sábado, 29 de março de 2008

O PENSAMENTO E A ACÇÃO DOS ACTIVISTAS DO SOCIAL

(artigo de Nelson Pestana (Bonavena), publicado no semanário AGORA, DE 29 de Março de 2008)
É hora de influenciar as políticas públicas no sentido de versarem, mais do que nunca, sobre as necessidades básicas universais das populações, fazendo com que o plano nacional de obras infraestruturais tenha como prioridade absoluta as questões da educação, saúde, saneamento básico e habitação”.
Não faz muito tempo, o Centro de Estudos e Investigação Cientifica (CEIC) da Universidade Católica de Angola (UCAN) realizou uma conferência sobre a pobreza. O poder como sempre esteve ausente. Alguns intelectuais evitaram aparecer para não serem conotados com um acto que lhes cheirava à subversão. Nessa altura, fomos criticados, por alguns deles, por estar a promover uma conferência sobre a pobreza que era uma evocação negativa, numa altura em que o país estava a crescer a bom ritmo e o discurso oficial triunfalista exacerbava os ganhos do crescimento económico (que diziam que seria de 34%, o maior do mundo, depois tiveram que o rever pela metade) e afirmava que este crescimento, por si só, resolveria o problema da pobreza. A pobreza não era pois um tema de governação e não se deveria falar dela para não dar uma má imagem do país (entenda-se do governo). Mesmo a estratégia de combate à pobreza (ECP) fora abandonada.

Agora, que há em vista as eleições 2008 e é preciso dar atenção as formas mais eficazes para caçar votos, a pobreza está na moda do discurso eleitoralista, a pobreza aparece à cabeça da tematização dos discursos políticos. Até mesmo o homem mais rico do país (e chefe de fila da burguesia predadora) não fala mais das muitas “oportunidades de negócios” mas da pobreza, apresentando-a como uma prioridade de governo. Os “negócios” serão feitos na calada da noite enquanto de dia se irá falando da necessidade de “combater e vencer a fome, o subdesenvolvimento” e de “criar condições para o bem-estar dos cidadãos”.

A questão social vai estar no centro dos discursos, pois até os chamados tecnocratas que seraficamente afirmavam que a sua única preocupação era a economia e sua boa saúde, estão agora a fazer incursões pelas questões sociais mostrando preocupações com os salários. Essa questão era então apresentada como o ninho do marimbondo que uma vez espevitada poderia fazer soltar os demónios da inflação e provocar o desabar da política de equilíbrio macroeconómica do país.

A questão social vai estar na ordem do dia! Não porque seja uma evidência a reclamar medidas e políticas públicas adequadas mas porque é bem visto falar-se dela porque o movimento reivindicativo e crítico dos eleitores tem-na como a principal questão do seu sentido de voto. A questão social não vai estar na ordem do dia porque a cólera bate forte e as soluções estão longe de dar resposta a magnitude da epidemia, não porque a malária persiste e o VIH/SIDA continua imparável a corroer os corpos uns após outros, com consequências na economia, nas famílias, no desenvolvimento das novas gerações, enquanto os dirigentes pachorrentos falam rançosamente em “janela de oportunidade”.

A questão social estará na ordem do dia sem que a crise da habitação, a falta de água potável e de saneamento básico que agravam cada vez mais a vulnerabilidade permanente em que as famílias angolanas se encontram, sejam debatidas e, muito menos ainda, se encontre uma solução. A mortalidade anual de 262 crianças em 1000, antes dos 5 anos, assim como as doenças pediátricas que estão ligadas (em 80%) ao péssimo saneamento dos bairros não vão figurar dessa ordem do dia, pois a questão social (e a pobreza em particular) serão abordadas, nesses discursos, de maneira o mais desligada da realidade, apenas para servir a mistificar a situação e a legitimar o contrário daquilo que as pessoas querem: a solução dos seus problemas. O objectivo deles não será o de encontrar soluções e de mobilizar meios e pessoas para a resolução dos problemas. È que apesar de estarmos a caminhar para uma situação de crise social que cresce cada vez mais, neste momento político todos os sofistas militantes serão chamados a mistificar a situação e a protelar a resolução desse grave problema do país que é a pobreza.

É verdade que nesta altura, vão ser congeladas as soluções musculadas que pretendiam resolver a questão social com medidas de polícia e repressão, chegando a criminalizar a pobreza e perseguindo os pobres, enquanto os poderosos fazem e desfazem e todos os outros têm que se submeter. Depois dos votos recolhidos eles voltarão a boca de cena.

Perante este quadro favorável a uma certa visibilidade do problema da pobreza, apesar de conscientes da suas limitações, os activistas do social têm que aproveitar para dizer alto e a bom som que o país não pode continuar a registar índices que o colocam na cauda do desenvolvimento sendo um país riquíssimo, com fortes índices de crescimento, nem permitir que esta riqueza seja abocanhada de forma escandalosa e perdulária por um grupo muito restrito que promove o desenvolvimento separado.

É hora de influenciar as políticas públicas no sentido de versarem, mais do que nunca, sobre as necessidades básicas universais das populações, fazendo com que o plano nacional de obras infraestruturais tenha como prioridade absoluta as questões da educação, saúde, saneamento básico e habitação. É o momento de pressionar para fazer com que as parcerias público/privado se virem para estas necessidades fundamentais do país e se afastem das obras faraónicas que promovem a degradação do meio ambiente e delapidam recursos importantes.

Não se perca a ocasião para dizer que a política de desenvolvimento e negócios tem que ter no centro uma estrutura de oportunidades de equidade, uma distribuição dos rendimentos mais justa e uma redistribuição mais solidária que permitam uma cada vez maior coesão da comunidade nacional.

E, como a sustentabilidade dos sistemas faz-se também pela adopção de bons sistemas de organização, de governação, o momento deve ser aproveitado para pensar e debater a necessidade da maior proximidade do poder dos governados, colocando na agenda as eleições autárquicas que são afinal eleições que dizem mais directamente aos cidadãos do que as demais. No poder autárquico reside uma maior possibilidade de realização do social e uma possibilidade mais efectiva dos cidadãos de controlar a qualidade do político.


segunda-feira, 24 de março de 2008

REVISITAR MARX SEM LEGITIMAR O TIO PATINHAS

"A revisitação de Marx pode assim redundar numa rápida e (in)oportuna legitimação do anti-Marx (o tio Patinhas), na sua versão mobutista, pois há uma dialéctica da desigualdade, entre a pobreza da grande maioria e a riqueza extrema de alguns que não deve objectivamente (sem nenhum juízo de valor) ser obnubilada."
(artigo de Nelson Pestana (Bonavena), publicado no Agora, 570, de 22 de Março de 2008)

Creio que é quase ocioso dizer que depois de Marx muita água já correu sob as pontes dos estudos sobre as formas de organização social e da sua evolução a que ele chamou de “Modos de Produção”. E que muito capitalismo já foi produzido pela “auto-administração das coisas” como o próprio Marx dizia. Na verdade, os novos capitalismos e capitalistas encontram a sua riqueza no domínio do saber, do talento e da inovação (e.g., a chamada “nova economia”) e não na herança de sangue. Aqui mesmo no nosso continente se constituíram capitalistas sem a marca do sangue (no sentido literal). O que não é de estranhar, pois, como o próprio Marx defendia, no seu pensamento dialéctico, “todos os fenómenos económicos ou sociais (…) são produto da acção humana e, portanto, podem ser transformados por essa acção. Não são leis eternas, absolutas ou naturais” (Michel Löwy, Ideologias e Ciência Social, 1999, Cortez Editora, p. 15).

Também me parecia evidente que na obra de Marx, nem sempre a reflexão académica marxeniana se afastou da subjectividade do marxismo militante. No entanto, malgrado a perspectiva economicista da sua obra, há uma análise histórica do advento do capitalismo, na “Crítica da economia política”, em que se distingue claramente o período pré-capitalista, onde ainda não há livre concorrência. Numa palavra, um período em que o liberalismo económico (que é a matriz genética do capitalismo) ainda não é dominante, apesar da existência do mercado. A este período que se caracteriza pelo facto de toda a economia estar subordinada aos interesses de potência do Príncipe, quer reais (internos e externos) quer simbólicos, Marx chamou mercantilismo.

Parece-me que aqueles que são referidos como “os capitalistas angolanos”, tal como são descritos não são senão uma “lumpen-burguesia” e não propriamente uma burguesia. Poderão vir a engrossar uma burguesia nacional que se caracteriza pela sua relação, não somente ao capital mas também ao trabalho. É que não basta ser rico para se ser burguês. E pode-se ser burguês sem se ser capitalista.

Num artigo académico que escrevi sobre o poder e a diferenciação social em Angola dizia que os novos-ricos angolanos ligados às formas de apropriação pelo poder (não somente político-administrativas mas sobretudo político-económicas) constituem "uma classe, uma “lumpen-burguesia” arrogante e exibicionista, que partilha a avidez da rapina e tem no centro dos seus interesses e poder um sistema clientelista alargado, cuja tendência transnacional a tem levado à internacionalização dos seus interesses e a uma procura hegemónica regional, pois, estabeleceu-se entre os seus elementos “uma solidariedade de interesses que os une ou lhes impõe uma estratégia comum” [George Balandier, “Problematiques des classes sociales en Afrique noire”, Cahier International de Sociologie, vol. XXXVIII, pp. 131-142].

Não há da minha parte uma divergência na descrição desse grupo social pois para mim “a economia política de poder real representa uma concreta diferenciação de recursos, de formas de apropriação e acesso a esses recursos e uma correspondente maneira de estar na vida que engendra uma progressiva estratificação da sociedade, já que esse modo de dominação está ligado a modos de acumulação, em concreto, que são permitidos por privilégios fiscais e cambiais (legais ou de facto), pelo acesso privilegiado a mercados e negócios, aos financiamentos do Estado, a empréstimos bancários, bolsas de estudo e outras alocações de riqueza”. (Nelson Pestana, “Abordagem metodológica das classes sociais em Angola”, Lucere – revista académica da UCAN, nº. 2, Junho 2005). No entanto, é preciso não confundir a “lumpen-burguesia” com a burguesia que tem a sua origem não no sangue (a não ser de forma indirecta) mas no tecido produtivo nacional e que tem sido impedida de concretizar o seu papel liderante no espaço da economia produtiva e de serviços, precisamente porque esse espaço é colonizado pela lumpen-burguesia predadora. Bastava lembrar que segundo o próprio Marx, a génese do capitalismo tem na fábrica a sua figura emblemática. Ora, a lumpen-burguesia angolana abomina a fábrica e a combate, opondo-se ao empreendedorismo da burguesia nacional que se constituiu a partir da elite dirigente do tecido produtivo socialista (nomeadamente, das Unidades Económicas Estatais, as já esquecidas UEE’s) e da criatividade dos quadros pouco acarinhados nas estruturas estatais e, depois, marginalizados pela ideologia da predação radical. E, para além da predação directa, nomeadamente através da exploração intensiva dos recursos naturais e humanos, por pessoa interposta, ela prefere agora a agiotagem, a rapina ou a prestação de serviços em sistema de monopólio, em flagrante “concorrência” desleal com o empreendedorismo nacional.

Longe de adoptar formas de trabalho e de organização modernas e modos gregários sociáveis, a lumpen-burguesia, às vezes de forma consciente, reinventa uma linhagem que é constituída por “redes de famílias ligadas ao poder por meio de casamentos, relações comerciais, ligações políticas e altos cargos nas forças de segurança, na administração” [Tony Hodge, Angola do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Lisboa, Principia, 2003:186] e nas empresas públicas estratégicas. Esta “linhagem” caracteriza-se, como dizia Henrique Abranches, por ser “essencialmente social e cultural”, sobrepondo-se à condição de classe que é, segundo o mesmo autor, “essencialmente económica e social”. A “nova linhagem” é investida como uma falsa tradição ao serviço da classe dominante através, sobretudo, do monopólio da enunciação (o “Canal 2” é uma das suas concretizações mais recentes, não é apenas uma questão económica, faz parte do actual arquétipo de dominação).

Por isto, a compreensão do mercantilismo (e não capitalismo) angolano não passa necessariamente pela determinação da classe social ou grupo de pertença mas sobretudo pela compreensão da estrutura e do funcionamento do aparelho de controlo da produção da riqueza. Este é o instrumento que permite ao Chefe e ao seu grupo impor o seu poder e fazer com que os súbditos o aceitem. E, por isto, o aparelho político de poder aparece como sendo menos um reflexo do poder económico e mais como um seu elemento constitutivo. Aqui, como se pode facilmente perceber, inscrevo-me em absoluta oposição ao determinismo económico de Marx que fazia do político uma emanação do económico na sua célebre passagem segundo a qual: “na produção social de sua existência, os homens estabelecem determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento das suas forças produtivas. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se erguem as super-estruturas jurídica e política que correspondem a formas determinadas da consciência social”.
A minha filiação vai no sentido de Mamdani que faz do seu terreno de análise “menos o modo de acumulação que o modo de dominação” [Mahmood Mamdani, Citizen and Subject – Contemporary Africa and Legcacy of Late Colonialism, Princeton, Princeton University Press, 1996], o quer dizer que há uma dependência do modo de acumulação em relação ao modo de dominação e que o abandono dos actuais modos de acumulação, implica uma mudança nos mecanismos e no funcionamento do modo de dominação. O que significa que seria preciso que a elite política dominante deixasse de utilizar “em toda lógica, o poder que [tem]; o controlo político (o Estado) para vigiar o acesso aos negócios, isto é, para determinar a natureza das oportunidades”[Anyang' Nyong'o 1995:34]. Por outro lado, para a “lumpen-burguesia” (satisfeita com os actuais níveis de acumulação) aceitar ser a alavanca da criação de uma “classe média” implica também abandonar a ideia e prática de que “a inserção dos grupos sociais subordinados no campo político traduz-se [na] adesão ao poder” [Bayart, 1992], ou seja, na imposição do “consentimento dos dominados à sua dominação” [Godelier, 1977:50].

A revisitação de Marx pode assim redundar numa rápida e (in)oportuna legitimação do anti-Marx (o tio Patinhas), na sua versão mobutista, pois há uma dialéctica da desigualdade, entre a pobreza da grande maioria e a riqueza extrema de alguns que não deve objectivamente (sem nenhum juízo de valor) ser obnubilada.

PS: E, a propósito de juízo de valor, será que apresentar o sistema do “débrouillez-vous ”, através do qual a minoria, pela sua posição privilegiada no aparelho de Estado, conseguiu acumular estrondosa riqueza, como uma fatalidade histórica irrefutável, não é a formulação de um juízo de valor? Não é próprio do normativismo autoritário que tem sempre razão?

quinta-feira, 20 de março de 2008

O "VOTO DE QUALIDADE" DOS CATÓLICOS

"nenhum católico deve votar no partido da situação porque ele nos nega a nossa rádio"

(in artigo de Luis de Nacimento, publicado no Angolense, 474, de 15 a 22 de Março 2008)

Os bispos angolanos, na sua última reunião da CEAST, ao abordarem o tema das eleições legislativas de 2008, fizeram apelo ao “voto de qualidade”. A Carta Pastoral associa o “voto de qualidade”, ao voto em consciência; um voto que seja fruto de uma escolha com base na reflexão. Uma reflexão que tenha em conta o estado do país, o estado de pobreza em que os angolanos se encontram, o desprezo que os actuais governantes nutrem pelos angolanos mais carenciados.

Será sempre muito difícil um voto de qualidade (que quer dizer um voto livre) quando sabemos que a maior parte do país vive numa situação de “reserva territorial” imposta pelo partido do poder, apesar de Angola se definir como um “Estado Democrático de Direito”. E, é porque querem manter o país em “reserva territorial” que impedem que a Rádio Ecclesia estenda o seu sinal a todo o território nacional. São muitos anos de negociações, de promessas não cumpridas, de ameaças e de atitudes musculadas para impedir o facto consumado da extensão da Rádio Ecclésia. José Eduardo dos Santos prometeu a extensão mas não cumpriu a sua palavra (o que faz com muita facilidade) e alguns governadores provinciais não se coibiram de usar de meios violentos para fechar manu militari as emissões experimentais da Rádio Ecclésia nas províncias. No entanto, esse mesmo poder não se coíbe de tentar seduzir e comprometer a hierarquia católica na “caça ao voto” para as próximas eleições. O caso mais emblemático foi o da visita de dirigentes do “partido da situação” (nunca achei tão apropriada esta designação, pois eles são efectivamente responsáveis pela situação calamitosa em que o país se encontra) da província de Luanda a Dom Damião Franklin, Arcebispo de Luanda.

Foram ao Paço Episcopal pedir, segundo os próprios “…garantias (…) sobre que contribuição poderá (a Igreja Católica) dar para a realização, com êxito, das próximas eleições legislativas”. Levaram tanto tempo a reconhecer que a igreja Católica tem alguma coisa a dizer em todo este processo. Deixemos os anos de ostracismo de lado e contentemo-nos com o “mais vale tarde do que nunca”. No entanto, ainda assim desconfio que não foi desta vez que foram numa atitude sincera, pois, a comitiva dos dirigentes do “partido da situação” de Luanda não levou qualquer resposta positiva aos fiéis da Igreja Católica (e não só) que há muito vêm reclamando pelo direito de ouvirem a voz da Rádio Ecclésia. É que os Bispos, na Mensagem Pastoral de 24 de Março de 2004, depois de manifestarem “o empenho da Igreja em ser uma isenta parceira do Estado na educação massiva do povo, bem como em colaborar com o Estado na educação dos cidadãos para uma pacífica e sã convivência, que venha a respeitar a ordem pública e quaisquer direitos humanos”, afirmam poder desempenhar cabalmente esta missão educadora se a Igreja poder utilizar “ não só os templos e as escolas, mas também que os fiéis das suas Dioceses” (…) tenham “o direito de ouvirem também eles, a voz da Rádio Ecclésia.” Mas falemos pois de hoje!

A sedução é própria do jogo eleitoral e a ninguém escapou que este mise-en-scène do poder está ligado a contagem prévia de votos. Mas, acham que os católicos, incluindo os do partido da situação, vão dar o voto àqueles que lhes denegam direitos? E a maka da Rádio Ecclésia? A dita extensão do sinal a todo o território nacional que o poder (depois de múltiplas promessas no país e no estrangeiro) continua a condicionar à ambição de cooptação. Os católicos vão votar naqueles que não lhes permitem ouvir a sua própria rádio? É isso que é o voto de qualidade?

No passado, eram evocadas razões de interesse nacional, segundo o qual somente o Estado deveria ter o monopólio da informação nacional (a questão das ondas é um mero pretexto técnico). Mas, em Dezembro de 2003, JES, ao falar na abertura do V Congresso do seu partido, de forma desgarrada de todo o resto, disse que já era tempo de acabar com o monopólio do Estado na televisão. Nessa altura, falava-se que ia abrir uma televisão própria apoiado em amigos de circunstância. Agora, todo mundo sabe, que achou mais cómodo passar o Canal 2, da TPA, para a mão dos filhos. A operação de “privatização da gestão” do Canal 2 foi um expediente rápido que o “chico-espertismo” nacional (ou estrangeiro) ao seu serviço encontrou para operar a privatização não declarada desse canal da TPA. O que lhes vai permitir, para além do mais político e comercial, acumular o capital necessário à posterior aquisição “perfeitamente legal” do referido canal da TPA.

Não importa agora o expediente que é meramente formal, o importante é o que é substantivo: o fim do monopólio do Estado a favor de uma empresa privada. Não há nenhum problema nisso. Mas, o argumento que era (e continua a ser) utilizado contra a extensão do sinal da Rádio Ecclésia (o do monopólio do Estado em relação a rádio de curta frequência que emite em simultâneo para todo o território) cai por terra. Pelos vistos, para este poder, “a empresa dos filhos do Presidente” é mais idónea que a Igreja Católica pois esta não pode partilhar com o Estado a informação falada a nível nacional, no entanto, o Canal 2 pode fazê-lo, ao nível da televisão.

Isto é mais que a habitual raiva autoritária, é uma falta de respeito, uma profunda desconsideração, uma atitude de menosprezo absoluto pelos católicos, em particular, e pelos cidadãos, em geral. A resposta que os católicos podem dar aos senhores que se acham tão poderosos que não respeitam mais ninguém e nos impõem a todos os seus caprichos, com verdadeiros prejuízos para o país, é a de dizer: “meus senhores, quem nega aos Católicos o seu direito de escutar a sua Rádio, não pode pretender contar com o seu voto”. Eis a palavra de ordem para todos (independentemente do chamado partido do coração): “quem nos nega a nossa rádio não é digno do nosso voto”.

Os católicos devem votar massivamente porque é um dever cívico e é isso que ensina a cartilha “o cristão e a política” e nos indicam os bispos, na última Carta Pastoral, mas nenhum católico deve votar no partido da situação porque ele nos nega a nossa Rádio, a não ser que ele mude de postura. Os católicos desse partido devem pois fazer pressão no interior das suas estruturas para que ele mude de atitude e nos conceda a extensão do sinal da Rádio Ecclesia, porque se não “QUEM NOS NEGA A NOSSA RÁDIO NÃO É DIGNO DO NOSSO VOTO”.

Luís do Nascimento
Secretário-geral da FpD

terça-feira, 18 de março de 2008

ELEIÇÕES 2008: UM MOMENTO DE CLARIFICAÇÃO

Quem quer um modelo de desenvolvimento político, económico e social participativo, que conta com todos os cidadãos como agentes transformadores, deve votar na FpD”.

As eleições, quando não são banalizadas ou funalizadas, são normalmente uma oportunidade de clarificação de posições políticas, ético-morais e cívicas. Creio bem que as eleições de 2008 poderão ser esse momento que venha tendencialmente a acabar com o “porreirismo” nacional. O país só tem a ganhar com a clarificação de posições. A clarificação permite a emulação de ideias, o debate produtivo de sentido e acaba com a hipocrisia, com o cinismo, faz emergir a dignidade e o respeito pelo Outro e proporciona uma sã convivência no respeito de cada um. O “porreirismo” nacional tem feito muito mal ao país e tem contribuído para a legitimação do autoritarismo, deixando à margem da vida do país uma considerável franja da inteligzencia nacional, em particular, e dos cidadãos, em geral. Por nós, cada cidadão angolano tem que ser respeitado no seu círculo social não pelo cartão partidário, não pela sua cumplicidade ou silêncio em relação a práticas contra as quais está, mas pelo seu valor individual e social. O pensamento crítico é fundamental para o desenvolvimento nacional e só pode sê-lo em liberdade e com a criação de espaços alternativos de intervenção que permitam a participação de todos no espaço público nacional.

Está anunciada para Maio uma Conferência Nacional do partido da situação. Segundo um dos seus líderes a conferência será aberta a independentes que serão convidados a participar dos seus trabalhos devido à sua capacidade técnica e profissional. É claro que esta atitude é ditada pela circunstância da captação de votos e não porque haja uma mudança nas convicções e no método de tal partido que repetidas vezes já recorreu a este esquema e até aprovou uma linha à esquerda e depois governou à direita, já se serviu de nomes honrados para a campanha e, depois de recolher os votos, governou com toda a malandragem. Os seus dirigentes gabam-se desta sua reincidência de “piscar à esquerda e virar à direita”. Não são pois um partido em que se possa confiar.

Por seu lado, a Frente para a Democracia (FpD) vai realizar, em Junho, um conclave para discutir o manifesto eleitoral. Não se trata de uma convenção (ou conferência nacional, ou congresso) do partido, onde participam alguns técnicos, mas de uma reunião aberta e coordenada por personalidades da sociedade civil em que militantes da FpD e membros e personalidades da sociedade debatem, a título igual, uma visão do Estado, da economia e da sociedade que será depois adoptada por este partido como programa eleitoral.

Neste contexto, o que seria bom é que aqueles que estão de acordo com a política do partido da situação frequentassem os seus actos políticos, as suas reuniões e os que não estão de acordo que não ponham lá os pés. É tempo de contribuirmos para a abertura de um espaço de intervenção alternativa que permita alicerçar uma mudança estrutural do país para que possamos ver realizada a utopia da Angola de todos. Para isto, é preciso que as pessoas não se deixem intimidar e não apareçam lá onde ninguém espera que estejam apenas por receio de retaliações futuras.

O momento é de clarificação em relação a uns e a outros. Tanto em relação a manobra da “grande família bis”, quanto em relação à “federação para a mudança”. O que é melhor para o país é que não haja voto de equívoco ou do medo. O voto deve ser, no sentido do apelo dos bispos católicos, um “voto de qualidade”. O quer dizer que deve ser um voto em consciência em que cada um leve em consideração as suas convicções profundas e os interesses não meramente circunstanciais mas estratégicos do país; quer em termos de crescimento económico, quer em termos de desenvolvimento político e social, dois factores que estão intrinsecamente ligados.

Apesar das muitas siglas partidárias há apenas 11 partidos representados na Assembleia Nacional: Mpla, Unita, PRS, Fnla, PLD, FpD, PRD, PNDA, Pajoca, PDP-ANA e PSD (o 12º partido dissolveu-se e regressou, na sua maioria, ao seio materno) e pouco mais de meia dúzia participam efectivamente na vida política do país. Para além dos antigos movimentos de libertação, há a FpD, o PRS, o PLD (ultimamente muito desaparecido) e o Padepa. Depois podemos considerar, num outro plano, duas coligações: os POC e o CPO. Mas basicamente vão estar presentes três propostas de conteúdo global: os parceiros do Gurn e a FpD. Para além destas haverá mais três outras propostas de conteúdo mais particular: Fnla, PRS e Padepa.

O partido da situação vai tentar transformar o desastre da sua governação em virtudes. Vai tentar negar a autoria do milagre das rosas ao contrário que “transformou as rosas em falta de pão”. A sua proposta vai ser de continuar a aplicar o “programa de reconstrução nacional” que até aqui deu resultados muito fracos, com enormes somas gastas, evocando que precisa de mais tempo, para insistir nas grandes obras faraónicas e pouco investir nos cidadãos. Vai multiplicar as promessas e vai investir fortemente no voto afectivo, impulsivo, recalcado, esquizofrénico ou vendido mas nada consciente.

Do lado da Unita o grande objectivo é a mudança do poder e por isto a intenção de cooptação de um largo leque de partidos e personalidades que lhes permita insistir no bipartidarismo, que a concretizar-se irá perpetuar um “partido único” rotativo, não dando espaço a sociedade civil e outras sensibilidades políticas. O poder é mais importante para eles do que a política. Afinal, é um partido com uma vasta clientela à espera da sua vez. Nunca deu grande importância às lutas sociais, colocou-se contra a luta pelas eleições nos prazos constitucionais, argumentando que ainda não estava preparada (colocando pois no centro da sua acção os seus interesses partidários e não os Nação), várias vezes evocou “sentido de Estado” para não agir em conformidade com a oposição e privilegiou a sua condição de membro do Gurn. Tendo em perspectiva o interesse da bipolarização, colaborou na feitura da Lei Eleitoral com todas as inconstitucionalidades de que enferma (nomeadamente, o famoso artigo 62º, nº. 2) porque entrou, mais uma vez, no jogo da colaboração em defesa do espaço bipolarizado, para evacuar todas as demais forças da arena política, na esperança de que esta manobra lhe seria favorável, desta vez, pois todos os outros partidos perante as dificuldades bateriam à sua porta.

A FpD, por seu lado, e apesar das inúmeras dificuldades, contrariamente a estes dois projectos hegemónicos dos parceiros do Gurn, defende uma forte federação de forças para a mudança da política nacional e para a transformação estrutural do país. Por isto, está aberta a tudo que se vai discutir no “Jango da República” e se disponibiliza a ser o meio da acção política de todos. Para este partido a questão fundamental não é a de evacuar os actuais inquilinos do poder e instalar outros. O fundamental é a mudança de política. E, isto, não é uma mera passagem ritual mas um processo. Um processo que se inicia mas não se esgota com as eleições de Setembro de 2008, terá a sua continuidade na acção da FpD no parlamento, na sua ligação às lutas sociais e aos movimentos reivindicativos. Terá a sua continuidade nas eleições presidenciais e, sobretudo, nas eleições autárquicas.

Há pois, nestas eleições, várias clarificações a fazer! Para além das que já deixamos expressas, é preciso saber quem é pela bipolarização, quem escolhe o poder, em vez da política, quem é pela maioria absoluta e quem está a favor do modelo de desenvolvimento de exclusão.

Quem é pela bipolarização não terá que se inquietar em relação aos demais partidos que estarão nestas eleições. Mas quem quer a pluralidade e está contra a bipolarização deve votar contra esta, colocando o seu voto numa das formações que procuram garantir a pluralidade política da futura Assembleia Nacional: FpD, PRS, FNLA e eventualmente mais um ou outro.

A segunda clarificação tem a ver com a escolha entre o poder e a política. Quem for pelo poder, a quem apenas preocupar o poder do seu próprio partido e nada a política de desenvolvimento do país deve votar nos parceiros do Gurn para decidir quem fica na mó de cima desta vez. Quem é a favor da política não pode deixar de votar na FpD que é um partido, segundo diversos comentaristas, com política própria, um partido que representa um pensamento político alternativo para o país, para quem o sentido das eleições legislativas de 2008 não é o do poder. A questão que está em jogo não é uma questão de poder mas de política.

A terceira clarificação é entre a maioria absoluta e a maioria relativa. Os que acham que o seu partido deve gozar de uma maioria absoluta para governar em ditadura, de costas para o país, sem dar importância às reivindicações dos movimentos sociais e dando largo espaço à predação, então deve votar nos partidos que querem a maioria absoluta (ou seja, os parceiros do Gurn). Quem não quer uma maioria absoluta deve votar nos partidos que propõem uma alternativa política ao filme da ditadura actual (ou ao seu remix).

Quarta clarificação é em relação ao modelo de desenvolvimento. Quem quer um modelo de desenvolvimento político, económico, social participativo que conta com todos os cidadãos como agentes transformadores deve votar na FpD. Quem prefere o modelo do grupo locomotiva (que se enriquece a custa do empobrecimento e da miséria dos outros com a vã promessa de que depois eles serão a locomotiva do desenvolvimento) vota na continuidade do Gurn.

Em todo o caso a clarificação será sempre um ganho para o país.

Nelson Pestana (Bonavena)
(artigo publicado do semanário Agora, 15 de Março de 2008)

terça-feira, 11 de março de 2008

Transformar o descontentamento em voto na FpD

Entrevista de Filomeno Vieira Lopes, Presidente da FpD, ao Folha 8, de 8 de Março de 2008

Como vê o actual estado do país do ponto de vista político?

Vivemos uma situação política com instituições incapazes de funcionar democraticamente, prenhes de autoritarismo e controlismo. As pessoas ainda não se sentem como cidadãs, portadoras de direitos que lhes permita intervir nas questões públicas e mudar o rumo das coisas. O medo ainda é dominante em todos os estratos sociais. Não estamos ainda perante uma situação de verdadeira separação de poderes: poder legislativo está condicionado pela maioria parlamentar conduzida pelo partido da situação; o poder judicial funciona sob ordens do Executivo que é controlado pelo Presidente da República. Não há respeito pelos partidos políticos da oposição e o GURN não consegue trabalhar como um verdadeiro Governo duma Unidade programática. A funalização e pessoalização do poder são visíveis na actual cultura de poder o que não permite que o jogo político seja limpo e bom para o desenvolvimento. Há muitas violações aos direitos dos cidadãos, principalmente em Cabinda, onde as prisões em massa e arbitrárias são uma constante do dia-a-dia dos cidadãos.

Os angolanos depois de seis anos sem guerra continuam a ser um povo descrente? Existirão razões objectivas?

Ainda não há confiança clara no futuro. Os angolanos foram levados a confrontar-se mutuamente numa guerra em que esperavam que o seu fim propiciasse vidas boas. Ora, os dividendos da paz, sobretudo os de carácter sócio-económico, estão concentrados numa minoria, aquela que sempre foi protegida. Isto cria um sentimento de frustração, que é acentuado pelo facto das condições gerais da vida se agravaram para muita gente. O país no essencial continua desorganizado, os cidadãos não têm acesso a muitos serviços e quando o têm não é de forma decente, questões básicas como água, saneamento e energia continuam por resolver, o tráfico de influências é muito grande, o trabalho continua sendo desvalorizado. Não há propriamente razões objectivas. Antes, tudo era atribuído a guerra com o verbo no “presente”, agora continua a ser a guerra com o tempo no “passado”. Sendo a guerra um factor objectivo, as pessoas acreditaram que assim era. Desaparecida a guerra e com o florescimento económico só mesmo a gestão ambiciosa, danosa e incompetente podem explicar o actual estado de coisas. É o subjectivo político que é responsável do que se passa e não outra razão fora do controlo das autoridades. Na verdade, para cuidarmos do povo nesta fase precisávamos de mudar de política, isto é o que é o essencial.

Que leituras faz sobre as políticas de demolições levadas a cabo pelo governo?
O governo não tem uma política eficaz de combate à pobreza. A estratégia de combate formulada em 2003 para vigorar até 2006 não deu frutos. Com uma incrível falta de visão e ausência de coração o Governo que pretende servir interesses imobiliários privados utiliza o camartelo, esbulha casas, sem atender a história social dos seus habitantes, sem respeitar os direitos humanos e mesmo a lei 1/2000 que exige que o Governo cuide de arranjar alternativas de acordo com a vontade das pessoas quando por razões de interesse de estado tem que demolir uma casa ou deslocar populações. Para a FpD demolir casas como se tem feito, algumas das quais com crianças dentro, que acabam morrendo, explica que o governo não está interessado em reduzir a privação humana em que a grande maioria do povo angolano vive. Esta é a leitura essencial.

Tem algum paralelo com as políticas das autoridades coloniais?
Como é que o sistema colonial conseguiu para os seus as terras? Retirando as pessoas residentes dos locais em que se encontravam. Muitas vezes através de processos de violência brutal ou por sistemas administrativos. Quem não tivesse a terra demarcada e registada perderia a mesma. Veja-se num contexto em que a maioria das pessoas não sabiam ler e escrever português o significado dessa medida aparentemente inofensiva. Repare-se que hoje em dia muitas pessoas ocuparam terrenos (muitos deles comprados a supostas autoridades municipais) sob o apelo de altas autoridades e devido a situação de pressão militar. Vale lembrar que Neto pediu as pessoas paa construírem com o seu trabalho e que não esperassem isto do estado. Foi assim que surgiu o “Ntunga Ngo”. Vale ainda lembrar que Neto pediu ao povo para não olhar para o Porto de onde vêm as mercadorias importadas e produzir. Daí surgiu o “Bonde Chapéu” com camponeses procenientes de várias províncias, principalmente de Malange. O povo foi construindo mas por via de regra nunca lhes quiseram legalizar o terreno para 30 anos depois (muitos deles) lhes ser retirada a casa a pancada, a pretexto de não terem papéis. Tive avós que moravam no tempo colonial onde hoje é a Baixa de Luanda e sei que as suas casas foram demolidas mas uma boa parte das pessoas foi residir para o Bairro Operário, para onde lhes foram concedidos terrenos urbanizados para construírem aí as suas casas. A urbanização de Luanda ainda no meu tempo de menino foi feita através de demolição de casas e as pessoas iam ocupar terrenos mais para a periferia. O pessoal ia desmatar. Nos últimos tempos as autoridades coloniais já tinham alguns planos de fomento habitacional e assim surgiram os bairros populares, o Bairro Caputo, etc, para além dos bairros residenciais agregados a empresas do sector estatal algumas mesmo privadas. A independência dever-se-ia situar acima desses padrões do último fôlego do tempo colonial. Mas veja-se a qualidade de casas do Panguila, do Zango, etc, para não falar da inserção urbanística, seja, de todas as infraestruuras para o bem estar das populações que não existem e causam outros transtornos.

Acha que se mantem actual a música de Santocas, quando se denunciou o bairro indígena?
Claro. Parece ser um continuismo, quando a independência aspirava a ruptura.

Confia na actual Comissão Nacional Eleitoral?
Não tem uma composição de acordo com as nossas propostas, assentes sobretudo nos padrões da SADC que privilegia um corpo dirigente menos influenciado pelos partidos políticos e pelas autoridades do poder. O partido da situação e o seu presidente têm o domínio absoluto dessa Comissão. Ademais, ela tem Juízes que também fazem parte do Tribunal Supremo, órgão que tem que julgar os actos reclamáveis do processo eleitoral. Isto é um absurdo, é ilegal, e não dá credibilidade ao processo. Por isso, a CNE, não tem agido de forma a evitar sobressaltos neste processo e isto não é bom. Veja-se que desde há muito o partido da situação faz pré-campanha, veja-se o abuso de recolha de cartões de eleitores e o pedido do seu número e ainda pretender-se sancionar as pessoas que não possuem cartão de eleitor, sem respaldo em qualquer lei. Desejamos, naturalmente, encorajar todos os seus membros a assumirem o seu verdadeiro mandato, sentindo-se como homens e mulheres de estado e não como quem está ligado umbilicalmente a personalidade ou ao partido proponente. Mas a ilegalidade dos Juízes pertencerem a dois órgãos, jogando e arbitrando deve ser resolvida para bem do nosso processo democrático.

Porquê tantas dúvidas sobre a organização do processo?
Pelas razões acima apontadas, parece que se pretende amarrar o processo para se criar as condições do partido da situação permanecer no poder. Seria bom que as coisas fossem feitas de forma a que aumentasse a imparcialidade do processo para dar confiança a todas as partes. Não nos podemos esquecer que vivemos problemas tristes na sequência do único processo eleitoral e agora temos a responsabilidade de agir de maneira a que não haja qualquer suspeita de retorno à violência. Nesse sentido uma boa CNE é crucial.

As eleições serão justas?
É duvidoso, mas não devemos antecipar-nos aos resultados. Digamos que as condições prévias, nomeadamente, a dificuldade de acesso dos partidos políticos hoje aos órgãos de comunicação social, a repressão sobre os partidos, o próprio medo que as pessoas têm, etc não são situações justas. Contudo, o essencial hoje é encorajar para que o nível de justeza do processo seja admissível por todos e não fazer desde já um prognóstico que retire o entusiasmo ao eleitorado. As eleições só por si não são a democracia, mas é um principio incontornável dela.

Teme um possível regresso à guerra, caso o resultado eleitoral seja imprevisível?
Guerra com que partes? Posso dizer que em sociedades de frustação e com grande níveis de injustiças, uma injustiça acrescida no processo eleitoral pode gerar tensões não controláveis que permitam o ressurgir da violência, porque as pessoas estão elas próprias já em contexto (mentalmente) de violência. Apesar da difícil situação a função dos políticos é criarem todos os mecanismos para evitar isto. E isso está ao nosso alcance. A FpD já apresentou uma proposta de acordo político pré-eleitoral com vista a evitar a violência antes, durante e após as eleições que reforce ou dê operacionalidade ao código de conduta. A proposta teve amplo acolhimento dos cidadãos, das organizações associativas e das igrejas. Estamos a trabalhar na forma como devemos propor mais concretamente. Creio que todos nós, a esmagadora maioria dos cidadãos de todas as classes e sectores, está interessada em garantir a estabilidade do processo eleitoral por isso temos confiança que poderemos chegar a este acordo, no fundo um acordo prevenção e gestão de conflitos.

Acredita numa eventual derrota do partido no poder?
Acredito. Basta que o nível de descontentamento se transforme em voto para a oposição séria. E como disse o sociólogo Paulo de Carvalho não é nenhuma hecatombe. Antes pelo contrário rompe-se o círculo do vício e o próprio partido no poder tem uma soberana oportunidade de reflectir sobre a política desastrosa que tem empreendido e iniciar a sua mudança para a democracia e o equilíbrio social. A nação só ganha com isto!

Acha ser possível uma união da oposição para impedir uma maioria absoluta?
Creio que a oposição séria vai encontrar caminhos para ter a confiança do povo. Em 2005 escrevemos a vários partidos políticos sobre isto com vários hipóteses de unidade até um acordo de incidência parlamentar para dar confiança ao povo de que podemos ser capazes de organizar um estado de direito. Estamos a procura dos caminhos que podem não passar necessariamente por uma coligação eleitoral, mas por acordos de unidade capazes de estimularem o eleitorado a votar em partidos credíveis que possam transformar uma derrota do partido no poder na esperança duma vida melhor para os Angolanos.

Qual a sua opinião os angolanos no exterior não votarem?
Não votarão porque o partido da situação acha que perde as eleições no exterior. Isto mostra que as pessoas têm pretensão de organizar as eleições só quando julgam que vão ganhar e não querem correr o risco de perderem. O Exterior tem melhores condições para organizar as eleições e os pretextos do Governo sobre o não controlo dos angolanos no Exterior só evidência a falta de competência do regime. Não haver representante parlamentares dos residentes no Exterior é um erro político crasso, uma vez que precisamos de todos para o desenvolvimento de Angola e quem não tem direitos políticos não se sentirá no dever de contribuir para isto. Eu sinto muito que o défice democrático do actual governo tenha chegado a este ponto. É incrível, quando vimos países com grandes dificuldades como S. Tomé, Cabo Verde e outros a serem capazes de organizar eleições no Exterior só podemos dizer que há flagrante falta de vontade política assente num oportunismo sem limites.

Como encara o facto do director das eleições continuar a ser magistrado?
Como disse é ilegal. É uma situação a que se deve pôr termo.

Teme uma fraude a nível da contagem e máquina informática?
Vamos sugerir a contagem manual para garantia de todas as partes. Como já se apercebeu a minha vontade, a vontade da FpD, é contribuir para impedir tudo quanto possa contrariar a verdade eleitoral e não temer dificuldades que possam retirar clareza para encontrar soluções.

Acha que vai haver desigualdade dos partidos nas eleições, face as condições financeiras?
Claro que vai. Vai também haver truques, entregas mal feitas, fora do prazo, enfim, temos que nos preparar para o que der e vier. De resto, o partido da situação vai utilizar todos os bens pertencentes a todos nós (os do estado) para fazer a sua campanha. Isto esta-lhes no sangue, não conseguem separar o que é público do que é privado.

Como deveria ser o financiamento dos partidos políticos?
Com regras transparentes. Com procedimentos isentos e de forma atempada.

Como encara o caso Cabinda?
A FpD tem defendido que é preciso o respeito pelos direitos humanos por todas as partes envolvidas no conflito. Há uma reivindicação de independência e de autodeterminação que suporta a guerra. Não é possível resolver um problema sem atender ao tipo de reivindicação. Mas entendemos que o povo de Cabinda só pode tomar grandes decisões com paz, sem pressão de nenhum tipo de armas. Dada a natureza do problema a FpD tem proposta uma autonomia alargada da região, que é uma proposta política mais avançada que um mero estatuto especial. O Governo tem impedido a FpD de aprofundar o diálogo por essa via, mas é por aí que nós pensamos que o caso Cabinda deve ser tratado. As actuais propostas, conjugadas com a política de repressão, incluindo a nível laboral (transferências compulsivas de trabalhadores de Cabinda) não só não resolveram o problema, mas estão a suscitar reacções mais profundas de separação. Criar o melhor clima para o diálogo aberto, vendo todos os aspectos do problema tem sido a nossa prática politica que tenta envolver a população de Cabinda no diálogo político e na solução do seu próprio conflito.

Poderia haver outra forma de resolver o problema?
Os ensaios actuais estão a aprofundar a violação dos direitos humanos em Cabinda. A vida já mostrou assim que a solução do governo não é suficiente, até porque não tomou em conta sectores fundamentais para a resolução do conflito. A autonomia é uma possibilidade que permite uma maior ponte de entendimento.

Na sua opinião o que estará por trás das músicas de contestação dos jovens, contra o regime?
A Juventude não compreende como é que o país não oferece oportunidade para a sua esmagadora maioria, quando provém dela todo o esforço para que os actuais detentores do poder gozem de boas vidas. E não seria de jovem senão questionasse o que se passa. Eu próprio começo a entender que o país precisa duma ruptura no bom sentido e só a juventude pode ser portadora desse porvir. O partido da situação nunca soube entender a Juventude e conseguiu sempre abafar todas as boas ideias e movimentos jovens que questionaram a sua direcção e fá-lo matando-os no ovo. Por isso é que temos o presente que temos, pois só a força da juventude em qualquer sociedade é capaz de produzir o futuro. Precisamos nós de passar os bons valores a Juventude para que ao lado da sua energia contribuam para que o país encontre seu o justo rumo.

Uma opinião sobre o caso Miala, julgamento que ainda não transitou em julgado?
Os partidos e as personalidades que estão comprometidas com os Direitos Humanos e com a construção duma sociedade mais justa – que é o caso da FpD - entendem que qualquer cidadão tem direito a exigir um processo limpo e oportunidade de defesa quando confrontado com qualquer acusação. O essencial é que o regime político no qual, também o general Miala tem acreditado, utiliza o poder judicial para pressionar politicamente, isto é quando dispensa a via militar ou meramente policial. Assim tem sido com a oposição e com as pessoas honestas e verticais desse país, mas a vida nos mostra que assim também é para as contradições no seio do próprio regime. Portanto, vai servir para qualquer um, sobretudo, quando o assunto se aproxima do chefe. A imprensa que passou o julgamento em directo mostrou vários atropelos as leis e as normas processuais e, sobretudo, nunca ficou claro para a opinião pública se as graves acusações de golpe de estado que impendiam sobre o cidadão Miala seriam passíveis de procedimentos judiciais. A justiça está demasiadamente encomendada. Precisamos mesmo de ter a coragem de erguer um estado de direito para que cada coisa se situe no seu verdadeiro lugar.

Acredita na actual politica de reconciliação nacional?
Tem beneficiado da grande generosidade do povo angolano. Durante estas três décadas muitos cidadãos viram os seus direitos sonegados e violados. Pessoas foram presas sem motivos, outros perderam empregos e foram discriminados por não serem militantes do partido da situação, muitos viram as suas famílias assassinadas. No geral, as vítimas do processo angolano não foram tidas nem achadas e nem sequer têm tido a oportunidade, de forma sistemática, de opinarem sobre o país. Desde a ausência de reparações até a segurança psicológica de que jamais recairá sobre os grupos e cidadãos visados novas injustiças, pouco tem sido feito. Reconciliação não é apenas repartição de cargos políticos, mas assenta sobretudo num novo espírito de convivência em que você pode assumir o seu semelhante como irmão sem ressentimentos. O reflexo disso seria a eliminação de todo o sistema de discriminação que, infelizmente, ainda vigora, não permitindo um processo de confiança dum futuro melhor e sem constrangimentos. A grande sorte é que o nosso espírito generoso tem evitado tensões face a prevalente discriminação.
Dum ponto de vista da dinâmica política o facto de o pacto da reconciliação não ter sido claro, do problema da aceitação mútua não se traduzir num compromisso explicito, abre caminho à intolerância política.

Acha haver intolerância política?
Obviamente que sim! Basta ver as declarações de Ministro da Defesa para nos apercebermos. Mas o que é que significa impedir-se que a FpD faça uma conferência em Cabinda? O que é que significa o nosso militante de Cabinda sofrer dois anos de prisão só pelo facto de distribuir um panfleto? As perseguições e ameaças e até o desaparecimento físico de alguns políticos? Associações não serem reconhecidas, a rádio eclésia não se expandir por todo o território nacional, ao Omunga ser impedida exibir um filme… A comunicação social do estado que não passa as comunicações dos partidos políticos a mando do partido da situação? Tudo isto, não deixa dúvidas sobre a intolerância política ainda reinante. Mas é preciso persistir, pois esta actuação é a representação do passado. É tudo provisório, não vai ter pernas para andar. O que nos interessa a nós é caminhar para o futuro.

Como enquadra o programa de recolha de armamento às portas do processo eleitoral?
Houve uma preguiça estrutural das autoridades em avançarem para um programa de recolha de armas. Pensava-se ainda fazer funcionar isto como chantagem, ameaça velada, dado o papel que estas armas tiveram no processo de guerra. E isto tem tido gravcs consequências para as populações pois são dezenas de milhares de pessoas que já sucumbiram por causa das armas mal paradas. Mesmo as legítimas têm sido muito mal usadas por sectores da polícia, imaginemos as que vão para as mãos de delinquentes, filhos da crise social, resultante da péssima política de redistribuição. Em 1992 várias pessoas tinham avisado que a distribuição de armas em massa poderia ter consequências duplas (arma de dois gumes) e virar-se contra todos, porque foi um incentivo a delinquência, ao estímulo ao poder do ego. Porque o indivíduo possui uma arma submete os demais. Agora estamos num contexto em que todos os grupos sociais podem ser apanhados, também num contexto em que o descontentamento pode levar a que pessoas armadas façam uso delas para buscar o que consideram ser “justo”, visando pessoas bem abastadas. Penso que isto preocupa o poder político, mas levou o assunto, esticou a corda, até onde é mais perturbante: ao período eleitoral, período em que as forças político-sociais estarão muito ocupadas com o pleito. O regime fez ouvidos de mercador a toda a pressão da sociedade civil sobre este assunto. Eu próprio já ando metido em sessões para recolha de armas desde 2002. E mesmo antes dessa data já participava em sessões com o uso ilegal de armas ligeiras a nível internacional. Apesar de ser só agora nunca um assunto desses pode ser considerado extemporâneo. A FpD vai contribuir com o máximo das suas forças para que o programa tenha êxito, até porque ele é parte do que consideramos ser o acordo prévio para a paz eleitoral que vimos propondo, mas será necessário que nos assegurem a liberdade de informação para cumprirmos a nossa parte. De resto, vamos assegurar e declarar publicamente que nenhum dirigente da FpD e seus militantes tenha qualquer arma para tranquilizar a opinião pública e nunca sermos fautores de conflito, pois quanto ao desarmamento da nossa mente ela assim se encontra desde a nossa fundação. Assim esperamos que todas as forças políticas o façam igualmente e que a própria polícia e militares façam uso legítimo de armas e evitem demonstrações de força a este pacífico povo.

quinta-feira, 6 de março de 2008

FpD-Benguela promete manifestação

BANCARIZAÇAO DOS SALARIOS DOS FUNCIONARIOS PUBLICO EMANA DUM PODER AUTORITARIO

05/03/2008

Em Benguela, a Frente para Democracia FpD ameaça realizar uma manifestação pública nos próximos dias contra a alegada decisão administrativa do governo da província que determina a bancarização dos salários de todos os funcionários públicos exclusivamente num banco estatal, violando o principio da liberdade contratual plasmado no código civil vigente em Angola. Segundo o secretario provincial da FpD, Francisco Viena, que falava para a Voz da América, esta decisão que emana do poder autoritário do governo de Benguela é anti-constitucional a medida que desrespeita o direito do cidadão escolher o banco que lhe presta melhor serviço. « Se o governador provincial não ponderar aquilo que são as nossas posições, não ponderar os direitos dos funcionários públicos, não ponderar a liberdade que os cidadãos têm para escolherem aquilo que querem, estão nós não teremos outra forma senão recorremos a uma manifestação.» Alguns panfletos que já começaram a ser distribuídos nas principais artérias da cidade, desde a manhã de hoje , exortam aos funcionários públicos a exercerem o seu direito de cidadania , exigindo o respeito pelos seus direitos.
Neste folheto designado Libertação Social, a Frente Para Democracia diz não compreender as razoes que motivaram tal decisão administrativa, quando se sabe que a economia angolana é uma das mais velozes do mundo e, contra todas as expectativas, os funcionários públicos angolanos continuam a ganhar um salário de miséria, obrigados a receberem num único banco estatal. Por conseguinte se confrontam com uma longa fila de homens e mulheres como se fossem mendigos.
O libertação social já está na sua segunda edição e aparece como estratégia desta formação política para contornar a falta de espaço com que a oposição se debate junto dos órgãos de comunicação social estatais ao nível da província, numa altura em que se aproxima a realização das próximas eleições.
Este meio tem possibilitado a FpD interagir de forma imediata com os eleitores, se opondo contra aquilo que considera de má governação de Benguela, uma iniciativa que segundo Viena já mereceu apoios de indivíduos pertencentes aos grupos do MPLA, descontentes com a forma como o país está a ser conduzido. De resto a Voz da América procurou ouvir a direcção das Finanças de Benguela, mas não obteve sucessos.(AC)

fonte: VOA

segunda-feira, 3 de março de 2008

JOAQUIM PINTO DE ANDRADE: A POLÍTICA NA SUA ESSÊNCIA

"Como nacionalista era um apaixonado, irreverente, determinado e sólido nas suas convicções de libertação - uma libertação que fosse do “homem e de todo homem”.

Joaquim Pinto de Andrade morreu! No mesmo dia (e quase a mesma hora) morreu também um outro vulto do nacionalismo angolano: Gentil Viana. A notícia correu o mundo apesar dos órgãos de comunicação social oficiais do país não terem dado a notícia. O que fizeram, dois dias mais tarde, foi publicitar um comunicado do partido da situação sobre a morte de Joaquim e de Gentil. Neste comunicado não passou despercebido o vampirismo simbólico (o sugar do sangue alheio) pela tentativa de recuperação simbólica destas duas figuras que se colocavam em dissidência clara com a política do actual poder e não precisavam das suas prebendas para se afirmarem como grandes nacionalistas e gozarem do prestígio social que lhes é merecido.

Pelo mundo, vários foram os textos escritos a propósito dessas duas grandes figuras do nacionalismo angolano. As penas orientaram-se para o facto de que o destino fez com que os dois vultos da nossa luta que foram companheiros em vida finassem no mesmo dia. Alguns lembraram-se também de que os pais deles, José Cristino Pinto de Andrade e Gervásio Viana também já tinham sido companheiros, ao fundarem, com António de Assis Júnior e Sebastião José da Costa, a Liga Nacional Africana, em 1930.

Ambos são indiscutivelmente nacionalistas notáveis e tinham uma visão social da independência. Para eles a luta de libertação nacional devia conduzir o país à independência política mas também à independência económica e, sobretudo, à libertação social através da transformação da riqueza nacional em bem-estar social.

Mas apesar das muitas semelhanças e ideias partilhadas que fez deles companheiros de movimento de libertação e de dissidência no interior desse movimento, Joaquim Pinto de Andrade destacava-se pela sua maneira peculiar e, de certa forma, “atípica” de estar na política. E isto, apesar de ter estado na origem das suas aparentes derrotas no campo da política, faz dele um homem excepcional, resolutamente entregue a sua fé e ideais, sem nunca se mostrar dogmático, fundamentalista ou arrogante.

Como nacionalista era um apaixonado, irreverente, determinado e sólido nas suas convicções de libertação - uma libertação que fosse do “homem e de todo homem”. Era absolutamente um libertário e progressista. Em Portugal, quando aí esteve preso e depois exilado, as suas relações foram privilegiadas com os “católicos de esquerda” que se mobilizaram na acção anti-colonial e se celebrizaram pela atitude emblemática da Igreja do Rato. Jacques Delors, o católico e socialista francês que foi um dos obreiros da Comunidade Europeia e que esteve longo tempo a frente da sua Comissão, era uma das suas referências, porque tinham pontos comuns: o carácter impoluto, a maneira de estar na política ao serviço da comunidade, sem nenhuma pretensão de poder ou habilidade de manipulação, a franqueza, a lucidez e o compromisso com o social.

Joaquim Pinto de Andrade estava na política sem nenhuma vocação de poder. A política para ele não era a luta pelo poder. Para ele a política era a boa gestão da res publica e, sobretudo, a participação dos cidadãos. A responsabilidade e a partilha de tarefas para o bem comum. O poder para ele era uma coisa irrelevante em si. Apenas tinha sentido na medida que era um meio de resolução dos problemas da polis. O poder era para ele, não uma relação de dominação mas uma tecnologia de administração do interesse colectivo. Lembro-me que um dia, nos idos de 1991, já presidente da ACA (Associação Cívica Angolana) quando havia uma forte pressão para que tivesse um papel político mais relevante, aceitando a ideia de ser candidato presidencial, agastado com uma pequena intriga, virou-se para mim e disse: “estou a pensar abandonar tudo isto e dedicar-me aos meus livros! Tenho tantos livros para ler”. Recebi estas palavras como um soco no estômago, porque eu era um forte apoiante da sua candidatura às eleições presidenciais que se previam no âmbito dos acordos de Bicesse. Tínhamos feito a ACA (1990) que era uma associação muito importante para a abertura do espaço democrático no país, embora não gozasse da simpatia de nenhum dos beligerantes da altura, mas sentíamos a necessidade de evitar a bipolarização guerreira que polarizava a política na ideia da oposição entre o “nós e o inimigo” (Carl Schmitt) que era preciso aniquilar.

Nesse contexto, o Joaquim surgia como uma figura de “recurso nacional”, uma referência moral para o país que não tinha as mãos manchadas de sangue, que poderia garantir uma reconciliação plena no respeito das diversas identidades. Naquela altura, estávamos convencidos que o país, fortemente deprimido pela ditadura e traumatizado por uma guerra civil (e de ocupação estrangeira) tinha tudo a ganhar tendo um Presidente reconciliador, tolerante, solidário, íntegro, com desapego ao poder, culto e cultor das belas artes. Quando os sul-africanos elegeram Nelson Mandela pensei que nós tínhamos perdido uma grande oportunidade.

Ao ouvir aquelas palavras, a minha primeira reacção foi de descrédito e, a seguir, pensei: “como assim, então nós andamos a dar tudo de nós para o eleger e ele troca tudo isso pelos seus livros”? Mas, compreendi depois que não era por egoísmo e/ou desinteresse que o Joaquim iria tudo abandonar para se dedicar aos seus livros. Era porque a ele desgostava a politiquice, a canalhice em nome da política, essa ideia estúpida de que a política é a arte de bem mentir (de manobrar). A sua atitude era de entrega, de crença, de confiança nos outros, de transparência. Para ele a política era a arte de bem servir a comunidade: a arte de tornar possível o necessário. Na sua concepção libertária da política, não tinha nenhuma consideração pelo poder. Este era uma espécie de “colete-de-forças”, um “sacrifício” necessário porque se revelava como instrumento indispensável para realizar a mudança.

As suas palavras ganharam maior sentido, mais tarde, quando vi Léopold Senghor falar na televisão francesa do facto de deixar a presidência da República, no Senegal, para ocupar um lugar na Academia de Ciências, em Paris. Lembrei-me do Joaquim. Na verdade, toda esta sua concepção da política sendo, ao mesmo tempo, platónica (no bom sentido do termo, que têm a ver com a “cidade ideal”, de Platão, como base da sociabilidade humana e do bom governo) e rousseauista (no sentido de que o cidadão deve ser o centro do poder) está explicada no seu livrinho sobre “O compromisso político-social do cristão” (edição da CEAST, 1991). Com uma precisão: Joaquim, apesar de nacionalista, tinha no centro da política o Homem, fazendo jus ao universalismo que caracteriza a modernidade angolana. Este era o princípio e o fim da política. Por isto também, a sua concepção de política não podia deixar de ser ética. Desde sempre foi um defensor da ética da responsabilidade. Nunca para ele os fins justificaram os meios. Os agentes são sempre responsáveis pelas suas acções independentemente da virtude das suas razões, mesmo quando eles são motivados por interesses revolucionários.

Nunca se deixou tentar por regimes autoritários e a sua leitura era de escritores de liberdade: Ignazio Silone, Ítalo Calvino e muitos outros. Era um conhecedor da literatura angolana, portuguesa, brasileira e de outros países, nomeadamente africanos. Afinal, ele começou cedo, não só a ler mas a conviver com os grandes escritores africanos, a partir do “Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros”, reunido de 19 a 26 de Setembro de 1956, na Sorbonne, em Paris.

Joaquim Pinto de Andrade era pois a política na sua essência, ou seja, o cidadão atento e participativo.
Nelson Pestana (Bonavena)
(texto publicado no semanário Agora)