Ao falar do papel da escola, como instituição central para a revolução do saber e da transformação social no nosso país, pretendo apresenta-la como a “nova escola”, capaz de produzir efeitos rápidos de mudança, como o meio ideal, a instituição central de qualquer plano de desenvolvimento sustentado - como o mecanismo mais seguro de promoção social e articulador de igualdade, coesão e identidade (espírito de pertença).
Nelson Pestana (Bonavena)*
No penúltimo texto que escrevi, defendi que a prioridade do país são a água potável e o saneamento básico. Fi-lo baseado na escuta dos vários actores sociais e para contrapor a cegueira do poder mais afoito para a especulação imobiliária e para o populismo das chamadas “casas sociais”.
Nessa oportunidade, falei da educação e da formação profissional mas não tive espaço para explicitar a minha ideia segundo a qual estas constituem a nossa prioridade estratégica. Aquela que é necessária para produzir uma mudança radical do país, a todos os níveis, sem provocarmos a marginalização dos angolanos, proporcionando-lhes, pelo contrário, uma estrutura de oportunidades mais justa.
A escola é uma instituição chave do desenvolvimento humano pois, para além de ampliar as oportunidades do indivíduo em sociedade, porque garante a todos os cidadãos a oportunidade de desenvolver as suas capacidades, é indispensável ao crescimento económico, para o aumento da quantidade e qualidade do capital humano necessário à produção que é um meio seguro de integração na distribuição da riqueza e, por isto, de combate à pobreza.
Temos pois que ir da prioridade social à prioridade estratégica, investindo fortemente na educação e na formação profissional, sem as contrapor, para nos permitirmos renovar todo o tecido produtivo de forma integrada, não somente para que os angolanos não fiquem a ver o comboio do desenvolvimento passar, criando rupturas e fragilidades na coesão social, mas porque nenhum país se pode desenvolver de forma sustentada e captar investimentos se não poder oferecer, a par das infra-estruturas de base, mão-de-obra qualificada. Neste sentido, não devemos pensar a educação como uma despesa mas como um investimento.
Por isto, é absolutamente necessário colocar mais dinheiro na educação e na formação profissional mas, sobretudo, é preciso pensar a educação como um processo de interacção com a vida profissional e ligá-la à formação profissional e contínua.
José Cerqueira, economista reputado, disse, em entrevista ao Jornal de Angola, que vale a pena endividar um pouco mais o país para investir no bem-estar dos cidadãos. Estou absolutamente de acordo com ele, mas já não nas escolhas que faz para o desenvolvimento do país no que toca ao meio rural. O importante é que esse dinheiro seja investido da melhor forma. A melhor forma de investir o dinheiro a mobilizar lá fora é na educação e formação profissional.
Mas, neste caso, esse dinheiro não deve servir para dar continuidade à escola actual. É preciso um ponto de partida mais amplo. Não basta promover uma reforma curricular (algumas vezes mal alinhavada), propagandear estatística de salas construídas (muitas vezes, sem equipamentos, nem professores…) é preciso repensar a escola (desde a primeira infância) e a educação no sentido mais amplo, em todas as suas envolventes.
A nova escola tem que ser articuladora do processo de aquisição do conhecimento e da selecção da informação que hoje, as novas tecnologias, permitem colocar à disposição de todos, de forma gigantesca. O problema é a capacidade de selecção e articulação para processar essa informação, tornando-a funcional, prática e produtora de respostas adequadas à demanda da vida produtiva e social.
O poder não pode deixar de investir na melhoria das condições de reprodução social da mão-de-obra, por razões políticas e económicas evidentes. O Príncipe deu-se conta que não era possível montar o Estado corporativo que lhe permitisse o controlo do poder por um bom par de anos, apenas assente no golpe eleitoral, sem o organizar em torno de uma certa ideia de justiça. A minha intenção é combater o Estado corporativo sem desaproveitar o investimento social e educativo que a sua articulação obriga o Príncipe a conceder à Nação. Não quero “deitar fora o bebé com a água do banho” - como diriam os franceses.
E, por isto, entrei, desde o texto passado, no terreno da negociação. Não tenho nenhum problema em pisar esse terreno a bem de um projecto comum de desenvolvimento do país. Isto, em nada me compromete, nem em relação aos meus ideais, nem em relação a minha acção cívica e política. Desde logo, porque não aceito negociar a minha pauta ética e o meu direito de crítica. Da mesma maneira que nunca aceitarei contribuir para uma agenda da letargia, da renúncia e do esquecimento.
Ao falar do papel da escola, como instituição central para a revolução do saber e da transformação social no nosso país, pretendo apresenta-la como a “nova escola”, capaz de produzir efeitos rápidos de mudança, como o meio ideal, a instituição central de qualquer plano de desenvolvimento sustentado - como o mecanismo mais seguro de promoção social e articulador de igualdade, coesão e identidade (espírito de pertença).
Essa escola implica um grande investimento que devia reflectir-se já no OGE de 2009. A reivindicação da FpD de colocar 30% do OGE para a educação e formação profissional pode ser tida como um exagero, mas, se assim for, esse investimento não deve ficar abaixo dos 20% sob pena de nos continuarmos a atrasar em relação aos demais países da SADC. Não é possível ser uma potência na região e em África sem um considerável nível de desenvolvimento educacional.
*Cientista político
terça-feira, 16 de dezembro de 2008
A EDUCAÇÃO É A PRIORIDADE ESTRATÉGICA DO PAÍS
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DA JUVENTUDE ANGOLANA
A juventude angolana não é amorfa, tem é mostrado uma outra realidade que os poderes pretendem ignorar. No geral, não participa em movimentos associativos, sociais e reivindicativos mas organizou formas de resistência próprias através do espaço cultural (indumentária, música e teatro) e nas comunidades locais (familiares, linguísticas ou religiosas). Para além disto, é preciso considerar o silêncio que também é uma forma de manifestação e a expressão do seu protesto.
Introdução
Parece que a imagem do jovem sinónimo de refractário da política está muito disseminada entre nós. E, daí a importância do tema escolhido pela associação Omunga para esta conferência: “A participação política da juventude angolana”. Sobretudo porque vivemos numa sociedade fechada, cujo modelo de governação permanece numa lógica de controlo da sociedade e desta sobre os seus membros.
Mas, quando penso num tema destes, a primeira preocupação que me ocorre é a da necessidade de uma precisão de conceitos, para saber o que é isso de ser jovem e o que é que significa a expressão “participação política”.
A juventude é um momento de passagem entre a adolescência e a vida adulta. É, por isto, um conceito cronológico, um momento do desenvolvimento biológico e intelectual do homem. Embora neste capítulo, Jean-Paul Sartre afirmasse que “ a juventude não é uma idade mas uma maneira de estar na vida”. E, neste sentido, segundo o filósofo francês, podia-se ser adulto e manter-se um espírito jovem, e ter-se juventude física e ser-se espiritualmente velho. O fundador do existencialismo entendia pois a juventude como a condição de irreverência em relação aos desafios da vida e a velhice como o conformismo. Ou seja, para Sartre a juventude é ao mesmo tempo um estilo de vida e uma força inconformista, renovadora.
A juventude, sendo um momento do percurso social do Homem que está ligado a determinadas percepções e expectativas, tem sempre um papel preponderante, porque afinal, não há sociedade sem juventude. O papel dos jovens sempre foi fundamental na história política e social do país e, não pode deixar de constituir um factor determinante na transformação social do país.
Grandes líderes nacionais, africanos, americanos, asiáticos e europeus começaram por ser militantes de organizações juvenis, começaram por ter participação em movimentos associativos, em vários domínios (político, cultural e social, estudantil e outros) que funcionaram para eles como verdadeiras escolas de formação cívica.
Nelson Mandela começou por ser membro da juventude do ANC, Agostinho Neto, antes mesmo de ter militado no Mud-juvenil, fez parte da juventude evangélica da Igreja Metodista e participou no jornal cultural do Liceu Salvador Correia, o Estudante. Muitos dos militantes nacionalistas passaram primeiro, e fizeram uma espécie de aprendizado nas organizações juvenis religiosas. A maior parte dos actuais dirigentes políticos passaram por organizações de jovens. O actual Presidente da República foi dirigente de uma organização juvenil. A participação nos movimentos estudantis proporciona aos jovens uma outra visão do mundo. O célebre movimento de estudantes de Maio 1968, em França, mudou o mundo. O movimento de resistência dos estudantes de Soweto mudou a África do Sul e levou ao fim do apartheid.
Definir “participação política” implica descortinar dois conceitos, o de “participação” e o de “política”. Começo por encontrar uma definição de “política” para depois pensar o entendimento de “participação” e, consequentemente, de “participação política”.
Quando se fala de política não rara vezes a primeira coisa que se faz é esclarecer a origem etimológica da palavra do grego politiké (cujo sentido seria o de ciência dos assuntos da polis). Muitas abordagens do tema, definem a política como sendo a organização do poder numa comunidade. Em sentido lato, a política é a forma de organização e funcionamento de uma sociedade. A política é pois uma forma de defesa do interesse comum dos membros de uma comunidade. A política, como forma de organização e funcionamento da polis, visa um interesse universal que diz respeito a todos e não apenas a alguns, como é o caso das formas pré-politicas identificadas por Aristóteles, como é a oikos.o Somente num sentido restrito, a política é associada às lutas pelo controlo e exercício do poder.
Afinal, este conceito não é estanque, e tem evoluído com o decorrer dos tempos, correlacionando-se com outros conceitos. A ideia de que a política refere-se a questões do interesse comum da comunidade, está associada à ideia de espaço comum, de espaço público, onde intervêm uma pluralidade de autores interessados na melhor gestão da res publica. Mas, também está ligada às formas de decisão sobre esse interesse comum.
A política teria assim, três sentidos; o de forma de domínio, o de tecnologia da gestão do interesse comum e o de uma relação de poder.
A participação é entendida como a possibilidade de fazer parte dessa res publica, da sua gestão, dos processos de escolha e decisão. A participação política deve pois ser entendida como fazer parte do espaço público, das escolhas e decisões políticas que dizem respeito a todos.
Apurados os dois conceitos que balizam o nosso tema, creio que para falar da “participação política da juventude angolana”, temos que o fazer em dois momentos: (1) a juventude e a sociedade (relação formação, integração, alienação) e (2) a relação da juventude com a política, ou seja, o processo de tomada de consciência da juventude que a levará à apropriação da política e do espaço público. Para, finalmente, tirar algumas e breves conclusões.
I. A juventude e a alienação na sociedade
É comum afirmar que cada sociedade constrói a sua juventude à sua própria imagem (FORACCHI, Marialice M., 1965, O Estudante e a Transformação da Sociedade Brasileira, São Paulo, Nacional). O nosso país está refém de um poder de predação desde algum tempo. E, desde há alguns anos que se tem a ideia de que os jovens apenas se deixam atrair por “maratonas”. Esta instituição (a “maratona”) foi uma criação do partido de poder para “alienar” os jovens que no dealbar da independência se apresentavam muito implicados com os destinos do país, com as ideias revolucionárias, com o inconformismo.
As representações da sociedade angolana refém dessa economia política de predação seriam tendentes a valorizar e a estimular determinados comportamentos dentro de limites que ela própria estabeleceu e que são os limites da sua legitimação e da sua continuidade, destruindo a capacidade de autonomia da juventude.
Por isto, é que hoje, a ideia que se tem é que os jovens não se interessam pela política, ou pelo menos, não têm participação política. São apáticos em relação aos destinos do país e remetem essa tarefa que lhes é estranha para o “boss do cadeirão maior”. A vida dos jovens poderia pois resumir-se a um estado contemplativo, de pouca entrega para o saber, de permanentes sentadas alcoolizadas, onde se discute futebol, música, o enredo de um esquema e uma ou outra cena cómica da vida.
Esse desinteresse dos jovens pela política estaria associado ao facto de eles não encontrarem nos políticos nenhuma proposta que os seduz, pois estes não reflectem no seu discurso as principais preocupações dos jovens. Estas preocupações seriam a pobreza, o acesso à educação, ao emprego e à habitação.
É claro que os jovens mostram também uma grande desinformação sobre a política, já que os seus meios de (des)informação são os órgãos de comunicação social do Estado, com uma preferência pelos programas de diversão, a despeito dos formativos ou informativos.
A ausência de mecanismos que estimulem a participação dos jovens é consabida. Da mesma maneira que poucos são os mecanismos de participação de todos os cidadãos no espaço político.
Estudos sobre os jovens mostram que estes são mais afoitos a participar em associações religiosas ou desportivas. O que demonstra que não há menor participação dos jovens por falta de disposição ou mesmo desinteresse, mas sim porque não há mecanismos que estimulem e promovam o acesso à informação e a inclusão das pessoas, e nomeadamente dos jovens, na política do país.
A pressão da sociedade para que os jovens se afastem da política, não de uma carreira no Estado (isto é, no partido-Estado) é grande. À esta pressão (sociedade/jovem) contrapõe-se a uma pressão dos jovens sobre a sociedade. O equilíbrio destas duas forças está na sua conjugação e auto-preservação. Mas há um momento em juventude e sociedade hão de ter fricções, choques pois a sociedade nem sempre consegue cumprir com os seus compromissos para com a juventude (ou pelo menos com aquilo que a juventude acha que é o compromisso da sociedade em relação a ela). A percepção que os jovens têm de si mesmo é que eles não contam para nada, mesmo quando se repete o slogan (esvaziado): “a juventude é futuro de uma nação”.
Mas, apesar desse olhar devolutivo de sinal negativo, a juventude representa uma força dinamizadora do sistema social. E por isso vai procurar transforma-lo. A escolha dos meios e dos objectivos pode ser condicionada pela maneira como se lidar com os jovens no presente. “Quem semeia ventos, colhe tempestades! – diz o ditado.
Que imagem a sociedade está formando no jovem? E qual a imagem devolutiva do jovem sobre a sociedade? Pela sua função a juventude, sendo uma sua criação, não será reflexo da sociedade que ela contesta. Pelo contrário, a sociedade é que será o reflexo da sua juventude. Há pois um “parto” anunciado da juventude em relação à sociedade. Este nascer de (que implica em termos simbólicos um separar-se de e um corte do cordão umbilical) não significa uma perda mas uma superação da sua “alienação” do espaço público.
Na medida da sua consciencialização sobre a sua “alienação” do espaço público, a juventude vai dotar-se de mecanismos de superação que o conduzam a autonomia (auto + nomos).
II. A juventude e a política
Um desses mecanismos é a participação política. Pois, a etapa da vida que é a juventude é um momento privilegiado para o despertar para as questões da polis. É normalmente o tempo das interrogações fundadoras do ser humano e, entre estas, estão as referentes a vida da comunidade de pertença.
Vimos, no entanto, que os canais de socialização dos jovens não estimulam a sua participação no espaço público e, nomeadamente na esfera política ou na gestão da res publica. Também porque o país vive um momento particular de desenvolvimento e os nossos jovens estão mais tolhidos por necessidades primárias, já que as suas expectativas não são correspondidas.
É comum acusar os jovens de hoje de não ter mais utopias, de serem muito consumistas, imediatistas, interesseiros, de estarem completamente alienados pelo sistema que os formatou, incorporou e os absorve. Para essas pessoas apenas as gerações passadas são a grande referência.
Mas, a juventude é uma espécie de barómetro social, onde o mercúrio sobe ou desce em função do aquecimento social. Uma sociedade asséptica, cujo cordão sanitário político (mantido por uma policia de contra-inteligência) não permite a menor manifestação dos jovens está em sinal de alerta vermelho. Tudo vai bem, ou tudo vai mal.
O que temos que saber é o porque dessa maneira de estar na sociedade da juventude de hoje, e, nomeadamente em relação à política.
Acontece que a política continua a ser associada a uma actividade de risco. A velha expressão; “Xé menino não fala política”, contínua a perdurar.
Todas as iniciativas de participação em associações ou fóruns locais que não sejam entendidos como prolongamentos da governação (que é entendida como uma coisa diferente da política) e como auxiliares do “governo”, são vistas com desconfiança, são cooptadas, controladas ou perseguidas.
Glosando Dom Hélder da Câmara, célebre bispo brasileiro que se opôs à ditadura militar, pode-se dar pão aos pobres, mas não se pode questionar o porquê dos pobres não terem pão”. As coisas são como são e por isso não devem ser questionadas - este é um pensamento impulsionador do conformismo que está subjacente à actuação do poder político no país.
O que quer dizer que há também necessidade de alteração da organização política do país, de maneira a modificarmos a estrutura de poder político e a construir uma sociedade aberta, de livre iniciativa e emulação de ideais, também no espaço político, de modo a incluir nos processos de decisão e execução das políticas públicas a pluralidade de sujeitos e, particularmente todos aqueles que são directamente interessados ou atingidos por esta política pública.
A juventude tem a potencialidade de ser a principal camada social a promover este reordenamento político, tanto pela sua disposição em participar na construção do seu próprio destino, quer pela sua importância e expressão sociais.
III. Conclusão
Tem pois que romper com o conformismo. E assumir uma cidadania activa, em casa, na escola, no bairro, no município, na província e no país.
A juventude deve desde já construir a sua intervenção social unificada, de modo a exercer maior influência de decisão sobre a política em geral, seja nos movimentos sociais e reivindicativos, seja na política institucionalizada. Isto é gerador de grandes e importantes conquistas sociais para todo o país e para todos (jovens, famílias, comunidade).
Permite promover a inclusão política que é uma das componentes da cidadania activa. O país precisa de investir em políticas sustentadas para a juventude sobretudo quando se sabe que a estrutura etária do país é muito jovem, perfazendo cerca de 60% da população menor de 18 anos.
A própria sociedade precisa dessa participação e intervenção dos jovens, pois ela permite uma renovação dos quadros dirigentes. A experiência mostra que os jovens que participam dos movimentos associativos, sociais e reivindicativos acabam por ocupar posições de relevo na sociedade.
A juventude organizada e consciente dos seus direitos e deveres promove sempre renovação e transformação. Enquanto que a juventude alienada do seu papel social reproduz o modelo da sociedade vigente e, não só perpetua formas de injustiça, como hipoteca o seu (e o nosso) futuro. Pois a ausência de jovens na política provoca desequilíbrios na sociedade.
A juventude angolana não é amorfa, tem é mostrado uma outra realidade que os poderes pretendem ignorar. No geral, não participa em movimentos associativos, sociais e reivindicativos mas organizou formas de resistência próprias através do espaço cultural (indumentária, música e teatro) e nas comunidades locais (familiares, linguísticas ou religiosas). Para além disto, é preciso considerar o silêncio que também é uma forma de manifestação e a expressão do seu protesto.
Por isso, a juventude é uma etapa cronológica da vida, é uma entidade inerente ao homem social, é uma potencialidade rebelde e inconformista mas sobretudo sintetiza a possibilidade de uma força de pronunciamento no processo histórico de desenvolvimento do país.
O que precisa é assumir o seu lugar e tempo. As gerações passadas podem ser referência para os jovens de hoje, mas não podem coloniza-los, impedindo que estes cumpram o seu próprio tempo.
Cada geração tem o seu tempo e contexto e deve vivê-los. Assumindo a sua autonomia e visão crítica própria
Cientista político e investigador-coordenador do CEIC/UCAN
O PRÍNCIPE PERPÉTUO E A FOME
Nelson Pestana (Bonavena)*
José Eduardo dos Santos aproveita, mais uma vez, uma reunião do comité central do seu partido para dar orientações ao país, bem no estilo do partido único, mesmo se a conjuntura actual o obrigue a algumas inflexões retóricas. Em vez de escrever à Assembleia Nacional ou fazer um discurso aos deputados, fala aos seus pares e, por intermédio deles, através do eco da comunicação social, a todos nós.
Para ele a questão mais importante para o país é a Constituição e, por isto, vai constituir uma comissão ad-hoc para redigir um texto constitucional que vai ser, “eventualmente”, submetido à “discussão alargada antes da sua aprovação pelo parlamento”, pois, segundo ele, há, no país, duas correntes sobre a forma de eleição do Presidente da República: uma que acha que o Presidente da República deve ser eleito por sufrágio directo dos cidadãos eleitores e outra que defende que o mais alto magistrado da Nação deve ser eleito por sufrágio indirecto, através dos deputados à Assembleia Nacional.
Para mim isto é uma grande novidade. Na verdade, nunca ouvi ninguém se pronunciar sobre a forma de eleição do Presidente da República que não fosse através do sufrágio universal e directo que é o que está consagrado na Constituição e que sempre fez unanimidade.
Melhor, a forma de eleição do Presidente da República nunca foi objecto de debate, mesmo se eu escrevi, há uma determinada altura, que não tendo havido condições para realizar a segunda volta das presidenciais de Setembro de 1992, não se devia ter adoptado uma solução oposta à lei mas fazer uma emenda transitória à Constituição, no sentido do Presidente da República ter sido eleito pela Assembleia Nacional saída do escrutínio de Setembro de 1992, já que este era o único órgão de soberania com legitimidade popular. Mas essa minha observação circunstancial não teve nenhum eco no meio dos políticos e constitucionalistas angolanos.
O presidente-deputado disse também que somente depois de aprovada a nova constituição a eleição do presidente da República se fará. Torna pois a estabelecer um linkage entre a aprovação da “nova constituição” e a realização de eleições. O compromisso por ele assumido, depois de aconselhado pelo Conselho da República, de realizar eleições presidenciais em 2009 não é relembrado. Paira sobre a bruma da política nacional.
Isto significa que dos Santos não quer se submeter a eleições presidenciais do estilo republicano, com apresentação de candidaturas e defesa dos seus argumentos perante os cidadãos. Ele prefere um processo distante que o salvaguarde dos incómodos de uma campanha na primeira pessoa.
Para lá do que isso significa, o mais importante é assinalar que mais uma vez JES recorre a sua habitual forma inquinada de “negociar” o contrato social. A proposta que está subjacente é facilmente perceptível: da cidade alta ao alto das cruzes, com honras e garantias absolutas de continuidade.
Sendo assim, por muito antipático que possa ser o personagem, o paradigma de “negociação” que JES nos propõe é o da transição de Pinochet a contrario. Este ditador do Chile foi o protagonista do golpe de Estado que derrubou o governo democrático dirigido por Salvador Allende. Após uma forte repressão da resistência republicana e democrática, Pinochet apostou numa nova forma de legitimidade que passou pelo desenvolvimento económico e pela constituição de uma classe média fortemente interessada nesse novo Chile.
Quando percebeu que a sua grande fragilidade era a legitimidade política e que a ditadura não podia ser mantida por muito tempo, fez da legitimidade económica e social moeda de troca e negociou a sua saída do poder através de referendo. Organizou o plebiscito sobre a continuidade do seu poder e perdeu (o referendo) por uma estreita margem de quatro/cinco pontos, mas aceitou os resultados e deixou a Presidência da República, tornando-se senador vitalício, depois de ter concordado na redemocratização do país, tendo organizado eleições presidenciais sem a sua presença.
Esta negociação valeu-lhe, anos mais tarde, ser defendido pelo Governo democrático do Chile das mãos da justiça britânica. O ministro dos Negócios Estrangeiros, do Chile, um antigo resistente que este muitos anos nas cadeias de Pinochet, que viu alguns dos seus familiares desaparecerem nas masmorras do general chileno, foi lá busca-lo, em nome da unidade e da salvaguarda da paz civil no seu país.
No caso do nosso país, José Eduardo dos Santos, depois de trinta anos de poder, não quer negociar a sua retirada. Pelo contrário, quer que a nação aceite a sua continuidade vitalícia. Depois do golpe eleitoral, o que tem a nos propor é a sua “eleição”, como candidato único e de mão levantada.
Esta proposta, cuja a meta é o poder vitalício, quiçá a imortalização do seu poder através da sucessão de sangue, é extrema e pode significar, não somente a morte do processo de transição para a democracia mas igualmente o fim da política, pois, a ser assim, o poder volta a identificar-se completamente com o corpo místico do monarca absoluto, em quem se concentra a “política”, a economia, o social, o “sagrado” (o saber?) e a violência.
Mas, enquanto o príncipe pretende tornar-se perpétuo, grassa a fome nos Gambos, onde morrem todos os dias pessoas – segundo as notícias que nos chegam pela voz das ONGs que lá trabalham. O dito plano de segurança alimentar não se tem revelado eficaz, apesar de utilizado como propaganda de boa governação, como aconteceu no recente debate, de fim-de-semana, da RNA.
* Cientista político
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
A CEGUEIRA DO PRÍNCIPE E OS OLHOS DOS CIDADÃOS
Todos actores sociais angolanos o repetem, a água potável é a grande prioridade do país. No entanto, a menina dos olhos bonitos do Governo é a construção de um milhão de casas ao longo dos quatro anos da legislatura que arrancou.
O título pode parecer um pouco agressivo, não é esse o meu propósito mas tão-somente colher dele os fruto da sua força metafórica, na sequência e em contraponto com o texto anterior (“Os olhos do Príncipe”). A minha intenção é entrar no terreno da negociação em busca do “bom governo” que é uma aspiração humana milenar, se associarmos o dito “bom governo” àquele que realiza a justiça.
Durante a campanha eleitoral a FpD utilizou a expressão “uma torneira em cada casa” para consubstanciar uma reivindicação que apresentou como sendo de grande alcance para o desenvolvimento nacional e contrariar o anacronismo de políticos que oferecem, em pleno século XXI, chafarizes (uma solução do século XIX) como perspectiva de desenvolvimento, tirando partido da “miséria das pessoas” e do seu habitual conformismo.
Já sabíamos que a grande prioridade do país é a água potável! Que associada ao saneamento básico pode trazer rapidamente grandes e fundamentais mudanças na vida dos angolanos. Dizíamos então, repetindo o Dr. Luís Bernardino que 80% das doenças pediátricas estão associadas à falta de água potável e ao saneamento básico. Agora, no dia 15 de Outubro, na comemoração do “Dia Mundial da Lavagem das Mãos”, foi dito pela representante da UNICEF e repetido pelo Ministro da Educação que o simples gesto de lavar as mãos com sabão reduz a mortalidade infantil em 46%., o que é significativo num país onde morrem 260 crianças, em mil, por ano.
Por ocasião do “Dia Internacional da Erradicação da Pobreza” (17 de Outubro), Willy Piassa, gestor do LUPP (Programa de Luta contra a Pobreza Urbana) disse que as populações colocam a água como primeira prioridade. Nesse dia, o PNUD e o CEIC projectaram um filme sobre a pobreza entre os SAN, no sul do país. Num dado momento, um dos intervenientes do grupo, sintetizou as suas reivindicações dizendo que esperavam do Governo “água, terras, sementes e escolas”.
Todos actores sociais angolanos o repetem, a água potável é a grande prioridade do país. No entanto, a menina dos olhos bonitos do Governo é a construção de um milhão de casas ao longo dos quatro anos da legislatura que arrancou. É um objectivo nobre, desafiante, monumental que parece estar envolvido num certo perfume faraónico que não aproveita o país que tem uma fraca indústria de materiais de construção (por exemplo, serão necessários, pelo menos, seis mil milhões de tijolos, dois milhões de conjuntos sanitários, cem milhões de metros quadrados de mosaico, um milhão de lava-loiças, azulejos e outros kapuetes-kamundandes-e-kabrolokossos).
Após o anúncio de tal intenção, foi logo manifestado um certo cepticismo geral perante a grandeza do esforço, nomeadamente financeiro. Era preciso mobilizar cerca de 50 mil milhões de dólares americanos, numa estimativa por baixo, tendo como preço, , por fogo, 50 mil dólares americanos. Esta cifra representa, segundo Emídio Rangel, duas vezes e meia mais do que os bancos angolanos dispõem e dez vezes mais o valor do “famoso” empréstimo chinês.
Mas, como a promessa foi feita directamente pelo Presidente da República, logo se manifestaram duas forças opostas, a do mau agoiro para que o “homem” falhe para que lhe sejam assacadas responsabilidades e tirar daí dividendos políticos e as da “omnipotência” do Príncipe. E, perante isto, uma legião foi já mobilizada para compor as coisas e tornar real o anúncio do senhor. Este tipo de “guerrilha” não aproveita ao rápido desenvolvimento do país e a aplicação criteriosa dos recursos.
Tanto o faraónismo, quer a oposição de baixa política não aproveitam ao país. Não é essa a minha posição. Não é essa a noção que tenho da política e da sua função. A política deve servir para a produção do bom governo, para a satisfação das expectativas dos cidadãos, não para a realização egocêntrica dos actores políticos. Dai a minha apologia pela crítica como forma de emulação política, do debate contraditório para esclarecer as escolhas, da participação dos cidadãos na gestão da res publica e na responsabilização dos governantes perante os governados. Dai a minha forte oposição ao modelo do “Ministro mudo” (“mudo”, neste caso, é aquele que não diz absolutamente nada, nem pela linguagem gestual) que o Presidente da República quer impor ao país.
Nós temos que ver pelos nossos próprios olhos e fazer uso da nossa voz, nomeadamente para denunciar a cegueira do Príncipe e suas declinações, quando for o caso. Mas as relações entre dominantes e dominados não têm que ser constantemente de conflito. Ensino nas minhas aulas que essa relação é a maior parte das vezes de cooperação, por razões inerentes à própria vida em sociedade.
Assim sendo, creio que podemos negociar com o Príncipe a mudança das prioridades, para dizer que a grande prioridade desta legislatura deve ser o programa “Água para Todos”, reafirmando o nosso propósito de colocar uma torneira em cada casa. Não vale a pena insistir nas soluções do Rebocho Vaz (anos 1960), a que o Santocas chamou, mais tarde, currais; “casas todas elas rachadas, sem luz, nem água”, só para fazer número e estampar na primeira página do Jornal de Angola que se cumpriu o dito objectivo do milhão de casas sociais (ou seja, uma subespécie de moradia, sem qualidade). Este conceito de casa social está ultrapassado, foi uma resposta que alguns países adoptaram nos anos 1960 para dar solução a questão da habitação mas que abandonaram desde há muitos anos pois deram-se conta que isso levou a guetização da sociedade, a um desenvolvimento separado, quando o que mais se pretende é a integração e uma cada vez maior coesão social e justiça distributiva para garantir a estabilidade, evitando as explosões sociais que vemos acontecer nas diversas periferias desses países.
A solução procurada através da construção das 500, do Zango e afins devem ser para esquecer. Bairros com casas de má qualidade, minúsculas para famílias cuja a característica é ser alargada e que têm um número médio de cinco membros por família nuclear, sem água canalizada, nem saneamento básico, estreitos e confusos arruamentos por asfaltar, sem luz, sem equipamentos sociais de apoio aos aglomerados habitacionais são de abandonar, até por que a termo são dinheiro deitado fora. Tem de haver padrões mínimos de qualidade, mesmo com preços regulados e com intervenção do Estado, não na construção directa das casas, mas no subsídio do preço, através de institutos públicos próprios ou da rede de bancos comerciais. É preferível que as casas sejam pagas em mais anos pelos seus proprietários mas que tenham boa qualidade para que não se degradem rapidamente e não nos devolvam essa imagem de pobreza e vergonha num país tão rico, sobretudo quando se oferece no mesmo mercado casas cem vezes mais caras.
O preço é efectivamente um grande problema para a efectivação de grandes planos de construção de habitação de qualidade. Isto implica medidas em outras áreas que não propriamente a da construção, nomeadamente na política de salários a desenvolver. Um tema que se tornou também de actualidade perante o crescente movimento social reivindicativo. Sem uma politica progressiva de bons salários não é possível estimular uma política de poupança popular para destinar à compra da habitação. Assim, sendo, há necessidade urgente de reunir o Conselho Nacional de Concertação Social (e outros fóruns) para discutir a política nacional de salários.
Ligada a esta problemática está seguramente a questão da produtividade da força de trabalho nacional, e ligada a esta a da sua formação e também a da empregabilidade dos angolanos. Pois o crescimento da economia, e sobretudo as medidas para a sua diversificação vão criar empregos que serão melhor pagos mas infelizmente preenchidos com recurso à importação de mão-de-obra pois, fruto de um fraco investimento na educação e formação profissional, são poucos os angolanos com os perfis técnico-profissionais para os preencher. E, neste capítulo, atendendo a critérios de rentabilidade, o mercado é implacavelmente objectivo. Logo, se queremos resolver o problema da habitação, temos que elevar os níveis de reprodução social e de qualidade da força de trabalho, permitir que haja uma maior demanda e capacidade de compra dos angolanos, o que está também ligado ao aumento do consumo e ao desenvolvimento do comércio.
Em suma, em vez da cegueira do Príncipe concentrar toda a sua atenção no programa de fomento habitacional que anunciou, tem que aceitar a ideia de fazer um grande investimento na água potável e saneamento para todos, na educação e formação profissional e em outros meios que permita empoderar as famílias para que estas, sem paternalismos e caciquismo, estejam à altura de resolver os problemas que a vida lhes coloca a cada dia.Nelson Pestana (Bonavena) in semanário Agora, nº 604, 15 de Novembro de 2008
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
OS OLHOS DO PRINCIPE
Tal como o fascismo histórico, o regime actual ejecta do seu círculo os intelectuais no que eles têm de essencial e deles aproveita apenas o conhecimento e o prestígio social (como se tratassem de maiombolas do saber) sem que isso possa dar-lhes a oportunidade de se constituírem num corpus autónomo que não se submeta à disciplina de pensamento e de acção do regime”
Nelson Pestana (Bonavena)*
Não faltou quem me tenha dito que o meu exercício de escrita, sobretudo se procuro falar para os “intelectuais do regime”, é comparável ao desespero de Santo António que se sentindo incompreendido pelos homens, foi “pregar aos peixes”. Ainda assim, seria um elogio porque inscreveriam o meu “esforço” na tradição de “Voz de Angola, Clamando no Deserto”(1901), no entendimento de que é um exercício que serve para planar arestas, afastar pedras, fazer um caminho, em busca de um futuro. Ou seja, um exercício de realismo e esperança.
Mas, é claro que se um esforço explicativo não pode contar com a atitude de Henriques Feijó (personagem de Crónica de um Mujimbo, o belo livro de Manuel Rui) também não pode justificar a sua utilidade pela apatia daqueles que querem constituir o corpus de uma intelectualidade que por definição não pode deixar de ser autónoma na produção das suas opiniões. Um intelectual não deixa de ver os problemas pelos seus próprios olhos. O regime autoritário não permite isso, não apenas aos governantes mas também a àqueles que queiram integrar as suas fileiras e a todos que desejem intervir no espaço público. O regime pela sua natureza ditatorial nega os intelectuais na sua própria condição de liberdade de pensamento, na sua autonomia de acção, despolitiza o saber e torna-o um puro instrumento do seu poder (daí a preferência semântica pelo “quadro”, em vez de “intelectual”).
Por isto, tal como o fascismo histórico, o regime actual ejecta do seu círculo os intelectuais no que eles têm de essencial e deles aproveita apenas o conhecimento e o prestígio social (como se tratassem de maiombolas do saber) sem que isso possa dar-lhes a oportunidade de se constituírem num corpus autónomo que não se submeta à disciplina de pensamento e de acção do regime que os deslegitima, os inferioriza e lhes inculca um complexo em relação à dita “vontade do povo”, que é subentendido o ditador encarnar.
“É conversando que os homens se entendem” diz o ditado que o Presidente da República evocou no seu discurso de posse do novo Governo. Mas fê-lo, em contramão, não para corroborar a democracia, a ideia de que do debate se faz luz, de que a discussão é uma peça central do desenvolvimento do pensamento nacional que é parte integrante e fundadora do desenvolvimento nacional sustentado porque assente na endogeneização crítica de todas as aquisições universais.
Contra o espírito do movimento “Vamos Descobrir Angola (1948) o Príncipe vem dizer ao Governo (e, por efeito simpático, a todo o país) que “é trabalhando bem, com dedicação, que todos se entendem”. Isto é, no Conselho de Ministros não há lugar ao debate, à troca de opiniões, à emulação de ideias, mesmo porque isto, segundo ele, não é trabalhar. E esta matriz tem poder reprodutivo a todos os níveis do Estado e das relações deste com a sociedade.
Esta afirmação (simples deslize, dirão alguns) do Presidente da República é bem característica de todas as formas de autoritarismo (também do fascismo histórico) porque não acredita na virtude do debate mas na força da “disciplina”. Esta é que é, para si, profícua. Já o disse, em texto anterior, antes mesmo desta evidente ilustração, que aqueles que separam a “liberdade” da “ordem” e a sobrepõem à primeira, na verdade, fazem dela uma “essência”, que se justifica por si própria para reprimir a liberdade que aparece como uma marginalidade excêntrica e não um elemento constitutivo e fundador da vida humana contemporânea.
Neste capítulo, o do substrato filosófico, o neofascismo não se diferencia do fascismo histórico, a diferença deles (mesmo se ambos falam em governar “a bem da Nação”) está no modus operandi, nas formas que assumem. Embora o regime angolano use ainda muita da “tecnologia” do fascismo histórico (o caso Ernesto Bartolomeu, o terrorismo intelectual do tipo editorial contra o OPSA, a partidarização da administração, a pressão contra a imprensa privada, a apetência para a truculência pura, as escutas telefónicas e outras) a tendência é procurar formas mais sofisticadas de autoritarismo, tornando-o menos do aparelho do Estado e mais dos mecanismos da sociedade.
É mais que evidente que o regime autoritário actual que se quer estruturante a partir dos ganhos simbólicos e políticos da maioria abusiva imposta ao país pelo Príncipe, não vai nunca perder a oportunidade de proclamar que vai “reforçar a democracia” e a “consolidação do Estado Democrático de Direito” pois estas são aquisições políticas, ao nível do discurso, fundamentais para a legitimação e reprodução do regime autoritário.
Mas apesar disto, ninguém está autorizado a ver a realidade pelos seus olhos mas apenas pelos olhos do Príncipe. O que os olhos do Príncipe não vêem não existe. E se os olhos do Príncipe vêem é porque existe. Não se pode colocar a hipótese sequer de que o Príncipe sofre de uma oftalmia (circunstancial) e, muito menos, de um estrabismo (estrutural). Os olhos do Príncipe são os mais sãos que existem, até porque são os “olhos do povo”, os “olhos da nação” que ele supostamente “encarna”. Por isto, os olhos dos seus partidários (e tendencialmente dos cidadãos) não têm existência própria, são parte de um grande mecanismo que se desdobra por todos e que a eles (e a nós) se sobrepõe e que ajuda a transformar os órgãos biológicos do Príncipe numa máquina poderosa de ver (policia), de fazer ver (propaganda) e de dar a impressão da sua conformidade com a natureza das coisas (legitimação) que leve todos a conformarem-se com o status quo existente (alienação).
Mesmo que os meus textos não tenham como destinatário particular as “pessoas do regime”, continuo a achar (para bem do país e da procura da manutenção da coesão social) que tem de haver disponibilidade destas, como indivíduos inteligentes e argutos como o são muitos dos intelectuais do regime, para aceitar o que se diz do regime, pelo menos como hipótese de indagação, como ponto de reflexão. Se se transforma o “regime” num dogma, se o “regime” é a verdade absoluta, para eles de nada valerá aduzir argumentos, articular explicações, extrair características, conformar o paradigma porque todo esse esforço será sempre apodado de “esquerdismo”, de “recalcamento”, de “ingenuidade”, “infantilismo” ou outro qualificativo pejorativo.
Num estado de barricada o país em nada aproveita e a mediocridade vai continuar a ganhar campo e a impor-se pela força, contra a razão. Esta diz-nos que a democracia é conceptual e factual. É conceptual na sua definição e factual na sua realização. Não é pelo simples facto de um regime se dizer democrático que o devemos ter como tal. Não é porque desejamos ardentemente que um regime (ou um partido), com o qual temos uma ligação afectiva, seja considerado democrático (com pensamentos subjacentes do género: “não, não podemos aceitar que seja “fascista”. É muito o desgosto!) que ele se torna efectivamente democrático. Temos que ter um referente de democracia e fazer a verificação quotidiana da sua prática em relação a esse referente.
O meu interesse não é que o regime seja “neofascista” para o poder denunciar. Não, pelo contrário, denuncio-o para que não se afaste dos marcos da democracia ou, pelo menos, tenha dificuldades em fazê-lo. Não tenho nenhum interesse que a predação se faça para ter um motivo de denúncia. Cada vez que isso acontece é o país que perde, que não se desenvolve porque se restringem os agentes do desenvolvimento, são os cidadãos que perdem, são pessoas que vão morrer por falta ou por insuficiência de recursos. Denuncio-o para que não se perpetue um ambiente de permissividade e impunidade absoluta. Faço-o por um dever de consciência mas também para minimizar os estragos pois a razão me diz que por muito poderoso que seja o regime autoritário, ele é tão-somente um cacimbo no desenvolvimento do país que procura com avidez formas alternativas de política, de desenvolvimento económico e social. E, neste sentido, (repito) o Príncipe tem que aceitar um terreno de negociação, aceitando devolver-nos os nossos olhos!
* Cientista Político
terça-feira, 21 de outubro de 2008
FpD INDIGNADA COM PRISÕES DE PROFESSORES DO BENGO
Dirigentes do SINPROF na província do Bengo são presos por terem desencadeado
uma greve.
A causa das detenções prende-se com a greve decretada pelo SINPROF – BENGO, com início no dia das detenções com base no abandono das negociações pelos representantes de entidade empregadora, Ministério da Educação e na pretensão dos grevistas em ver satisfeitas as seguintes reivindicações:
- A aplicação do novo Estatuto da Carreira Docente;- A Remuneração dos cargos de direcção e chefia;- O pagamento das dívidas salariais dos professores dos municípios de Ambriz e Quibaxi dos anos 2003 e 2004;- O pagamento das dívidas salariais dos meses de Março, Abril e Agosto dos anos 2007 e 2008 dos professores do município do Dande.
A FpD nota com apreensão que este acto gratuito de violência e de desrespeito pelos direitos humanos e pelos princípios mais elementares do Estado democrático de direito enquadra-se na estratégia da restauração autoritária reiniciada pelo Governo após a usurpação da maioria qualificada nas eleições de 5 de Setembro último e que já se abateu sobre populares na Lunda-Norte saldando-se em 1 a 5 mortos e mais de uma centena de detidos(!!!) e na detenção de aproximadamente 5 (cinco) autoridades tradicionais da Lunda-Sul.
A FpD está a investigar esta última situação (detenção dos sobas) a fim de poder informar e pronunciar-se sobre o caso com propriedade.
A FpD apela à solidariedade de todos os democratas, patriotas e republicanos para com todas as vítimas das práticas totalitárias do regime, bem como apela à unidade do movimento democrático, pois, como a FpD vem alertando, o regime vai fazer dos resultados do pleito eleitoral de 5 de Setembro último o instrumento de liquidação de todas as reivindicações de liberdade, prosperidade e progresso social. Urge, pois, fazer Frente a esta restauração autoritária em marcha.
Luanda, 21 de Outubro de 2008. O Gabinete de Imprensa da FpD
http://www.fpdangolaimprensa.blogspot.com
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL E O MEU DESALENTO
Nelson Pestana (Bonavena)*A Lei Eleitoral é muito clara ao dizer que “em caso de restarem alguns mandatos, os Deputados são distribuídos em ordem do resto mais forte de cada partido” (art.º 33º, nº 3, al. c). O que quer dizer que o acesso à representação, quando a distribuição de mandatos se revela incompleta após a operação de divisão dos votos validamente expressos de cada partido pelo coeficiente eleitoral nacional, se faz também pela divisão dos restos.
O Tribunal Constitucional, dando resposta ao recurso interposto pela FpD sobre a distribuição de mandatos, resultantes das eleições legislativas de 5 de Setembro de 2008, confirmou a deliberação da Comissão Nacional Eleitoral, negando provimento a petição do “partido da árvore”.
A FpD levantava fundamentalmente duas questões (a alusão à “cláusula barreira” era mais um contra-argumento do que uma questão): a primeira, tinham a ver com a distribuição dos restos no círculo nacional, nos termos do artigo 79.º, da Lei Constitucional, e do artigo 33, nº 3, al. c), da Lei Eleitoral. A segunda questão era referente à distribuição dos mandatos dos círculos provinciais, porque se invocava a inconstitucionalidade do art.º 33º, n.º 2, da Lei Eleitoral que determina a distribuição dos mandatos pelo sistema de Hondt, o que é contrário ao que está prescrito na Lei Constitucional que manda aplicar para todos os círculos (nacional, provinciais e do estrangeiro) o mesmo sistema proporcional (puro).
O Tribunal Constitucional, em vez de responder a estas questões, preferiu tergiversar sobre verdades lapalisseanas, numa manobra de diversão que nada aproveitou ao esclarecimento do caso, nem contribuiu para o desenvolvimento doutrinal do país. O Acórdão de nove páginas tem muita palha, jactância justificativa, muita opinião de facto e pouca sustentação jurídica. Um acórdão do Tribunal Constitucional que evita a Constituição é no mínimo estranho. Os juízes que assim procederam desvalorizaram-se aos olhos daqueles que neles depositaram confiança, não aceitando um sentimento de suspeição devido ao facto de terem sido nomeados pelo poder político. Quis acreditar que isto não lhes ia tolher os movimentos, pelo menos, a um certo nível. Não posso deixar de manifestar o meu desalento.
O Acórdão não faz a interpretação do artigo 79º, da Lei Eleitoral, mas tão somente a sua referencia tópica, e busca explica-lo dizendo que “uma das características essenciais do sistema de representação proporcional, previsto no artigo 79º, da Lei Constitucional, é precisamente de que para obter representação parlamentar a força política em causa tem que ultrapassar “um limiar mínimo”. Esta magistral argumentação vai busca-la a dupla de constitucionalistas portugueses, Gomes Canotilho e Vital Moreira.
Para mim e para a grande esmagadora maioria daqueles que escrevem sobre este sistema de representação ou o aplicam, desde o fim do século XIX, o objectivo fundamental do sistema de representação proporcional (integral) é o de reduzir a diferença entre a percentagem de votos obtidos por um partido e a percentagem dos lugares obtidos no parlamento. A sua característica essencial é a de permitir uma representatividade nacional muito próxima da pluralidade política expressa pelo voto. Pois, “os sistemas eleitorais proporcionais pretendem assegurar a representação das diferentes correntes de opinião, em termos que correspondam ao seu peso no universo eleitoral, garantindo a expressão das minorias (A. L. Cardoso, Sistemas eleitorais, Lx, 1993, citação tirada do Acórdão). Deste modo, é tido como o sistema que beneficia os pequenos partidos, por que lhes dá a possibilidade de obter representação na medida exacta da sua expressão, apesar de pequena, porque permite "representar todas as tendências políticas em proporção à sua força numérica" (Dieter Nohlen, “Os sistemas eleitorais entre a ciência e a ficção. Requisitos históricos e teóricos para uma discussão racional”, in M. B. Cruz, (Org.), Sistemas eleitorais: o debate científico, ICS, Universidade de Lisboa, 1998, p. 63).
De qualquer maneira, é confrangedor constatar o viés do Tribunal Constitucional ao dizer que os supracitados constitucionalistas portugueses, ao referir o “limiar mínimo”, se estavam a referir ao coeficiente eleitoral e a descartar os demais partidos da divisão de restos. É confrangedor ver o Tribunal Constitucional torcer a coisa a favor da solução que tinha que ser (a imposta pelo poder) e dizer que o partido que não atinge o coeficiente eleitoral fica de fora da representação nacional, mesmo antes da distribuição dos restos! Como pode uma tal bizarria acontecer se a distribuição de mandatos ainda não terminou e a representação nacional só fica completa com a distribuição dos restos? Como a CNE, primeiro, e o Tribunal Constitucional, depois, colocam fora da representação nacional uma parte dos partidos concorrentes se a atribuição de mandatos ainda não terminou? Com base em que fundamento constitucional ou legal o Tribunal Constitucional dá como procedente a ideia de que os partidos concorrentes que não atingem o quociente eleitoral nacional ficam de fora da distribuição de restos? Na dúvida, porque é que o Tribunal Constitucional não levou em consideração o facto (histórico) de que em 1992 se procedeu precisamente conforme diz a actual Lei Eleitoral?
A Lei Eleitoral é muito clara ao dizer que “em caso de restarem alguns mandatos, os Deputados são distribuídos em ordem do resto mais forte de cada partido” (art.º 33º, nº 3, al. c). O que quer dizer que o acesso à representação, quando a distribuição de mandatos se revela incompleta após a operação de divisão dos votos validamente expressos de cada partido pelo coeficiente eleitoral nacional, se faz também pela divisão dos restos. Há várias formas de o fazer (não estou interessado na jactância provinciana de reproduzir aqui essas formas que se podem encontrar facilmente através de um simples clic de um rato). Todos, no entanto, concordam num aspecto que se revela fundamental aqui: é que os votos a considerar são todos aqueles que não obtiveram representação na primeira operação de distribuição através do coeficiente eleitoral.
Quadro demonstrativo: CÍRCULO NACIONAL (130 ASSENTOS)
PARTIDO VOTOS MANDATOS RESTOS TOTAL DE
INTEIROS DEPUTADOS
UNITA 670363 13 25322,5 (+1) 14
PRS 204746 4 6272 4
ND 77141 1 27522,5 (+1) 2
FNLA 71416 1 21797,5 (+1) 2
PDP-ANA 32952 0 32952 (+1) 1
PLD 21341 0 21341 (+1) 1
AD-C 18968 0 18968 0
PADEPA 17509 0 17509 0
FpD 17073 0 17073 0
PAJOCA 15535 0 15535 0
PRD 14238 0 14238 0
PPE 12052 0 12052 0
FOFAC 10858 0 10858 0
TOTAIS 6450408 125 - 130
Ou seja, para o sistema proporcional puro, todos os votos que não foram suficientes para obter representação, são considerados “restos”. Basta olhar para o quadro demonstrativo para se perceber que o resto de cada partido é obtido através da subtracção dos votos representados, ao total de votos obtidos por cada partido. Isto é incontroverso e nesse sentido vai Adérito Correia que dizia que no caso da repartição de restos, pelo “resto mais forte”, como prescreve a Lei Eleitoral, art.º 33º, nº 3, al. c), “os lugares por preencher são atribuídos às listas que totalizem um maior número de votos não representados” (vide Sistemas e Processos Eleitorais, FES/UCAN, Luanda, 2001, p. 19. O exemplo inserto por Adérito Correia, neste artigo, inclui todos os partidos inclusive os que não atingiram o quociente eleitoral).
Logo, como se pode ver pelo quadro demonstrativo, não há nenhuma dúvida de que a distribuição dos cinco mandatos que restam após a distribuição através do coeficiente eleitoral nacional (49618,5) cabem, em primeiro lugar, ao PDP-ANA que tem 32952 votos de restos, depois a ND que tem de restos 27522,5, em terceiro lugar, a UNITA que tem 25322,5, em quarto, lugar a FNLA que tem 21797,5 e finalmente ao PLD que tem 21341. Assim sendo, O Tribunal Constitucional devia fazer a justiça de dar os lugares ao PDP-ANA e ao PLD.
Ao desprezar os votos das restantes nove formações políticas concorrentes o Tribunal Constitucional contrariou um dos principais méritos da representação proporcional integral que é a de "não deixar votos ociosos ou perdidos".
Quanto aos círculos provinciais bastava perguntar se a Lei Constitucional estabelece alguma diferença entre estes e o círculo nacional e os círculos do estrangeiro? A resposta é não! A Lei Constitucional estabelece um mesmo regime para os três círculos: o sistema proporcional (sem mais, ou seja, “puro” ou “integral”). Logo, o legislador comum não está autorizado a fazê-lo. Mais, o elemento histórico (que é importante em sede de interpretação da lei, contrariamente aquilo que considera o TC) indica que se a lei eleitoral de Agosto de 1992 consagrava o sistema de Hondt mas a Lei Constitucional de Setembro de 1992 não o consagrou é porque ele não queria e defendia um sistema proporcional integral para todos os círculos. E, tanto é assim, que as várias fontes constituintes da transição, sempre defenderam esse princípio que estava subjacente a ideia de um círculo nacional único que era o que estava consagrado nos Acordo de Bicesse (Maio de 1991) e que foi defendido na Primeira Reunião Multipartidária (Janeiro de 1992) pela maioria dos partidos presentes. Somente na bilateral do governo com a Unita a representação repartida entre um círculo nacional, 18 círculos provinciais e 2 do estrangeiro foi consagrada (vide Raul Araújo, Sistema e processos eleitorais, ibdem, p. 130-131). Mas também aí não foi consagrado o sistema de Hondt. Por isso, o Tribunal Constitucional tinha todos os meios e conhecimento para esclarecer a vontade do legislador constitucional de 1992.
Ora, se isto é tão transparente quanto fica demonstrado, se todos os constitucionalistas do regime sabem bem disto, porque terão eles virado o bico ao prego dizendo coisa diversa? Porquê esta “deriva deliberativa”, sabendo eles, porque são pessoas inteligentes, que isso iria trazer prejuízo para a sua imagem de isenção e integridade? A única explicação que posso encontrar é que havia uma força absoluta que lhe impôs esse comportamento. Não é por acaso que se dizia que o Príncipe não queria mais do que cinco formações na Assembleia Nacional e, sobretudo, não queria lá a presença de determinadas formações políticas. E, por isto, a batota não foi somente nos votos, continuou também na distribuição de mandatos e o Tribunal Constitucional “ratificou-a”.
O LEÃO E AS CABRAS
Nelson Pestana (Bonavena)*Não tenhamos ilusões, deixar a iniciativa da democracia nas mãos do partido de poder, sobretudo agora, é como entregar cabras à guarda do leão, confiando na promessa deste de que não as vai devorar. Ora, está na natureza do leão comer as abras!
Volvidas três semanas após as eleições, publicados os resultados definitivos e estando em vias de tomar posse a nova câmara legislativa, com nova batota na distribuição dos mandatos, podemos afirmar com segurança que o “novo ciclo político”, anunciado por José Eduardo dos Santos, não é seguramente o da consolidação e alargamento da democracia, nem tão pouco o da construção de um Estado Social de Direito, como era propósito da FpD.
O partido no poder nunca deu provas de ter abandonado a ditadura, pelo contrário, durante 16 anos foi sempre a contramão da democracia e apenas gozava de uma maioria simples. A maioria absoluta serviu sempre como força de imposição, meio de bloqueio ao aprofundamento da democracia na vida política, económica e social. Nunca aceitou o processo de transição para a democracia, apenas o tolerou na medida do possível. Sempre perseguiu a sociedade civil, procurou controla-la, cooptar os seus dirigentes, imobilizou os sindicatos através da corrupção material e moral dos seus líderes, proporcionou benesses as igrejas para gozar de uma cumplicidade geral que lhe proporcionasse um estado de impunidade para as suas arbitrariedades. Em suma, a “legitimidade democrática” foi sempre entendida como a ditadura da maioria.
Ainda não tomaram assento e já estão a abusar do livre arbítrio. Não terem cumprido com a lei até na simples distribuição dos mandatos é uma demonstração mais do que eloquente do que se vai seguir. Afastar a Sonangol da compra das acções do BFA para as entregar a empresa da “filha do Presidente” é outra arbitrariedade no domínio da economia a juntar a tantas outras que já estão a acontecer ou virão em catadupa. O Ministério da Educação reunir com a OPA (organização de massas do partido de poder para as crianças), na sede desta, para analisar a alteração do manual escolar de Educação Cívica, bem como “a realização do Acampamento Nacional do Pioneiro e o Festival da Canção Infantil – está tudo dito no domínio social.
O processo de transição para a democracia está pois comprometido. Quando se diz que agora o papel de oposição tem que ser assumido pela sociedade civil é o reconhecimento de que voltamos aos tempos em que a oposição ao projecto totalitário do partido único era protagonizado pela sociedade civil e pela igreja porque os partidos políticos não podiam ter existência e aquelas organizações tiveram que assumir o papel de partidos de oposição de substituição.
Estamos pois num processo que já teve pontos mais altos do que onde está. Estamos perante um retrocesso que ainda vai mostrar o seu rosto completo. E nada disto é normal. E, toda a análise que ignore a anormalidade que constitui este resultado e, sobretudo, a forma como ele foi conseguido, está muito seguramente inquinada à partida.
Há em muitos intelectuais, jornalistas, caricaturistas e outros tantos um preconceito contra os partidos políticos porque essas pessoas apenas respeitam (ou temem) aquele que eles se habituaram (e continuam teimosamente) a chamar “o partido”. Este preconceito é na verdade a manifestação de uma oposição subliminar à democracia, ao pluralismo em todas as suas manifestações. Na verdade, são partidários da legitimidade exclusiva que está na natureza do partido autoritário corporativo. E, por isso, identificam a “vitória” do partido do poder como “a vitória do povo angolano”. Os discursos da vitória da democracia, vitória de todos e outros cabrolocossos de antes do voto deixaram de aparecer. Agora é hora de aquecer o ferro, onde seguramente voltarão a malhar. O “partido” tem sempre razão e é a “vanguarda do povo” (esse que é o deles e de que os outros, que não pensam como eles, não fazem parte).
E terá sempre razão nas prisões (Lello), nos assassinatos, nas purgas, na marginalização e nas perseguições? Não são hipóteses a descartar. Diante do olhar complacente dos bons e a cumplicidade dos intelectuais “orgânicos” (os Sabatas-intelectuais): haverá muito dinheiro para comprar consciências. O vil metal vai ser associado ao cassetete. A táctica da cenoura e do bastão vai disciplinar o espaço público. Ninguém há-de escapar à sanha autoritária que se adensa como nuvem negra.
Os próximos tempos dividirão as pessoas entre aqueles que defendem a “civilização” e os que defendem a “barbárie”. Também haverá os que assim-assim! Luther King tinha razão: “o que me preocupa não é o barulho dos maus, é o silêncio dos bons”. É uma questão de civilização viver numa sociedade regida por regras. Regras que obrigam a todos e que limitam a acção de cada um (incluindo o poder) em nome da paz civil e da realização da liberdade. Não há pois uma oposição entre liberdade e ordem. A ordem é um elemento constitutivo da liberdade. É este posicionamento que diferencia os democratas dos autoritários. Aqueles que defendem que a ordem se opõe à liberdade e que esta deve se submeter à ordem são defensores da ordem autoritária. Creio pois que aqueles que são partidários da civilização não podem aceitar o livre arbítrio por muito poderosos que sejam os seus partidários e promotores.
Ora, uma das componentes filosóficas do neofacismo angolano que foi durante este tempo meio errante e que será a partir de agora estruturante é precisamente a defesa da ordem em nome da realização de um hipotético bem-comum. Na ordem neofacista, como em todas as ordens em que prevalece o livre arbítrio, a vontade do chefe sobrepõe-se a determinação da lei (incluindo a Lei Constitucional). A vontade deste justifica o uso da coerção.
Governação repressiva, mesmo contra pessoas da mesma família política, (já o fizeram apenas com maioria simples, por exemplo, contra a Reitora da UAN), arrogância e desrespeito pelas instituições, nomeadamente da Justiça, exclusão, controlo pessoal dos recursos minerais e financeiros, corrupção económica, social e moral, política de marginalização ou cooptação acompanhada de repressão da diferença, disciplina autoritária no interior da bancada parlamentar única e partidarização da administração do Estado, num contexto de subalternização do parlamento, bloqueio às comissões de inquérito – que são um mecanismo fundamental para a afirmação da Assembleia Nacional como centro da política nacional que devia ser - como no passado, tudo se irá repetir, só que a uma escala maior (na dimensão da maioria abusiva actual).
Vamos assistir as ditas “oportunidades de negócios” para a corte restrita, a abertura da televisão da filha do chefe e seus aliados, em contraponto da não permissão da extensão do sinal da Rádio Ecclesia e da não autorização das cerca de 40 rádios que há quase uma década esperam pela luz verde do governo. Enquanto que as rádios comunitárias da sociedade civil não terão espaço (a não ser que surjam como piratas, como já têm havido casos) em contrapartida, o poder vai continuar a espalhar os desdobramentos da RNA, em rádios municipais e comunais, tudo muito bem controlado pela central ideológica do regime.
Quem nunca cumpriu um único programa de Governo, nunca cumpriu um único plano quinquenal, aprovados com toda a pompa e circunstância pelos congressos do partido único, vai agora ater-se à sua palavra, só porque ela está condensada numa dita “Agenda Nacional de Consenso”?
Não tenhamos ilusões, deixar a iniciativa da democracia nas mãos do partido de poder, sobretudo agora, é como entregar cabras à guarda do leão, confiando na promessa deste de que não as vai devorar. Ora, está na natureza do leão comer as cabras!
* Cientista Político
quinta-feira, 9 de outubro de 2008
REFLEXÃO DO OPSA SOBRE AS ELEIÇÕES DE 2008
Após análise da preparação das eleições, do acto eleitoral e das possíveis tendências do processo político angolano, o OPSA partilha com o público as reflexões que se seguem.
As eleições legislativas representam um enorme progresso para a construção da democracia em Angola. Contudo, o processo demonstrou, no seu todo, que a falta de referências e de práticas afectam a existência de uma cultura democrática a nível de praticamente todos os actores envolvidos. Nesse sentido são de realçar três elementos:
A importância da criação de condições favoráveis à luta de ideias num ambiente de equidade no acesso aos órgãos de informação e de regulação por instituições independentes e autónomas;
A necessidade das instituições públicas e se assegurarem um tratamento igual a todos os actores políticos, principalmente no que toca à liberdade de movimentos e ao cumprimento da lei;
A necessidade de se impedir a mercantilização da política, e de se evitar que o dinheiro ou os bens materiais - em vez das ideias e da cidadania - se transformem na principal determinante do comportamento dos cidadãos e do desfecho do processo.
Da análise do período pré-eleitoral, incluindo a campanha, do acto eleitoral e do apuramento de resultados, realçou-se:
1. O registo eleitoral contou com meios sofisticados e foi no geral considerado de positivo e tendo oferecido as bases para que o processo eleitoral pudesse ser bem conduzido e abrangente. Contudo, a base tecnológica não foi integrada na fase do voto, o que não permitiu a votação com processo biométrico, nem a transmissão electrónica de dados, criando vulnerabilidades desnecessárias à integridade dos dados e ao consequente controlo do processo.
2. A criação ou existência de importantes instituições reguladoras e fiscalizadoras embora em vários casos se tenha verificado que o funcionamento de algumas destas ficou aquém do desejável. Mais concretamente, verificou-se que:
a. O Conselho Nacional para a Comunicação Social (CNCS) foi omisso face à manifesta parcialidade dos órgãos estatais da comunicação social, que frequentemente perderam de vista o seu mandato de servir o público através da oferta de informação isenta, com pluralidade de pontos de vista. Num período de campanha ou pré-campanha seria importante que os media, públicos e privados, servissem de arena para o contraditório entre esses distintos pontos de vista. Tal não aconteceu, e o CNCS, pela sua omissão, poderá ter comprometido a sua relevância e credibilidade. Estranhamente, e contra o que seria de esperar, as próprias rádios privadas deixaram de oferecer ao público, no período de campanha eleitoral, os espaços de debate a que habituou o público de Luanda. Os media públicos posicionaram-se de forma inaceitável a favor do partido no poder. A secção “Tempo de Antena” do Jornal de Angola é um exemplo, infelizmente não raro, do que se afirma, ridicularizando sistematicamente a forma de actuação de quase todos os partidos da oposição.
b. A composição da Comissão Nacional Eleitoral é pouco equilibrada em relação às diferentes sensibilidades políticas, o que, à partida, causa suspeição. Como consequência, verificou-se uma insuficiente interacção com os partidos políticos, queixando-se alguns deles de não terem obtido respostas a técnicas ou petições e reclamações diversas, incluindo por escrito. A educação cívica dos eleitores foi também insuficiente, quer por omissões, quer por mensagens dúbias relativamente ao processo de recolha de assinaturas e de manuseamento dos cartões de eleitor. Embora não estejam ainda publicamente atribuídas as responsabilidades pelos graves problemas que ocorreram no acto eleitoral em vários centros urbanos (como, por exemplo, em Luanda, Benguela, Bié e Lubango), é evidente a falta de competência ou capacidade para gerir o processo. A inexistência de um posto como o de Director Geral das Eleições que havia as eleições de 1992, com um perfil mais técnico, poderia ter mitigado o nível de desorganização verificado. Apesar dos consideráveis recursos disponibilizados e da sua sofisticação, foi penoso o nível de desorganização, no credenciamento dos agentes eleitorais, na distribuição de material para as assembleias de voto, no apoio aos agentes eleitorais durante o acto (muitos foram apoiados pelos cidadãos com água e alimentos) e na remuneração dos mesmos. A falta de clareza em relação às remunerações e a sua não conclusão até agora revela uma incompreensível desorganização. No que respeita ao credenciamento dos observadores, as falhas verificadas permitiram que muitas opiniões pusessem em causa a boa fé da CNE e, consequentemente, a sua credibilidade.
c. A formação do Tribunal Constitucional foi um passo importante para criação do quadro institucional para a regulação do processo. Sendo conhecido que estavam criadas as condições para a criação atempada deste importante órgão, é de lamentar que a sua efectivação tenha sido tão tardia. Este facto resultou em decisões sob a pressão do tempo, atrasos em decisões que eram importantes para orientar o processo uma vez que o Tribunal Supremo não conseguiu dar as respostas necessárias. A ausência de regras claras, como no caso da subscrição, forçou este órgão a pronunciar-se sobre o assunto. Lamentavelmente, como resultado de insuficiências administrativas, muitas candidaturas foram chumbadas devido a atrasos ou irregularidades nos registos criminais e reconhecimento de assinaturas. O Tribunal Constitucional geriu o processo de registo das candidaturas dos partidos com o entendimento que as suas decisões eram essencialmente políticas, e não meramente técnicas, o que foi bastante apropriado para a situação, representando um sinal muito positivo.
d. O comportamento da Polícia Nacional foi, salvo poucas excepções, motivo de elogio de todos e seguramente que contribuiu para criar um ambiente de segurança e estabilidade que é possivelmente o mais importante aspecto positivo de todo este processo. Excepções ao desempenho globalmente positivo foram casos de presença de Polícias no interior de Assembleias de voto sem serem chamados, incluindo no ordenamento de filas, bem como ao transporte de urnas. De realçar ainda como positivo o sistema de ligação telefónica entre a Polícia e os Partidos Políticos durante a campanha eleitoral Este comportamento geralmente positivo contrastou com a posição que alguns agentes tomaram aquando da subscrição dos partidos políticos.
e. A legislação produzida e a criação tardia do Tribunal Constitucional resultaram numa calendarização que só muito tarde permitiu conhecer que partidos iriam participar nas eleições. O comportamento de alguns serviços de notariado dificultaram com preocupante frequência a tarefa dos partidos da oposição de constituírem os seus processos administrativos. Tudo isto prejudicou a pré-campanha e atrasou o acesso a recursos públicos por parte dos partidos da oposição. Essa mesma legislação não parece ter protegido suficientemente os recursos públicos do uso na campanha pelo partido maioritário. Assim, tanto o tempo de funcionários públicos, como o uso de meios de transporte e outros meios logísticos parecem ter ficado à disposição no partido do poder sem qualquer possibilidade de controlo por parte de algumas instituições competentes do Estado e da sociedade. Tal prática resultou por vezes na paralisia de estruturas administrativas do estado e até privadas (bancos) dificultando a vida da população e dos partidos competidores.
f. No geral os partidos da oposição não tiveram capacidade para quebrar a dependência dos recursos públicos e de actuar de forma eficaz num ambiente que não lhes era favorável. A fraca qualidade dos tempos de antena dos partidos da oposição mostra que a falta de acesso aos media públicos não foi o único motivo para as dificuldades de transmissão das suas mensagens ao eleitorado. Garantir um fiscal da oposição em cada mesa de voto parecia ser uma importante meta que deveria ter sido alcançada, se necessário, através de uma maior coordenação entre partidos. O recurso a meios alternativos para comunicação, como acontece em países onde o acesso aos media públicos também não é fácil, poderia ser uma solução para muitos partidos e situações. O retirar de lições e de agir em consequência, será fundamental para o futuro da qualidade do nosso processo político. É de louvar o civismo com que reconheceram a derrota eleitoral e a utilização das instituições adequadas para lidar com as múltiplas reclamações.
g. É também de louvar a sobriedade com que os vencedores festejaram a sua vitória. É aqui de realçar que a sociedade se deve habituar a ver casos a serem levados ao tribunal, como um sinal positivo. Quando há diferença de entendimento em relação a questões fundamentais como a condução de um processo ao eleitoral, são os tribunais o fórum próprio para se conseguir justiça. Nesse sentido foi negativo ouvir alguns pronunciamentos que dramatizaram o recurso ao tribunal para impugnar as eleições de Luanda, quando isso deveria merecer elogios. Reclamar junto de um tribunal é seguramente um direito e não deve ser rotulado de acção que denigre a imagem do país, e os juristas de profissão deveriam estar na linha da frente na defesa desse tipo de acções.
h. Durante o processo eleitoral e o acto de votação, a sociedade civil esteve bastante envolvida numa série de actividades de nível local mas, ao nível macro, revelou-se relativamente ausente ou pouco eficaz. O papel em actividades de educação cívica foi valioso mas limitado. Foram colocadas exigências para o credenciamento dos observadores – certificado de registo criminal – que não tomaram em consideração a morosidade na sua obtenção resultado da excessiva centralização e burocracia dos serviços.
i. A qualidade da observação eleitoral foi afectada pelo aspecto referido acima e por pronunciamentos exagerados ou precipitados e prematuros. Lamentavelmente a observação feita por organizações autónomas da sociedade angolana foi bastante limitada. Numa altura em que se põe em causa, por parte de vários actores, a presença de observadores estrangeiros, essas dificuldades a observadores nacionais põe em causa a credibilidade do processo. Aqui também a actuação dos media públicos não foi correcta, pois as declarações de observadores mais críticas não mereceram o mesmo destaque de outras. O louvor ao nosso comportamento, por parte de entidades estrangeiras, foi quase insultuoso. É como se fossemos pessoas das quais só seria de esperar violência e comportamentos pouco civilizados. Por outro lado, achar que fomos exemplos para África e para o mundo parece excessivo para o nível de organização de que demos mostra.
j. O facto de não ter sido dada informação sobre o número total de eleitores logo após o início da contagem dos votos constituiu uma irregularidade passível de interpretações que conduzem à dúvida, principalmente quando depois surgem resultados anómalos, como os da província do Kuanza Norte, em que o número de votantes é exactamente igual ao dos registados, quando se tem informação de que muitas pessoas registadas na província votaram em Luanda e deve ter havido outros casos de mobilidade, como mortes, por exemplo, ou de absentismo. O enorme número de votos nulos poderá significar um insuficiente trabalho de educação cívica por parte dos partidos e das organizações da sociedade civil. O também elevado nível de abstenção e número de votos em branco podem expressar um sentimento de frustração com os partidos e com a ausência de alternativas.
k. O apuramento poderia ter beneficiado de uma melhor fiscalização e observação na consolidação da informação proveniente das províncias. As discussões em torno do método para apurar os lugares no parlamento mostram que é necessário aperfeiçoar a legislação de forma a não deixar margens para dúvidas.
Quão positivo é para Angola a organização regular de eleições para permitir a renovação de mandatos de quem exerce o poder e a consolidação da consciência da soberania popular. O processo de competição pelo poder estimula todos os actores a melhorarem o seu desempenho e a prestarem atenção aos anseios da população, trazendo um considerável potencial de progresso para o país.
A enorme disparidade entre os meios investidos no processo eleitoral e o nível de organização, tendo ficado uma uma vez demonstrada a necessidade de se priorizar o investimento no factor humano, tanto ao nível de habilidades como ao nível da promoção de valores de integridade, imparcialidade e responsabilidade. Para além das lições a retirar da forma como decorreu o processo, parece fundamental que se apurem responsabilidades pelas falhas verificadas. Seria desejável que se estudasse objectivamente o processo de Luanda e as possíveis implicações que teve no abstencionismo.
A necessidade de se reforçarem as instituições públicas e a sua capacidade para funcionarem de forma autónoma e protegendo os interesses de todos os cidadãos e os do Estado. Nesse sentido será crucial promover a despartidarização e continuar a descentralização do aparelho do Estado. A despartidarização afigura-se mais difícil neste mandato, dada a dimensão da vitória por parte do MPLA.
A importância de se reforçarem as condições para a livre expressão de ideias e para o debate político em todo o território nacional, através dos media tanto públicos como privados. Nesse sentido, a monitoria dos media e a defesa da independência editorial face aos partidos e aos grandes grupos económicos nacionais e estrangeiros, bem como o desenvolvimento do espaço público revela-se uma necessidade. É de realçar que permitir aos vários actores políticos a expressão das suas ideias nos media públicos não deve limitar-se ao período de campanha, e aos tempos de antena legalmente definidos. A revisão constitucional necessitará de um ambiente aberto e pluralista e de um engajamento da sociedade para além dos alinhamentos partidários.
O desenvolvimento da economia e, em especial, do sector privado nacional, de forma autónoma do poder político, pode permitir que o Estado deixe de ser o maior empregador. As principais empresas privadas devem também deixar de estar fortemente dependentes do poder político, o que facilitará o desenvolvimento de instituições autónomas e de relações mais democráticas.
A importância de continuar a reforçar o Estado de direito estimulando os cidadãos e suas organizações a utilizarem as instituições judiciais para gerirem situações de conflito.
Que o crescimento da economia deve caminhar a par do aprofundamento da democracia e do reforço dos direitos económicos e sociais dos cidadãos, sendo desejável a realização de eleições para o poder local, tão cedo quanto possível.
Angola terá muito a ganhar se a eleição presidencial que se avizinha tomar em conta as lições que podem ser retiradas do presente pleito fazendo sendo feitas as correcções e ajustamentos necessários.
quinta-feira, 2 de outubro de 2008
E. Bonavena e Pablo Picasso: uma comparação
No poema de E. Bonavena “Guernica outra vez”, o eu lírico dialoga com a grande tela de Pablo Picasso, “Guernica”, que se tornou um libelo de toda a Humanidade a qualquer forma de opressão. Com “Guernica”, Picasso escandaliza o mundo ao retratar o bárbaro ataque aéreo à pacata cidade espanhola, na região basca, numa perversa parceria entre a força aérea hitleriana, a Legião Condor, com o ditador Franco durante a guerra civil espanhola.O ataque aconteceu em 26 de abril de 1937. A cidade foi bombardeada por quase três horas em um horário de grande movimento entre os agricultores da região. Estima-se que 40% da população foi morta ou gravemente ferida. Foi a primeira vez na história que uma cidade havia sido bombardeada. Segundo Perktold:“o fato, por ter ocorrido antes dos horrores da Segunda Guerra Mundial, quando cenas dessa natureza passaram a ser banais e quase diárias, tornou-se emblemático. Com Franco, a humanidade ratificou o que já aprendera na Primeira Guerra Mundial: matar pode ser como algumas atividades capitalistas – por atacado.” (PERKTOLD, 2006, p. 6)Picasso toma conhecimento do que acontece a Guernica na festa do 1o. de maio parisiense. Indignado com o brutal ataque aos seus conterrâneos, o artista, radicado em Paris há mais de trinta anos, fecha-se em seu ateliê e começa a elaborar o que seria uma de suas maiores obras, só comparável a “As mulheres de Avignon”, feita em 1907. “Guernica” marca também o início de um artista mais politizado, conduzindo-o aos ideais socialistas e ao expressionismo voraz que o acompanharia no decorrer da Grande Guerra.A genialidade de Picasso em “Guernica”, está no fato de não retratar o bombardeio da cidade basca, mas de um grito. Grito desesperado de todos os elementos da tela, menos o touro. O crítico de arte Fernando Morais ao comentar a obra, esclarece que na tela há:“Um grito calculado, que carrega atrás de si, ou consigo, uma rigorosa estrutura plástica. Não é a representação anedótica de um fato histórico, mas a sua reinvenção plástica, uma versão pessoal, na primeira pessoa. E, só por isso, ecoa ainda hoje como obra de arte e como denúncia dos bombardeios que continuam sendo feitos contra cidades, aldeias ou populações indefesas em todo o mundo. Comove por sua dimensão especificamente humana, isto é, política, e envolve por sua dimensão artística.Na simbologia picassiana, o touro representa a força bruta, o mal, por oposição ao cavalo, que representa a inocência, o bem. Se o touro é o homem e o cavalo a mulher, na fase preparatória de Guernica o touro será o fascismo e o cavalo, o povo espanhol. (MORAIS, 1999, p. 22)A importância de “Guernica” se dá por ser uma obra atemporal, porque “tudo ocorre no espaço fechado – um espaço doméstico. No espaço exíguo, (...) a destruição é maior e a extrema fragmentação e a aproximação de corpos de homens e animais aumenta consideravelmente a sensação de dor” (MORAIS, 1999, p. 22). Por valorizar aquilo que é humano, relacionamos a obra com a estupidez e a selvageria ocorridas entre a população angolana. De acordo com Perktold:“O painel é dirigido ao gênero humano e transmite esperança. É, também, fruto da mistura de amor às vítimas e de ódio ao inimigo, de indignação, horror, medo, empatia e da compreensão interna percebida pelo artista espanhol da dificuldade que o homem tem para lidar com o seu semelhante e, por isso, paradoxalmente cheio de humanismo. Ele é o registro (...) a impedir que a carnificina seja esquecida. (...)‘Guernica’ é, antes de tudo, uma manifestação profética do que o homem do século XX, com sua ciência e tecnologia, produziria nos anos seguintes: os mais devastadores artefatos de guerra e as piores idéias totalitárias, de direita e de esquerda.” (PERKTOLD, 2006, p. 6)Incomoda na tela os gritos inaudíveis e as expressões agonizantes das figuras despedaçadas. Os gritos são de pessoas, animais, objetos e sensações. Todos, impotentes sob a devastação propiciada pelo homem, como invoca o poema de Picasso: “gritos de criança, gritos de mulheres, gritos de pássaros, gritos de flores e de pedras, gritos de camas e cadeiras, de potes, gritos de gatos, de papéis de odores” (MORAIS, 1999, p. 22). Apesar de todo o horror de um grito abafado, o painel apresenta uma lâmpada em sua parte superior, alegoria da ciência e da tecnologia, as mesmas que proporcionaram o desumano ataque serão utilizadas para conduzir o homem ao caminho da paz entre os escombros.Como o mural feito por Picasso, que nos convida a uma nova forma de olhar a bestialidade humana, os versos de E. Bonavena demonstram a crueldade da realidade exposta de um conflito fratricida e duradouro.Seguindo o conselho de Henry Matisse, Picasso convenceu-se a pintar o mural como uma “sinfonia monocromática”, o que é compartilhado por E. Bonavena que também não consegue visualizar as cores, no caso, o azul, alegoria do universo onírico, esperança e sonhos inexistentes na Angola dilacerada pela guerra:"Se os meus olhosfossemos olhos de Picassoestariam transbordantesde azul,mas não – não o são." (p. 61)A desgastante situação de guerra entre seus pares, confunde e dispersa os sentidos do eu lírico que coloca em dúvida suas percepções, como nas divagações relatadas nos versos:"E se o fossem,Talvez,não tivessem percebidocomo a menina do Huambotem a pernamais linda do mundoque a outra se foipor um dólar.Talvez, os olhosde Picassonão teriam retidoo castanho-luz do seu olhar (...)Talvez, ou simplesmenteo Biésairia da boca dos cavalosde Guernica,Outra vez!" (p. 61-62)A reutilização e atualização de elementos da obra picassiana para a sangrenta realidade angolana são escancaradas, como na menina mutilada, denunciando o grave problema das minas implantadas por todo o país, causando até os dias atuais acidentes e mortes. Como em Bié, cidade próxima a Huambo, que sofreu violentos ataques no período da guerra, ao retomar o grito do cavalo de “Guernica” que passa a ser o “grito abafado” da população.E. Bonavena encerra “Os Limites da Luz” com o poema dedicado ao amor de outrora e aos ideais não concretizados que perpassam por toda a obra:Destas lágrimas não te digo porque as verti sem querer. Falar-te-ei da tristeza consciente, desta que alimento como talismã para me salvar da saudade. Deixei o sorriso exilado nos teus lábios. Contigo foram também os sonhos. Resta apenas a tua lembrança, como uma nódoa forte que jamais se vai separar do brim onde mora. (p. 73)É, de acordo com Alfredo Bosi, no “reinventar imagens da unidade perdida, eis o modo que a poesia do mito e do sonho encontrou para resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de ver” (BOSI, 1977, p. 155). Assim, o eu lírico “prisioneiro da saudade” assume o direito ao amor e à imaginação contra as agruras vivenciadas por décadas de uma guerra insana, que destruiu os sonhos por um país melhor. Sendo assim, o eu lírico refaz o passado pelos caminhos da palavra que trilha novos percursos para a poesia angolana do século XXI.Pablo Picasso e E. Bonavena, vivenciaram, em momentos distintos, a bestialidade humana perante o seu semelhante. Em um século que presenciou a criação de sangrentas e avassaladoras armas de destruição, o século XXI que se inicia se espanta com a voracidade do neoliberalismo das nações dominantes, ao impor sua maneira política, econômica e cultural de agir, excluindo toda e qualquer forma de expressão e autonomia dos países periféricos.Entretanto, artistas, como os dois analisados aqui, contribuem com seus pares ao denunciar a perversidade com que o poder trata os destinos das populações desfavorecidas. Picasso e E. Bonavena prestam suas colaborações à Humanidade ao fazer ouvir os gritos que suas obras eclodem em nós. Gritos contra a ganância, a estupidez e a violência exacerbada que marcaram e marcam os últimos tempos.Pablo Picasso e E. Bonavena, dois artistas que renovam a esperança no homem, valorizam a condição humana em suas obras. Dois artistas que nos fazem enxergar a luz.
BIBLIOGRAFIA
BONAVENA, E. Os limites da luz. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, Universidade de São Paulo, 1977.
LEITE, Ana Mafalda. Poesia angolana: percursos (des)contínuos. In: Revista Poesia Sempre: Angola e Moçambique nº 23. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2006.
MORAIS, Frederico. Mitos e mitologias de Picasso. In: catálogo da exposição Picasso, Anos de Guerra 1937-1945. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de 27 de julho a 07 de setembro de 1999.
PERKTOLD, Carlos. Sinfonia monocromática. In: Jornal Estado de Minas. Caderno Pensar, p. 6, de 29 de abril de 2006.
Picasso. Coleção Gênios da Arte Vol. VI. Barueri: Girassol; Madri: Susaeta Ediciones, 2007. p. 70.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. Sendas de sonho e beleza (algumas reflexões sobre a poesia angolana de hoje). In: CHAVES, Rita; MACEDO, Tânia (ORG). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
"VIVA LA MUERTE"
"Estou seguro de que esta maioria abusiva e indevida resulta de mecanismos exteriores a vontade da comunidade nacional e não corresponde à realidade política e social do país mas representa de facto uma derrota das forças políticas da democracia. Porém, este “desastre” não afectará somente os partidos políticos mas todas as forças do campo democrático."
(publicado no Semanário Angolense)
As eleições começaram mal mas mantiveram-se dentro de limites aceitaveis (“em nome da paz e da estabilidade”) mas terminaram mal! Ficou manchada a imagem do país. O exemplo a dar à África e ao mundo somente pode ser pela negativa. As graves irregularidades ocorridas e a permeabilidade e permissividade para a fraude que foi estimulada pelas as autoridades e concretizada no dia 5 por uma força obscura, sobrepondo-se à própria CNE, não conferem certeza sobre a vontade popular expressa nas urnas que foi muito provavelmente alterada.
Aquilo que deveria ser uma festa da Nação, um momento de jubilação de todos tornou-se um momento de regozijo da malandragem e de celebração da bajulação nacional. Este acto significa para o país um recuo enorme a vários planos. Desde o da reconciliação ao da afirmação de um modelo político integrador de todas as forças políticas e sociais do país.
A democracia que durante longos 16 anos resistiu ao autoritarismo foi derrotada. O sonho de ver o país entrar na normalidade de um “Estado democrático de direito” foi adiado. A democracia parlamentar vai de férias; a Assembleia Nacional vai ser transformada numa simples câmara legislativa ao serviço do Príncipe absoluto. Não haverá controlo da Assembleia Nacional sobre os actos do Governo, pelo contrário, a Assembleia Nacional será completamente governamentalizada, ou seja, vai apenas confortar as escolhas do executivo e vai ter um papel político subalterno.
A consagração na futura constituição de um regime que concentra os poderes num indivíduo vai constituir um grande recuo em relação as conquistas obtidas no processo de transição para democracia em 1991-1992 que formalizou a separação de poderes.
Acabou a 2ª República! E não haverá terceira República. A República foi derrotada! O Príncipe absoluto torna a reinar de facto e de direito. O Estado de Direito desaparece para dar lugar ao livre arbítrio do Príncipe em todas as suas declinações. Na melhor das hipóteses, teremos um Estado administrativo que vai reprimir a liberdade e promover a igualdade dos indivíduos perante o Príncipe para que o possam melhor servir e serem o mais produtivos na expressão da sua (dele) clarividência mas sem nunca desfrutarem da sua liberdade de escolha e se constituírem em fontes de poder alternativo.
O modelo não é novo na história da política e do constitucionalismo. Será muito próximo do modelo consular bonapartista (de 1810) ou da Lei de Autorização hitleriana da década de 1930. O chico-espertismo nacional (com a ajuda dos seus cooperantes e apoiado na certeza da força armada) encontrará a maneira de tudo justificar, até mesmo a pretensão do Príncipe em tornar o seu poder vitalício. O engodo utilizado vai ser o alargamento do catálogo de liberdades fundamentais e a modernização da constituição económica mas estas vantagens para os cidadãos serão depois drenadas através da lei comum que as subverterá.
Estou seguro de que esta maioria abusiva e indevida resulta de mecanismos exteriores a vontade da comunidade nacional e não corresponde à realidade política e social do país mas representa de facto uma derrota das forças políticas da democracia. Porém este “desastre” não afectará somente os partidos políticos mas todas as forças do campo democrático.
O corporativismo vai combater e marginalizar todos aqueles que quiserem conservar a sua autonomia de vontade e participar de forma independente no espaço público. O sistema corporativo que se vai consolidar e alargar não vai admitir a livre participação democrática das organizações da sociedade civil. Vai exigir que todas elas se integrem nas mediações corporativas que a ordem autoritária vai continuar a organizar e alargar.
A imprensa livre vai ser submetida a uma forte pressão através da abertura de jornais controlados pelo grupo hegemónico de poder, através das restrições à publicidade, tornando-os economicamente inviáveis ou através dos processos judiciais em curso ou a vir. O objectivo não vai ser necessariamente eliminar todos mas conte-los dentro de uma disciplinar editorial que alimente uma putativa opinião pública e se assemelhem aos órgãos de comunicação social oficiais, subordinando-se completamente à central ideológica do regime.
Depois de terem promovido a proliferação de “partidos políticos”, na vã tentativa de desvalorizar a democracia, agora vão acabar com todos esses núcleos clientelistas e com os verdadeiros partidos políticos aproveitando a cláusula da dissolução. O sistema de partidos vai ser completamente reordenado (já o foi em certa medida através do artigo 62º, nº 2 da Lei Eleitoral), quer pela utilização discricionária do artigo 33º, nº 4, al. i, da Lei dos Partidos Políticos, quer pelo financiamento público dos partidos.
Como a extinção jurisdicional dos partidos dependem de um requerimento nesse sentido, seja do Presidente da Assembleia Nacional, seja do Procurador da República ou ainda de um qualquer dos partidos legalmente constituídos, esta penderá sobre a cabeça de todos os partidos que não obtiveram 0,5% no actual pleito eleitoral (qual espada de Dâmocles) e servirá de instrumento de disciplina do seu discurso e acção em relação ao poder.
Podemos pois concluir que depois de uma tensão permanente entre o “Estado democrático de direito”, consagrado na lei Constitucional e o governo autoritário de facto, esta homogeneização do espaço político vai permitir o reforço do partido-Estado e dar lugar a uma “ditadura democrática reaccionária” (para glosar a expressão que definia o regime de partido único que se auto-intitulava: “ditadura democrática revolucionária”).
Deste facto, é bem ilustrativo o terrorismo intelectual que foi desencadeado pelos Sabatas-intelectuais do regime contra todos aqueles que esboçaram uma opinião diferente daquela que foi sendo construída progressivamente pela central ideológica do regime em relação ao que se passou nas eleições, nomeadamente em Luanda.
Nestas eleições nunca esteve em causa a atitude dos cidadãos que foi sempre muito cívica e participativa. Contrariamente a que muitos, estimulados pela agiprop do regime, propalaram, as eleições de 1992 nada tiveram a ver com a guerra. Elas eram uma forma de acabar com a guerra mas não foram suficientes. Neste novo contexto, as eleições apareciam como uma forma de renovação da política, um meio de aferição da qualidade política da governação. Em caso nenhum poderiam ser a origem de violência mesmo porque apenas aqueles que detêm os meios de produção da violência a poderiam usar. E fizeram-no para deturpar a vontade popular, não a favor de um partido mas de uma pessoa, aquele que tem o monopólio da força e que vai gerir a seu bel-prazer os actuais resultados. O país tornou-se assim mais refém do Príncipe que, aproveitando o efeito demolidor dos resultados actuais, vai organizar, em breve, um plebiscito em relação ao seu poder que ganhará, pela certa, à mão levantada.
Pois, o significado mais profundo do que se passou com as eleições legislativas de 5 de Setembro de 2008 é o de que o Príncipe não quer qualquer forma democrática de negociação, abandona a possibilidade da paz civil pela reconciliação para impor a pax romana, submete a Nação aos seus desígnios imperiais pessoais.
A maioria abusiva do partido de poder resulta objectivamente na restrição do espaço político, no controlo totalizante do espaço público, na morte da Constituição e da oposição democrática e na correlata afirmação do poder absoluto do Príncipe.
Perante tais factos ocorre-me glosar a expressão dos facistas franquistas espanhóis: “Viva la muerte!”. Mas também lembrar que a resistência republicana, tal como se fez no passado, também se fará agora, pois, não é porque se está perante uma ditadura com uma grande capacidade de manobra e um quase pleno apoio, fruto da grande quantidade de vil metal de que dispõe que as forças do campo democrático se vão vergar.
Todos os democratas assumirão a obrigação de se constituir numa reserva moral da Nação e de lutar contra a predação, a intolerância e o autoritarismo político, económico e social.