país anunciar a negociação de uma dinastia que respeitasse a Democracia e a ordem constitucional.

Nelson Pestana (Bonavena)

domingo, 13 de setembro de 2009

UM DISSIDENTE CUBANO DE ESQUERDA

A intervenção cubana, em Angola, tendo por pretexto o combate contra o apartheid sul-africano e a libertação total de África do colonialismo, já “estava preparada há muito tempo, e tinha como objectivo colocar o MPLA no poder”, numa situação de fragilidade que lhes permitiu “levar para Cuba todos os recursos naturais que puderam”, num acto de “pilhagem geral”.

Carlos Moore veio a Luanda para participar da homenagem a Mário Pinto de Andrade, de quem foi amigo, nos idos anos de 1960/70. Ao discursar sobre a grande figura que foi este “intelectual emprestado à política”, logo nas primeiras frases, proferidas de pé, e quase de improviso, incendiou de entusiasmo a plateia do Auditório da Universidade Lusíada de Angola que estava repleto de jovens estudantes que não se cansavam de redobrar as palmas, assobios e a algazarra, para expressarem o seu apoio e contentamento por aquelas palavras.
O “etnólogo e cientista político cubano”, para falar de Mário Pinto de Andrade, de forma viva e fiel à sua memória, quis, desde logo, demarcar-se da “África neocolonial”, dos dirigentes que apenas se interessam pelas riquezas naturais dos países e que não investem no homem africano. Desses dirigentes que se preocupam mais com a pessoalização do poder e com a egomania e nada com o destino dos seus povos. Firme e irreverente, perguntou, alto e a bom som, para incómodo dos dirigentes do partido da situação ai presentes: “o que será de Angola, quando o petróleo acabar?”. A pergunta continua no ar!
A semana passada, o Novo Jornal publicou uma entrevista que Carlos Moore concedeu a este hebdomadário, na sua passagem por Luanda. A entrevista é muito rica e interessante. Mesmo pessoas que se julguem bem informadas sobre a nossa história política encontrarão nela informação digna de registo. Retenho as palavras de Carlos Moore também porque elas abonam em minha defesa. Algumas vezes, abordei alguns dos temas tratados por ele e minhas palavras foram tidas como levianas, como fruto de ressabio ou mágoa pessoal. Por exemplo, em relação ao racismo em Cuba ou sobre a intervenção cubana, em Angola, ou ainda sobre as falsificações históricas dos movimentos de libertação nacional (seja no MPLA ou na UNITA).
Nesta entrevista, Carlos Moore, mais uma vez, deve ter incomodado os pobres “deuses domésticos”, pela franqueza e autenticidade da sua atitude perante a história de que é portador. Primeiro, conta a sua aventura de dissidente de esquerda do regime ditatorial dos Castro. A propósito, põe a descoberto a questão do racismo em Cuba e mostra que ela não é mera “propaganda imperialista” como o regime pretende. Tomei contacto, pela primeira vez, com esta questão através de Régis Debray, num livro que ele escreveu para justificar a sua ruptura com o regime castrista, depois da fracassada aventura junto de Che Guevara, na Bolívia. Mas, muitos anos mais tarde, testemunhei esse racismo descarado e gritante, em Cuba, em 1981, já havia um bom tempo que as suas tropas expansionistas se encontravam em África e o regime fazia o discurso da demagogia internacionalista, do reencontro de Cuba com África e da revalorização da “cultura negra”, no seu país.
A questão, como é sabido, vem de longe, de uma longínqua e teimosa herança escravocrata. Não do regime de produção escravista mas da mentalidade, da sua teimosa ideologia. Carlos Moore explica que ainda no tempo de Fulgêncio Baptista, pessoas como o etnólogo e historiador Walterio Carbonell ou o sociólogo Juan Bettencourt levantaram o problema do racismo naquele país do Caribe. Quando Fidel de Castro chegou ao poder, em 1959, “negou-se a partilhá-lo com a maioria negra”. Os negros representavam então 35 a 45 por cento da população e estavam organizados em 525 agremiações. A “pequena burguesia hispano-cubana”, diz Carlos Moore, sob a capa do marxismo-leninismo e da revolução, baniu as chamadas “sociedades de cor”, prendeu ou exilou os intelectuais negros e proibiu os seus livros que falavam do problema e insistiu na ideia de que havia uma “democracia racial”, traduzida na demagogia de que a única cor em Cuba era a “cor cubana”.
Carlos Moore que acreditava na revolução em curso, quis uma oportunidade para discutir o problema do racismo. Em 1961, levou o seu “protesto ao chefe do exército, o comandante Juan Almeida Bosques”. Acabou preso. Levaram-no para a chamada Villa Marista, onde esteve “numa cela, com perto de 30 pessoas, que iam sendo levadas, noite após noite, para serem fuziladas”. Esteve aí “28 dias à espera de ser morto” e só escapou “porque na altura trabalhava com um grande dirigente dos direitos civis dos Estados Unidos, Robert Williams que estava a viver em Cuba sob a protecção de Fidel de Castro”. Aquele, ao saber da sua prisão, “moveu contactos junto do chefe da contra-inteligência cubana, Manuel Piñero Losada” e acabou por ser libertado. Persistiu! E, “um dia, em 1962, estava numa rua de Havana quando os carros de Fidel pararam do outro lado da rua”. Impulsivamente começou a correr, a segurança quase o ia matando mas Fidel não permitiu e perguntou-lhe: “Quem és tu?”. Carlos Moore respondeu-lhe que “fazia parte de um grupo de intelectuais revolucionários que não estava de acordo com a forma como ele colocava a questão racial”. El Comandante “ficou colérico” mas disse-lhe para ir ao seu gabinete e levar as preocupações do grupo “num papel e uma lista com os nomes de toda a gente envolvida”. Mais tarde, Célia Sanchez, braço direito de Fidel, recebeu-os e leu o manifesto do grupo. No dia seguinte estavam todos presos. Ramiro Valdez Menéndez, actual vice-presidente cubano, era o chefe da polícia secreta e coube a ele o papel de inquisidor. Depois de seis horas de interrogatório, Carlos Moore assinou “uma confissão a dizer que não havia racismo em Cuba e que tinha sido contaminado pelas ideias do imperialismo, durante o tempo em que tinha vivido nos Estados Unidos. Ou isso ou a morte”. Ainda assim foi parar a um “campo de reabilitação” (um dos goulag cubanos, de triste memória), de onde saiu depois de um acidente. Puseram-no então a trabalhar no Ministério de Informação e depois no Ministério das Relações Exteriores. Um dia, aproveitou uma confusão no trabalho, apanhou um táxi e refugiou-se na embaixada da Guiné-Conacri. Já tinha compreendido que o regime de Castro & sus muchachos “era uma máquina infernal que estava a tragar toda a gente, inclusive da esquerda cubana e revolucionários”.
Saiu do seu país, em direcção ao Cairo, a 4 de Novembro de 1963, depois de três meses de negociações entre as autoridades cubanas e o embaixador guineense, “apoiado pelos embaixadores do Mali, Egipto e Gana”. Em África, trabalhou com os movimentos de libertação nacional, nomeadamente angolanos (disto falaremos em próximo texto).
Depois foi para Paris e passou por outras academias. Escreveu, entre outros livros, “Castro, os Negros e África”, onde defende a ideia segundo a qual “os dirigentes cubanos começaram a construir a sua política para a Africa a partir de 1965, depois da crise dos mísseis, quando Cuba ficou altamente dependente da União Soviética”. A orientação de Castro era a de estabelecer uma série de Estados vassalos que gravitassem a volta de Cuba que se afirmaria então como potência intermédia, “para fazer com que a URSS dependesse de Cuba para aceder aos recursos africanos” e, igualmente, “impedir a entrada da China que estava a apostar forte em divisões dentro dos movimentos africanos”. Por isto, a intervenção cubana, em Angola, tendo por pretexto o combate contra o apartheid sul-africano e a libertação total de África do colonialismo, já “estava preparada há muito tempo, e tinha como objectivo colocar o MPLA no poder”, numa situação de fragilidade que lhes permitiu “levar para Cuba todos os recursos naturais que puderam”, num acto de “pilhagem geral”. Por isto, segundo Carlos Moore “há que terminar com a mitologia mentirosa que apresenta a acção de Cuba, em África, como uma acção de puro altruísmo”. Porque Cuba, não tendo percebido as complexidades de Angola, "veio para África com o complexo de Tarzan".

Carlos Moore que agora vive em São Salvador, da Bahia, continua utópico, lúcido e combatente e afirma categórico: “não entrego a ninguém o sonho da dignidade humana”.

Nelson Pestana (Bonavena)

sábado, 29 de agosto de 2009

OS PAPÉIS DO INGLÊS - ou o Ganguela do coice

Esta obra de Ruy Duarte de Carvalho é aparentemente uma estória simples, feita da "narrativa breve”, “da invenção completa da estória de um Inglês que em 1923 se suicidou no Kwando depois de ter morto tudo à sua volta”. Esta “invenção” teria como base uma sucinta crónica de Henrique Galvão", inserida no livro deste autor, “Em Terra de Pretos” (1929). É desta maneira que o livro é apresentado no seu rosto e, normalmente, pelos resumos que dele se fazem. Mas, apesar disto o romance do RDC não é apenas a reinvenção “completa” da crónica de Henrique Galvão.
Henrique Galvão, para além do seu nome ter ficado ligado a Angola também por outras razões e, nomeadamente pelo desvio do Santa Maria que viria a aportar Luanda, por volta de 4 de Fevereiro de 1961 - determinando assim a escolha da data do assalto às cadeias de Luanda, é um dos autores mais importantes da literatura colonial, tendo escrito vários textos em teatro, conto, aventuras de caça, crónicas (“Em Terra de Pretos”, 1929), romance (“O sol dos trópicos” e o “Velo d’oiro”), literatura de viagem e outros géneros. Os seus livros fizeram grande sucesso na época (quer na “metrópole”, quer na “colónia”), devido ao tom glorioso e heróico que dava às suas personagens, constituídas a maioria delas de colonos portugueses e suas aventuras em terras africanas (Omar Ribeiro Thomaz).
O romance Os Papéis do Inglês "decorre não apenas dos acontecimentos do Kwando relatados pelo Galvão” mas igualmente do facto (da “circunstância” – para usar a palavra do autor) de RDC os ter contado (p. 30) ao seu ajudante de campo, o Paulino que se lembrou do avô, já falecido mas que tinha sido, durante a juventude, precisamente, o Ganguela-do-Coice do carro bóer do tal Inglês. (Repare-se que “o Ganguela-do-Coice” é o subtítulo do livro) Ora o avô do Paulino, depois da tragédia do Kwando, narrada pelo Galvão, teria ficado com os papéis do Inglês.
A revelação do Paulino provocou em RDC um “sobressalto imaginativo” e uma grande expectativa. A partir dessa data, RDC “passou, com frequência, a divagar à volta do que me [lhe] ocorria emprestar à personagem do Inglês. O Galvão, de facto, pouco dizia da sua carreira anterior, no livro vinha apenas que o homem se tinha suicidado, em 1923 e que por essa data andava retirado do mundo civilizado havia já para aí uns bons 15 anos… mas eu, mesmo sem querer e bem à revelia do meu [seu] feroz programa de trabalho, estava afinal, por minha própria conta e risco, e a custa de alguma insónia, a saber cada vez mais. E hoje, já que nunca mais deixei de estar ligado a coisa, julgo saber tudo. E não vou ter descanso, conheço-me, enquanto não reduzir a ideia a objecto, ou acto”[1].
Estas explicações, captadas no próprio Ruy Duarte de Carvalho que enquanto nos reconta a estória do Inglês, nos fala do sua oficina e do seu próprio labor, permitem, por um lado, constar uma viva “consciência criativa” do autor e, por outro, dizer que o livro, “Os papéis do Inglês”, não é apenas a reinvenção dessa estória, nem, como se poderia pensar, o simples alargar das costuras da crónica de Henrique Galvão. A estória que Ruy Duarte de Carvalho nos conta, não é apenas a reinvenção da narrativa do "suicídio de um Inglês no interior mais fundo de Angola", em princípios do século XX. Não é simplesmente a simples “reinvenção” dessa sucinta mas impressionante estória que andou, durante mais de vinte anos, "a trabalhar a cabeça" dele (p. 14).
Longe disto! O que é então? Este livro é o resultado “da conjugação de muitos factores” e da "convergência de muitos outros". “Os papéis do Inglês” é uma estória muito mais complexa (p. 63), onde se misturam várias estórias, sendo uma delas a “versão” do RDC da estória inicial desse Inglês que tendo desertado da I Guerra Mundial se fixou nas bandas do Kwando, confrontada com outras estórias. (p. 21) Este livro, Os Papéis do Inglês é "uma narrativa com princípio e fim" – como nos garante o próprio RDC- mas não é um romance ou uma peça de ficção comum e foi escrita num lugar perdido, "numa das regiões menos povoadas de Angola, da África e do Mundo" (p. 22). Trata-se da estória de todas as estórias em torno dessa ideia que lhe trabalhava a cabeça há muito e no sulco das peugadas da época do Autor, em interlocução com a estória do seu romance com uma" destinatária que se insinua e se instala no texto" e a quem RDC dedica o livro e dirige cartas (como dirigia cassetes ao Filipe, em Vou Lá Visitar Pastores).

A estória foi também determinada pelo facto de Ruy Duarte de Carvalho não se sentir "capaz dos feitos de nenhum Conrad" (engano seu)! Esta convicção leva-o a adoptar, para a sua actividade epistolar, uma postura narrativa pessoana: "à laia de conversa mental", e a reflectir sobre a sua própria prática de narrador, enquanto recria os ambientes e as identidades necessárias para deslindar a breve estória de Henrique Galvão.
“Narrador” que ele próprio também descreve como "esse sujeito de barbas brancas que escreve debruçado sobre o caderno" (p. 62) sem saber até quando e que, há dado momento, se interroga (e a nós também) se "Seria altura de [se] alongar sobre o que lhe terá passado pela cabeça?" (pág. 58); ou compara a sua "versão" à “versão de Henrique Galvão", onde, segundo ele, "o Belga só intervêm depois da morte do Grego". (pág. 73); ou, se critica ao dizer, noutro passo, que está a ser "ligeiro" (pág. 141) na sua narrativa, ou, ainda, se justifica em relação as suas personagens: "é assim que os vejo e por causa disso andei o ano passado a reler "As neves de Kilimanjaro e as Verdes Colinas de África do Hemingway" (pág. 74).

Serão então as personagens de Ruy Duarte de Carvalho, o recorte das personagens de Hemingway? Claro que não! Mesmo porque RDC, pela maneira como trabalha a polifonia no romance e pela forma como mistura “a objectividade da pesquisa da pesquisa com o sal da fantasia” (Rita Chaves) se aproxima mais de Dostoiévski que é o monumento e o fundador do romance moderno (Milan Kundera)[2].

No entanto, RDC não aspira a ser considerado "romancista ou a ser tido como tal" (p. 58) e diga renunciar a qualquer esforço de transformar este livro num romance, Ruy Duarte de Carvalho, ao dar-nos notícia do seu trabalho e da sua consciência oficinal, mostra-nos que um livro que se escreve espontaneamente não é um livro, é tão somente um pensamento; um pensamento articulado ou uma soma de pensamentos. Para se tornar um livro o “autor” tem que se transformar precisamente em “Autor”, ou seja, deixar de ser um simples sujeito de múltiplas vivências que se articulam num ponto, para se apresentar como narrador de uma estória organizada em torno de um foco dramático, dando coerência e complementaridade a vários elementos que como simples vivências apareceriam como fragmentados.
Dito de outra maneira, para se ter um romance, não basta ser detentor de factos com algum potencial dramático, é preciso fazer entrar na oficina o conjunto de vivências, os vários materiais e os fazer sair organizados segundo um plano prévio ou apenas uma simples orientação (como é o caso do A.) que se vai refazendo e apurando, consoante o texto vai avançando e tomando corpo narrativo, isto é, consoante o texto vai se transformando em discurso literário.
A modéstia que Ruy Duarte de Carvalho manifesta no livro, traduz apenas uma opção: a de escrever uma prosa enxuta, onde tudo é explícito, num plano, e implícito, no outro. Por isto, faz entrar, no seu livro, vários outros livros, procurando uma intertextualidade (e um intertexto), marcada pelas várias citações que faz, sem complexos, de forma explícita, honesta e erudita que ilustra ainda mais o seu talento, mesmo porque o faz em toda a simplicidade e avisando a sua "destinatária", dando-lhe (a ela e a nós) "notícia explícita" do que é sua invenção (pág. 30), o que equivale, ao mesmo tempo, dizer do que não é sua criação.
Entram no livro Henrique Galvão, Conrad, Celine, o próprio Autor, quando nos remete, pela mediação da "destinatária", para o seu anterior livro, "Vou lá visitar os pastores" (p.15), a Bíblia, Michaux, Sade, Teodósio Cabral, Andrew Battel, Fenikov, Shakespeare… …e seguramente mais algum que me tenha escapado.
Todos os materiais que utiliza, segundo ele (e eu faço fé) entraram no livro porque foram ao seu encontro. Por exemplo, o livro do Galvão entrou-lhe pela janela (Carvalho 2001 p.-)… RDC apenas pegou nestes “materiais” e os potenciou na sua utilização através de um derrame imaginativo considerável. Neste "investimento criativo" (p. 142), que assume vários planos narrativos, é que está a genialidade de "Os Papéis do Inglês", ao harmoniza-lo e ao fazê-lo coabitar funcionalmente no interior da sua economia de texto. Esses planos narrativos são: primeiro, o da estória breve de Henrique Galvão e da de Luiz Simões, em "Manyama -Recordações de um caçador em Angola", na qual o Inglês e o Grego que ele abateu, antes da carnificina que precedeu o seu suicídio, aparecem como "dois aventureiros desertores dos exércitos aliados da I Grande Guerra e que caçavam e faziam negócio nessa região a que os ingleses chegaram a chamar "the criminal corner" (p. 19); segundo, o da estória, ao princípio, dos papéis do inglês que se tornou, mais lá para frente, a estória dos papéis do pai do próprio A, depois de ter sido, um pouco antes, a estória dos papéis do tio do Paulino; terceiro, o da narrativa do A. sobre a sua "perseguição" dos papéis; quarto o da estória do Inglês, aliás, sir Archibald Parkings que ante a imensa fadiga do meio académico londrino que frequentava e o seu desarranjo conjugal, viu fatalmente traçado o seu destino e, acreditando que "a verdade deste mundo é a morte" (p. 61) decidiu ir até ao fim; programou um suicídio a termo certo e, para tanto, partiu para África, de onde tinha vindo afinal, pois havia passado a sua meninice numa farm da Rodésia antes de vir para Liverpool licenciar-se; quinto plano, o da teoria da justificação do gesto extremo do Inglês (o suicídio). Este exercício é de cariz psicanálico mas nunca enfadonho; sexto, o intermezzo romântico que perpassa à voz calada da escrita dirigida "a destinatária", num jogo de espelhos através sobretudo das epistolas que precedem cada um dos capítulos do livro ou da discussão da sua identidade individual através do alter-ego que é o seu primo Kaluter.
A estes planos principais poder-se-ia, como na técnica cinematrográfica (não é por acaso que RDC é cineasta, incluir outros planos entrecortados (por exemplo): o da estória do "genial falsário Artur Virgílio Alves Reis" que passando então por “Moçamedes”, ao tempo da estória do Inglês, aí era esperado por "todas as forças vivas e a população em peso"; o da autobiografia do Autor que explica sobre a sua passagem da crença evolucionista darwinista à ideia da complexificação social de Teillard de Chardin; ou ainda, o das "etnografias" que é absorvido pelos demais por toda a economia do livro, pois que quando o próprio autor anuncia que "a etnografia vai entrar em campo", o romance, ou melhor, a poética, não sai de cena. Pelo contrário, incorpora-a no seu discurso literário e faz das "etnografias" uma circunstância da poética, procurando retirar o maior peso simbólico da sua inserção no meio e das ideias e das práticas que o rodeiam, nomeadamente através de um exercício de alteridade com as ideias e práticas que as suas leituras lhe proporcionam, talvez porque reconhece que em "toda a produção ideológica ou intelectual" o iluminismo e o evolucionismo estão implícitos, continuam a comandar a "aferição da qualidade dos homens segundo escalas físicas" e "segundo uma hierarquização das culturas"(Carvalho 2001: 153).
Com este livro, “Os papéis do Inglês”, Ruy Duarte de Carvalho, para além de tudo que já foi dito, ainda reencontra, por um lado, a tradição da oratura que ele já havia trabalhado em outros textos poéticos e, por outro, a nossa tradição narrativa romanesca que foi, nos primórdios, vertida em folhetins por penas como a de Alfredo Troni, em Nga Muturi (publicada no “Jornal de Loanda”, em 1878), a de Pedro Félix Machado, em Romance Íntimo (A Gazeta de Portugal, 1891-1892) e a de António de Assis Júnior, em O Segredo da Morta (A Vanguarda, 1928).

e. bonavena, in semanário Agora
[1] RDC, Os papéis do Inglês, p. 25 e 26.
[2] BAKTHIN, Problemas da poética de Dostoiévski, Forense Universitária, 1981, p. 237.

Ruy Duarte de Carvalho – um intelectual vigilante

Ruy Duarte de Carvalho – um intelectual vigilante


Decorreu, em Luanda, entre 9 e 13 de Fevereiro de 2009, uma “Semana de Homenagem a Ruy Duarte de Carvalho, numa iniciativa conjunta do Instituto Camões, através do Centro Cultural Português e da Associação Cultural Chá de Caxinde que, na ocasião, assinalava os seus vinte anos de existência.
Na ideia de participar nesta semana de homenagem ao Ruy Duarte de Carvalho decidi fazê-lo falando do ficcionista e, particularmente, do seu livro “Os papéis do inglês”, deixando a outros a possibilidade de falarem de outros aspectos da sua obra multimoda.
No entanto, fi-lo em dois tempos: o primeiro, para sublinhar a importância desse acto, justificando-o pela envergadura do intelectual que era homenageado, a partir da ressonância de três dos seus livros que, segundo ele próprio, formam uma trilogia e marcam um período da sua obra: Vou Lá Visitar Pastores (Chá de Caxinde, Luanda, 1999) , Os Papéis do Inglês (Chá de Caxinde, Luanda, 2003) e As Actas da Maianga (Chá de Caxinde, Luanda, 2003), cujos géneros se repartem pela antropologia pós moderna, pelo romance e pela filosofia política, respectivamente.
O segundo momento serviu para me fixar no livro “Os papéis do inglês”. Escolhi falar deste livro por duas razões: a primeira, porque considero este romance do Ruy Duarte de Carvalho um texto sublime que não tem a divulgação que merece. E, por isto, nunca é demais aproveitar mais uma oportunidade para falar dele. A segunda razão é que eu já havia escrito, em duas ocasiões, sobre “Os papéis do Inglês” pois o livro (tendo sido escrito em finais do milénio anterior) foi publicado, sucessivamente, em Portugal (em 2000, pela Cotovia), e em Angola (em 2003, pela Chá de Caxinde). Quando do lançamento do livro em Lisboa (já em princípios de 2001) escrevi uma recensão crítica para a revista Angolé, (dirigida então pelo Albino Carlos e que o Luís Kandjimbo considerava uma revista de cabeleireiro e não compreendia bem por que razão eu escrevia ai uma coluna sobre literatura…, ….enfim!). Escrevi também um texto de apresentação para o lançamento, em Luanda, dois títulos Os Papéis do Inglês e As Actas da Maianga, que acabou por ser lido pelo Jacques dos Santos, pois, por força do adiamento do acto, quando aconteceu estava ausente do país.
Perante o convite para participar nesta “Semana de Homenagem”, primeiro pelo João Pignatelli, o activo Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal, e, depois, pelo Jacques dos Santos, o conhecido presidente da Chá de Caxinde, lembrei-me então de reactualizar a minha leitura do livro e renovar o fascínio pelo “Os papéis do inglês”, partilhando com vocês algumas e breves considerações a respeito.
Porém, nesta crónica fica apenas o elogio ao intelectual, sendo que no próximo texto falaremos de Os Papéis do Inglês.
A homenagem foi sobejamente merecida porque creio que o talento de Ruy Duarte de Carvalho não é mais questionável! E que o Ruy Duarte de Carvalho é um artista de vários ofícios também não é de se discutir: “desenhista”, poeta, cineasta, antropólogo e ficcionista, tendo começado por ser agrónomo, todas estas ferramentas, para lá de outras considerações de ordem estética, ética e social, são postas ao serviço de uma mesma causa: a da cidadania angolana que ele explica como uma “conquista”, um “merecimento” e eu entendo como co-natural a sua comunhão com a Terra que o viu nascer, não como ser biológico, mas como homem que não sabe estar (em Angola) sem ser (angolano).
Ruy Duarte de Carvalho é um intelectual que se afirma e se percebe na sua totalidade que tem marcado o nosso tempo com a sua reflexão laboriosa e produtiva. Um tempo "circular, aflorado pelas tangentes da sorte, dos acasos, cindido pelas secantes do desgosto, accionado a custo pela espiral da idade, à espera que a mola pasme, seno e coseno de algum lugar previsto, consentido, a haver mas sem devir" (Actas p. 96). Uma reflexão que constrói um caminho que vai da "Decisão da idade" a "indecisão da vida" e que vai de "um processo de apreensão", do facto ou do vazio, "à consciência da apreensão" e, finalmente, à “expressão do mal estar da consciência da apreensão".
Ruy Duarte de Carvalho é um intelectual que insiste em olhar o mundo, não propriamente para o ver (mas sem deixar de lhe reconhecer, pelo menos, os contornos) mas para compreender qual o nosso lugar nele e, por este atalho, tentar perceber o seu lugar em tudo isto. E, por isto, não é um intelectual contemplativo mas um intelectual que não sabendo estar sem ser (como disse há bocado), afirma as suas escolhas e propõe para o país, inspirado pelo seu “pragmatismo operativo”, um “programa de grande fôlego”, ou seja, de longa-duração e não meramente circunstancial, que não permitisse jamais a evocação da “necessidade de sacrificar sujeitos, sociedades ou gerações” e em que se propusesse concomitantemente “acções política imediatas aferíveis e, por sua vez, avaliadas segundo os seus efeitos imediatos sobre as populações”. Um programa que fizesse da fome, da saúde e da educação “os problemas maiores da nação”, pois “todos queremos um país normal”, e não mais a reincidência do “pragmatismo bárbaro que tem vigorado até agora, inscrito numa lógica de guerra e de saque, de disputas de acessos, vantagens e privilégios e de apropriação pessoal de bens comuns, ou então de pura e simples sobrevivência, de adaptação e criação de circuitos e de saídas, de resposta adequada e inventiva à incompetência, a inoperância, a arbitrariedade e a deriva do poder, dos poderes” (Actas, p. 144 e ss).
Um intelectual que renunciou ao espírito da “recuperação imediatista”, ao espírito do aproveita a tua parte, que se opõe ao “autismo nacional” e contribui – com a sua reflexão – para “uma lucidez possível” (Actas, 148) como expressão do seu “empenhamento cívico”, o que faz dele um intelectual vigilante que tem consciência (e o afirma) de que "Angola sempre foi maior do que quem a governou e governa e que, independentemente de quem exerce ou disputa o domínio directo ou indirecto sobre ela, há os que nunca perderam de vista uma hipótese de Angola [e dos Angolanos], quer dizer, maior e melhor que todos os poderes que ilustraram o seu passado e têm vindo a ilustrar a sua história recente" (Actas, 51). Um intelectual cujo percurso o conduziu “a esse terreno de luta contra a palavra autoritária” (Rita Chaves).
É, pois de registar como acontecimento feliz a homenagem ao Ruy Duarte de Carvalho, por altura das comemorações dos 20 anos da Chá de Caxinde, não apenas porque ele é um dos maiores expoentes da nossa literatura de todo os tempos, não porque é um dos maiores intelectuais do país, mas também porque é um cidadão angolano comprometido com o seu tempo. Por outro lado, a Chá de Caxinde dá mais um passo na sua afirmação como associação, editora, promotora de variadas formas de cultura e, também, grupo carnavalesco – uma genuína tradição da angolanidade.
O Instituto Camões, que foi parceiro nesta iniciativa, também merece o nosso reconhecimento porque, mais uma vez, contribui para uma maior difusão da cultura angolana, no nosso país, num ambiente de fraca oferta cultural, o que torna mais significativo uma tal semana, também “na bolsa de visibilidades mundanas” do país, como diria o próprio Ruy Duarte de Carvalho nas suas Actas da Maianga (p. 150).

E. Bonavena

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A NOVA ESCOLA

“A escola surge assim como um lugar muito importante de realização da cidadania. A escola de que o país precisa para se desenvolver rapidamente (e recuperar todos os atrasos que registou ao longo dos trinta e três anos de independência) precisa de muito dinheiro dirigido, não para despesas administrativas perdulárias mas para o estudante no plano académico, social e cultural”.
Nelson Pestana (Bonavena)*

No texto anterior falamos da educação como objectivo estratégico do país.
Apresentávamos então a educação e a formação profissional como dois elementos-chave do desenvolvimento do país. Dizíamos que através destes podíamos aumentar as oportunidades dos cidadãos angolanos (assegurando a todos a oportunidade de desenvolver as suas competências, capacidades e habilidades) garantir o crescimento económico sustentado (aumentando a quantidade e qualidade do capital humano nacional disponível ao processo de produção) e combater a vulnerabilidade estrutural do país que constitui a pobreza.

Apesar de ter como principais propósitos imediatos os de erradicar o analfabetismo e de tornar universal o acesso ao ensino geral e à formação profissional continua, a educação deve ser tida como uma conquista da humanidade a ser proporcionada a todos os níveis e em todo tempo. Também não deve ser vista como uma instituição abstracta. A escola deve ser vista como local de promoção social, valorização e desenvolvimento da cultura, da crítica, da autonomia, do conhecimento e da sua aplicação prática. Se o desafio da quantidade corresponde a demanda actual das nossas crianças que não podem ver os seus direitos fundamentais violados sob pretexto de falta de escola, é uma imposição da acirrada competitividade do mercado atingir-se rapidamente uma educação de qualidade, quer no ensino público, quer no ensino privado. E, para almejar um tal desiderato, o Estado deve financiar de forma suculenta o ensino público mas também o privado que tenha uma função social. Ou seja, o Estado deve, sem nenhum complexo, incentivar o ensino privado para que este, a par do ensino público concorra para proporcionar o acesso ao ensino de qualidade a todos os cidadãos. O ensino especial funciona ao nível do ensino primário mas deve atingir os outros níveis e as estruturas físicas das escolas têm que ser preparadas para receber com fácil acessibilidade pessoas portadoras de deficiência física.

Na nossa concepção a escola surge como um lugar muito importante de realização da cidadania. A escola tem que ser entendida como o local de “trabalho” das nossas crianças, estas deverão dedicar seu tempo principal aí. A escola de que o país precisa para se desenvolver rapidamente (e recuperar todos os atrasos que registou ao longo dos trinta e três anos de independência) necessita de muito dinheiro dirigido, não para despesas administrativas perdulárias mas para o estudante no plano académico, social e cultural.

Pois essa escola de que o país precisa, tem que ser uma nova escola que ocupa as nossas crianças e jovens o dia inteiro. Ela deve ser entendida como sendo o “emprego” deles. Enquanto, os pais partem para a labuta da vida, os candengues e misangalas devem partir para a escola onde vão adquirir cultura geral e as competências que lhes permitam exercer uma profissão. Estas trajectórias poderão, inclusive, a partir de uma determinada altura, fazerem-se em paralelo, isto é, enquanto já se trabalha, continua a aquisição de novas e mais elevadas competências. Na verdade, o país precisa de mandar todo o mundo para a “escola”. A formação profissional deve ser alargada a todos os sectores e a todos os cantos do país, dando maior relevo aquelas áreas que são a base de sustentação do nosso desenvolvimento e tendo em atenção a definição da nossa integração na SADC, do papel que nos reservamos na África central e da nossa inserção no sistema da economia mundial. A formação profissional deve também ser entendida como formação contínua, em todos os domínios. O país precisa pois das ferramentas que lhe permitam dotar-se de múltiplas instituições de divulgação e difusão do saber e de competências e de promoção do acesso universal a um ensino de qualidade a todos os cidadãos.

A escola surge assim como um lugar muito importante de realização da cidadania. A escola de que o país precisa para se desenvolver rapidamente (e recuperar todos os atrasos que registou ao longo dos trinta e três anos de independência) precisa de muito dinheiro dirigido, não para despesas administrativas perdulárias mas para o estudante no plano académico, social e cultural pois não basta proporcionar o acesso universal à escola, não chega garantir que o desenvolvimento da rede escolar vai acompanhar o desenvolvimento demográfico, é preciso aumentar os níveis de aproveitamento e reduzir os altos níveis de absentismo e desistência.

A nova escola que ocupa a criança o dia inteiro tem outros efeitos sociais muito importantes, quer para a criança, quer para as famílias, quer ainda para o país. Nela interagem outros sectores: o serviço social escolar, o serviço médico escolar, o desporto escolar e todos os serviços implicados com as actividades extra-escolares (informática, música, artes, leitura, educação para o ambiente e outras). Tendo as crianças o dia todo na escola é obrigatório garantir duas merendas diárias (uma ao meio da manhã e outra ao meio da tarde) e um almoço. O que implica, para além de outros aspectos, a organização de um serviço social de apoio a nível nacional. Através destas três refeições é possível melhorar a dieta alimentar das nossas crianças, tornando-as mais sadias. A nova escola de dia inteiro através dos serviços de saúde escolar terão a obrigação de controlar as vacinas básicas (a quíntupla + meningite) as parasitoses, as doenças respiratórias e um aporte vitamínico adequado para combate das anemias. O desporto escolar é a base do desenvolvimento sustentado do desporto nacional. As actividades extra-escolares são fundamentais para que as nossas crianças desenvolvam outras competências que são necessárias no mundo contemporâneo.
O facto das crianças ficarem o dia todo na escola tem efeitos colaterais importantes, nomeadamente, a libertação da mulher que é uma força produtiva extremamente importante e a redução das despesas no orçamento da família que apenas tem que se preocupar com a refeição da noite. Por outro lado, a medicina preventiva na escola e a educação para o ambiente, não somente proporciona um desenvolvimento mais sadio às nossas crianças como permite ao Estado poupar dinheiro com várias doenças que serão evitadas, nomeadamente todas aquelas ligadas ao meio ambiente e saneamento e aos hábitos de higiene como seja o simples gesto de lavar as mãos.

As outras vantagens são mais que evidentes, quer nos níveis de aproveitamento, quer na promoção da igualdade de oportunidades pois, contrariamente as demais classes, as classes baixas normalmente não têm tempo ou competência para fazer o acompanhamento dos filhos no estudo e na realização dos deveres escolares de casa.

Essa nova escola assim concebida implica novas formas de participação de todos os actores intervenientes, através de fóruns de concertação que permitam o alargamento da democracia e uma forte acção de fiscalização, nomeadamente contra a corrupção. A nova escola implica também uma forte valorização profissional e humana dos professores que são o factor decisivo para o sucesso de todo este programa.

*Cientista político

A NAÇÃO NO DISCURSO DE NÓS MESMO

“Em vez de procurar legitimar-se por este meio para se eternizar no poder independentemente da mudança social e da nova consciência nacional, o poder deveria, num país que viveu longos anos de guerra civil, optar, necessariamente, por um discurso sobre as formas de reconciliação e de reconhecimento do Outro”

Nelson Pestana (Bonavena)*


Dois acontecimentos recentes que ocorreram na mesma altura, embora de forma separada e sem aparente relação entre si, chamaram a minha atenção e suscitaram-me uma reflexão sobre o sentido de “nós mesmo”. Um foi um acto de memória, outro um quase fait-divers. O primeiro foi o simpósio sobre Holden Roberto, promovido pela FNLA, em que participaram intelectuais de vários quadrantes políticos, o outro a ida e as declarações in loco da Governadora de Luanda sobre o Mural do Hospital Militar Central, justificando a sua renovação e permanência das palavras de ordem do partido único e da propaganda das suas organizações de massas e departamentos. Este é do registo institucional e o anterior do discurso alternativo.

Os dois factos inscreveram-se em torno da ideia da construção da Nação, das suas representações e da sua função simbólica pois a justificação da governadora, embora tratando-se de propaganda política do partido de poder, falava da preservação do património como legado histórico de uma mesma comunidade, enquanto o Simpósio sobre Holden Roberto visou uma releitura do nacionalismo angolano que contrariasse a versão oficial redutora que privilegia a acção do partido-Estado e desvaloriza, estigmatiza ou mesmo ignora o contributo dos demais movimentos e grupos nacionalistas.

Para mim toda identidade é necessariamente uma “fabricação” que trabalha aspectos da história e da memória de um determinado colectivo com vista a um fim concreto de afirmação e/ou dominação. Esta “fabricação” é quase sempre fruto das elites intelectuais e da imposição de um poder sobre os demais membros da comunidade que a assume e a vivifica, dando-lhe curso e força reprodutiva. Mas, esta construção não é, de todo em todo, arbitrária, baseia-se em factos históricos e produtos sociais determinados.

Mas, apesar disto, pode conter “falsificações” (Christine Messiant dizia que, entre nós, mesmo o passado é imprevisível), o que faz do facto nacionalista angolano um mercado especulativo, tanto quanto qualquer outro, pois cada um dos protagonistas da história procura vender a sua participação, ao melhor preço, melhorando-a ou embelezando-a com artefactos e artifícios, dando azo aquilo que poderia chamar uma especulação da memória participativa. É pois um terreno de concorrência e de exclusão e, por isso, Siona Casimiro, tendo subjacente o 4 de Janeiro, a comemoração de mais um aniversário da revolta da Baixa de Cassanje, escreveu uma bela crónica, transmitida pela Rádio Ecclesia, em que procurava “reintegrar na história” aqueles que dela foram excluídos por razões conjunturais de dominação, atribuindo o incitamento da revolta ao Cónego Manuel das Neves.

O poeta Agostinho Neto tinha uma ideia de Nação que em vista das teorias sobre a Nação se aproxima da ideia de Renan, segundo o qual, o critério que funda a pertença é um princípio espiritual que articula, por um lado, as vivências comuns, ligadas à uma continuidade genealógica e, por outro, a vontade de “viver em comum”, o sentido de ser reconhecido como pertencente a uma dada comunidade. Já a revolução, por ele liderada, apaga as pessoas e toma como referentes os ícones em que algumas delas são transformadas ou que ela própria edifica, o que conduz a exclusão de todos os demais. É o sentido de utilidade para a revolução que determinava a pertença a essa colectividade.

A revolução angolana, protagonizada pelos mais diferentes actores do nacionalismo angolano, é por natureza produtora de exclusão e, in fini, autofágica. A autocracia que lhe imita os passos, não nos propósitos, não na bondade do seu projecto social, mas nos métodos de dominação e reprodução legítima, não quer privilegiar senão a reprodução e o reforço do seu poder. A prova da sua frágil legitimidade democrática, conseguida por golpe eleitoral, é que o regime continua a apostar, como o faz a Governadora de Luanda, em relação ao valor histórico-cultural do Mural do Hospital Central de Luanda, numa versão da história que faz do partido de poder a “vanguarda do povo”, através da qual a Nação se realiza.

No entanto, em vez de procurar legitimar-se por este meio para se eternizar no poder independentemente da mudança social e da nova consciência nacional, o poder deveria, num país que viveu longos anos de guerra civil, optar, necessariamente, por um discurso sobre as formas de reconciliação e de reconhecimento do Outro. A forma como se aceita o Outro, não somente no dia-a-dia mas sobretudo na história e em relação a memória de si, é o traço fundamental a compreender para se explicar os modos e lugares (reais ou de memória) da concretização da unidade nacional e da imagem que se constrói da Nação enquanto comunidade de destino.

As bases sobre as quais se constrói hoje (o discurso sobre) a Nação deveriam, pelo menos na escolha dos seus referentes, ser diferentes do passado período de partido único e não mais insistir nessa ideia bizarra de que o partido único (recauchutado) será a forma ideal de realização da Nação.

Sei que o debate sobre os símbolos nacionais, nomeadamente sobre a bandeira nacional, que virá adrede com a “discussão constitucional”, vai ainda carrear muito desse pensamento que pretende “universalizar” e dar como referente geral, uma experiência particular de um grupo contra outro(s). Isto tem levado a que, no interior de si, a identidade colectiva afecte a identidade singular dos indivíduos em relação à sua integração na estrutura do inconsciente colectivo, resultando na construção de uma fronteira imaginada entre núcleos culturais e, sobretudo, entre indivíduos. Pelo que a Nação aparece como um imaginário a geometria variável que dá a cada indivíduo uma visão diferente, a cada apreciação diferenciada.

Mas, sendo a Nação fundada sobre o imaginário colectivo, as paixões e fantasmas de “nós mesmo”, caracteriza-se também pela convivência do simbólico da diferença cultural e das representações do Outro. E, isto, é que é importante e mobilizador de todos nós e não insistir nos ganhos de uma crise de identidade (a guerra civil) apenas porque se detém o monopólio da força.

* Cientista político

"AS GLÓRIAS DO GENERAL" - já vi este filme!

“José Eduardo dos Santos, ao mesmo tempo que organizou uma máquina de subversão da vontade popular expressa pelo voto, apresentou-se na sua faceta mais genuína: “a de jogador”. A de “jogador” rotineiro que vicia as cartas, muda os baralhos e corrompe o croupier para vencer todas as partidas e arrecadar todas as fichas, transformando o país no seu casino pessoal”.
Nelson Pestana (Bonavena)*

Há analistas que indicam que José Eduardo do Santos não vai insistir na sua intenção de ser “eleito” de mão levantada, como candidato único, pela Assembleia Nacional. Esta convicção estaria baseada na sua própria atitude, na tentativa que fez de melhorar a sua imagem, pela orientação que deu no seu discurso de fim-de-ano, nos sinais que vão chegando do interior do partido da situação e que vão no sentido da recusa de uma mudança da Constituição para confortar essa sua pretensão. Parece que a maior parte dos militantes do partido dos Santos estão contra uma tal proposta e têm feito ouvir a sua voz através de personalidades de ponta da sua família política mas também por jovens irreverentes.

Não deixa de ser interessante escutar essas vozes e perscrutar os sentimentos dos vários segmentos da sociedade. Isto permite-nos ter elementos de análise e compreender melhor os mecanismos de manipulação política da central ideológica do regime mas também as formas de resistência que se lhe opõem. Este tipo de manifestação é também útil a destruição da ideia de que a fraude eleitoral corresponde a um unanimismo nacional a favor do partido de governo.

A proposta de José Eduardo dos Santos, mesmo que tenha surpreendido alguns, não é nada que seja estranho à sua maneira de estar na política nacional. José Eduardo dos Santos é um conservador convicto que apesar de falar em “mudança na continuidade”, é nesta ponta da expressão onde melhor se revê e, por isto, não corre nenhum risco. Só empreende por uma solução, não tendo absoluta segurança, correndo algum risco, quando é forçado a fazê-lo ou quando comete algum erro de avaliação da situação. Aí, recua imediatamente, volta a trás e dá o dito por não dito. Ele só avança quando tem a absoluta certeza de vitória. Quando acontece um fracasso, procura imediatamente um bode expiatório. O pior que lhe pode acontecer é ser posto perante desafios e responsabilidades. Tragam louros que ele os colhe a todos. Afinal, como dizia o poeta, “as glórias cabem aos generais”. E dos Santos é um general com um superego e uma libido dominandi desmesurada!

Os ais das batalhas pertencem aos soldados, fica subentendido no poema de Agostinho Neto e por isso alguém há-de sempre de ser sacrificado para que a montante ou a jusante de uma qualquer operação política, seja preservado “o general”. Quintino Moreira que secundou o presidente do partido da situação nesta proposta, reivindicando-lhe a paternidade, não é um soldado, é apenas um batuqueiro: aquele que faz ecoar a mensagem. O papel dele esgota-se aí.

José Eduardo dos Santos é um “general” que conta com os seus soldados. A incorporação de um “batedor” é meramente circunstancial. A sua manobra política desde há dois anos, não se vai esboroar perante uma simples “oposição”. Ele separou as eleições legislativas das presidenciais, abandonando a ideia da sua realização simultânea porque não tinha a certeza de uma vitória nas “eleições gerais”, como dizia nessa altura. Ao fazer preceder as legislativas em relação às presidenciais o que pretendia era ter o absoluto controlo da situação e ter campo de manobra que lhe permitisse continuar a ser poder (autoritário) mesmo em caso de derrota ou de maioria relativa do seu partido, como indicavam, ao longo do tempo, as sondagens que encomendou a várias entidades especializadas.
Foi esta separação que permitiu desbloquear a situação de impasse em que o país se encontrava, após o estabelecimento da paz, que o levou a sucessivos adiamentos da data de realização das eleições. Teoricamente, a eleição que lhe interessava era a presidencial, pois ele, na qualidade de Presidente da República, qualquer que fosse o resultado das legislativas, continuaria a ter um grande poder sobre as forças políticas, por força do golpe do acórdão do Tribunal Supremo que lhe atribui a chefia do Governo e que transformou o Primeiro-Ministro em seu coadjutor.

Esta separação também lhe permitiu organizar o golpe da fraude eleitoral, contando com uma conivência alargada porque ele se insinuou como o presidente de todos os angolanos que não estaria directamente interessado no resultado das eleições legislativas, mas tão-somente ser o garante da estabilidade, no país. Manobra que lhe permitiu entorpecer ou mesmo adormecer, quer partidos políticos, quer organizações da sociedade civil e igrejas, quer ainda países da comunidade internacional.

Perante a quebra da vigilância de todos em relação ao poder, José Eduardo dos Santos ao mesmo tempo que organizou uma máquina de subversão da vontade popular expressa pelo voto, apresentou-se na sua faceta mais genuína: “a de jogador”. A de “jogador” rotineiro que vicia as cartas, muda os baralhos e corrompe o croupier para vencer todas as partidas e arrecadar todas as fichas, transformando o país no seu casino pessoal.

Perante a vitória fraudulenta e a maioria abusiva de 85% de que dispõe na Assembleia Nacional, não hesitou em expressar (sempre de forma subliminar) a sua vontade de se fazer “eleger” por voto de mão levantada, sendo candidato único. Depois saiu de cena mas não abandonou o teatro. A seu tempo voltaremos ao melodrama anunciado. Outros actores e figurantes farão a sua aparição. Dos Santos, controlando tudo, por detrás da cortina, ficará sempre na posição daquele que o povo quer, aquele que nos faz o favor de se sacrificar por nós”. Aquele que será escolhido pela vontade popular, através dos seus representantes. Não faltarão “soldados” e oficiais para defender esta ideia e fazer prevalecer a vontade “subterrânea” do chefe.

No passado, já vi este filme. José Eduardo dos Santos não se opôs ao projecto de alteração da Constituição que foi elaborado por uma Comissão Técnica nomeada (e controlada) por si. Mas, no dia da sua discussão, na Assembleia do Povo, surgiram os enfants-terribles do regime, à época, para contrariar todos e defender a ideia obtusa de que naquele momento a mudança era um risco, um perigo para a unidade nacional e outros “cujos e algos” mais.

Um governante renovador de então, veio defender a proposta da Comissão Técnica que assistia de camarote, desarvorada e meio envergonhada perante os seus conselheiros portugueses, ao desabar do castelo. Esse governante, procurando ganhar a assembleia, adoptou a táctica de primeiro lisonjear (bajular até mesmo) para depois dizer que estava na hora da mudança. Disse que o chefe era o melhor em tudo, ao ponto de dizer que ele era melhor que ele próprio mas melhor que ele só ele próprio. Mas, apesar disto, era preciso aceitar a ideia da consagração da separação de poderes e por isso o chefe devia deixar de ser o presidente da Assembleia do Povo

Apesar deste esforço o “camarada” (novo-cristão) não conseguiu convencer dos Santos dessa necessidade. E este levantou pessoalmente a voz para se opor à separação de poderes, na revisão de Março de 1991. E, mais adiante, perante uma certa resistência da “ala renovadora” de então, a sessão da Assembleia do Povo foi suspensa para dar lugar a uma curta reunião do bureau político do partido único. Aí, foram baixadas orientações para que a “continuidade” da fusão de poderes se mantivesse na Constituição de Março de 1991. Ao retomar a sessão de alteração da Constituição, às vozes favoráveis à continuidade da fusão de poderes juntaram-se figuras destacadas da direcção partidária da época que até aí tinham primado pelo silêncio. Perante a pressão intimidatória o resultado foi aquele que todos conhecemos: a manutenção.

Cheira-me que a “glória do general” vai tornar a ser defendida, até porque a sua capacidade de intimidação e coerção política é bem maior.

* cientista político