segunda-feira, 3 de março de 2008

JOAQUIM PINTO DE ANDRADE: A POLÍTICA NA SUA ESSÊNCIA

"Como nacionalista era um apaixonado, irreverente, determinado e sólido nas suas convicções de libertação - uma libertação que fosse do “homem e de todo homem”.

Joaquim Pinto de Andrade morreu! No mesmo dia (e quase a mesma hora) morreu também um outro vulto do nacionalismo angolano: Gentil Viana. A notícia correu o mundo apesar dos órgãos de comunicação social oficiais do país não terem dado a notícia. O que fizeram, dois dias mais tarde, foi publicitar um comunicado do partido da situação sobre a morte de Joaquim e de Gentil. Neste comunicado não passou despercebido o vampirismo simbólico (o sugar do sangue alheio) pela tentativa de recuperação simbólica destas duas figuras que se colocavam em dissidência clara com a política do actual poder e não precisavam das suas prebendas para se afirmarem como grandes nacionalistas e gozarem do prestígio social que lhes é merecido.

Pelo mundo, vários foram os textos escritos a propósito dessas duas grandes figuras do nacionalismo angolano. As penas orientaram-se para o facto de que o destino fez com que os dois vultos da nossa luta que foram companheiros em vida finassem no mesmo dia. Alguns lembraram-se também de que os pais deles, José Cristino Pinto de Andrade e Gervásio Viana também já tinham sido companheiros, ao fundarem, com António de Assis Júnior e Sebastião José da Costa, a Liga Nacional Africana, em 1930.

Ambos são indiscutivelmente nacionalistas notáveis e tinham uma visão social da independência. Para eles a luta de libertação nacional devia conduzir o país à independência política mas também à independência económica e, sobretudo, à libertação social através da transformação da riqueza nacional em bem-estar social.

Mas apesar das muitas semelhanças e ideias partilhadas que fez deles companheiros de movimento de libertação e de dissidência no interior desse movimento, Joaquim Pinto de Andrade destacava-se pela sua maneira peculiar e, de certa forma, “atípica” de estar na política. E isto, apesar de ter estado na origem das suas aparentes derrotas no campo da política, faz dele um homem excepcional, resolutamente entregue a sua fé e ideais, sem nunca se mostrar dogmático, fundamentalista ou arrogante.

Como nacionalista era um apaixonado, irreverente, determinado e sólido nas suas convicções de libertação - uma libertação que fosse do “homem e de todo homem”. Era absolutamente um libertário e progressista. Em Portugal, quando aí esteve preso e depois exilado, as suas relações foram privilegiadas com os “católicos de esquerda” que se mobilizaram na acção anti-colonial e se celebrizaram pela atitude emblemática da Igreja do Rato. Jacques Delors, o católico e socialista francês que foi um dos obreiros da Comunidade Europeia e que esteve longo tempo a frente da sua Comissão, era uma das suas referências, porque tinham pontos comuns: o carácter impoluto, a maneira de estar na política ao serviço da comunidade, sem nenhuma pretensão de poder ou habilidade de manipulação, a franqueza, a lucidez e o compromisso com o social.

Joaquim Pinto de Andrade estava na política sem nenhuma vocação de poder. A política para ele não era a luta pelo poder. Para ele a política era a boa gestão da res publica e, sobretudo, a participação dos cidadãos. A responsabilidade e a partilha de tarefas para o bem comum. O poder para ele era uma coisa irrelevante em si. Apenas tinha sentido na medida que era um meio de resolução dos problemas da polis. O poder era para ele, não uma relação de dominação mas uma tecnologia de administração do interesse colectivo. Lembro-me que um dia, nos idos de 1991, já presidente da ACA (Associação Cívica Angolana) quando havia uma forte pressão para que tivesse um papel político mais relevante, aceitando a ideia de ser candidato presidencial, agastado com uma pequena intriga, virou-se para mim e disse: “estou a pensar abandonar tudo isto e dedicar-me aos meus livros! Tenho tantos livros para ler”. Recebi estas palavras como um soco no estômago, porque eu era um forte apoiante da sua candidatura às eleições presidenciais que se previam no âmbito dos acordos de Bicesse. Tínhamos feito a ACA (1990) que era uma associação muito importante para a abertura do espaço democrático no país, embora não gozasse da simpatia de nenhum dos beligerantes da altura, mas sentíamos a necessidade de evitar a bipolarização guerreira que polarizava a política na ideia da oposição entre o “nós e o inimigo” (Carl Schmitt) que era preciso aniquilar.

Nesse contexto, o Joaquim surgia como uma figura de “recurso nacional”, uma referência moral para o país que não tinha as mãos manchadas de sangue, que poderia garantir uma reconciliação plena no respeito das diversas identidades. Naquela altura, estávamos convencidos que o país, fortemente deprimido pela ditadura e traumatizado por uma guerra civil (e de ocupação estrangeira) tinha tudo a ganhar tendo um Presidente reconciliador, tolerante, solidário, íntegro, com desapego ao poder, culto e cultor das belas artes. Quando os sul-africanos elegeram Nelson Mandela pensei que nós tínhamos perdido uma grande oportunidade.

Ao ouvir aquelas palavras, a minha primeira reacção foi de descrédito e, a seguir, pensei: “como assim, então nós andamos a dar tudo de nós para o eleger e ele troca tudo isso pelos seus livros”? Mas, compreendi depois que não era por egoísmo e/ou desinteresse que o Joaquim iria tudo abandonar para se dedicar aos seus livros. Era porque a ele desgostava a politiquice, a canalhice em nome da política, essa ideia estúpida de que a política é a arte de bem mentir (de manobrar). A sua atitude era de entrega, de crença, de confiança nos outros, de transparência. Para ele a política era a arte de bem servir a comunidade: a arte de tornar possível o necessário. Na sua concepção libertária da política, não tinha nenhuma consideração pelo poder. Este era uma espécie de “colete-de-forças”, um “sacrifício” necessário porque se revelava como instrumento indispensável para realizar a mudança.

As suas palavras ganharam maior sentido, mais tarde, quando vi Léopold Senghor falar na televisão francesa do facto de deixar a presidência da República, no Senegal, para ocupar um lugar na Academia de Ciências, em Paris. Lembrei-me do Joaquim. Na verdade, toda esta sua concepção da política sendo, ao mesmo tempo, platónica (no bom sentido do termo, que têm a ver com a “cidade ideal”, de Platão, como base da sociabilidade humana e do bom governo) e rousseauista (no sentido de que o cidadão deve ser o centro do poder) está explicada no seu livrinho sobre “O compromisso político-social do cristão” (edição da CEAST, 1991). Com uma precisão: Joaquim, apesar de nacionalista, tinha no centro da política o Homem, fazendo jus ao universalismo que caracteriza a modernidade angolana. Este era o princípio e o fim da política. Por isto também, a sua concepção de política não podia deixar de ser ética. Desde sempre foi um defensor da ética da responsabilidade. Nunca para ele os fins justificaram os meios. Os agentes são sempre responsáveis pelas suas acções independentemente da virtude das suas razões, mesmo quando eles são motivados por interesses revolucionários.

Nunca se deixou tentar por regimes autoritários e a sua leitura era de escritores de liberdade: Ignazio Silone, Ítalo Calvino e muitos outros. Era um conhecedor da literatura angolana, portuguesa, brasileira e de outros países, nomeadamente africanos. Afinal, ele começou cedo, não só a ler mas a conviver com os grandes escritores africanos, a partir do “Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros”, reunido de 19 a 26 de Setembro de 1956, na Sorbonne, em Paris.

Joaquim Pinto de Andrade era pois a política na sua essência, ou seja, o cidadão atento e participativo.
Nelson Pestana (Bonavena)
(texto publicado no semanário Agora)

Sem comentários:

Enviar um comentário