segunda-feira, 24 de março de 2008

REVISITAR MARX SEM LEGITIMAR O TIO PATINHAS

"A revisitação de Marx pode assim redundar numa rápida e (in)oportuna legitimação do anti-Marx (o tio Patinhas), na sua versão mobutista, pois há uma dialéctica da desigualdade, entre a pobreza da grande maioria e a riqueza extrema de alguns que não deve objectivamente (sem nenhum juízo de valor) ser obnubilada."
(artigo de Nelson Pestana (Bonavena), publicado no Agora, 570, de 22 de Março de 2008)

Creio que é quase ocioso dizer que depois de Marx muita água já correu sob as pontes dos estudos sobre as formas de organização social e da sua evolução a que ele chamou de “Modos de Produção”. E que muito capitalismo já foi produzido pela “auto-administração das coisas” como o próprio Marx dizia. Na verdade, os novos capitalismos e capitalistas encontram a sua riqueza no domínio do saber, do talento e da inovação (e.g., a chamada “nova economia”) e não na herança de sangue. Aqui mesmo no nosso continente se constituíram capitalistas sem a marca do sangue (no sentido literal). O que não é de estranhar, pois, como o próprio Marx defendia, no seu pensamento dialéctico, “todos os fenómenos económicos ou sociais (…) são produto da acção humana e, portanto, podem ser transformados por essa acção. Não são leis eternas, absolutas ou naturais” (Michel Löwy, Ideologias e Ciência Social, 1999, Cortez Editora, p. 15).

Também me parecia evidente que na obra de Marx, nem sempre a reflexão académica marxeniana se afastou da subjectividade do marxismo militante. No entanto, malgrado a perspectiva economicista da sua obra, há uma análise histórica do advento do capitalismo, na “Crítica da economia política”, em que se distingue claramente o período pré-capitalista, onde ainda não há livre concorrência. Numa palavra, um período em que o liberalismo económico (que é a matriz genética do capitalismo) ainda não é dominante, apesar da existência do mercado. A este período que se caracteriza pelo facto de toda a economia estar subordinada aos interesses de potência do Príncipe, quer reais (internos e externos) quer simbólicos, Marx chamou mercantilismo.

Parece-me que aqueles que são referidos como “os capitalistas angolanos”, tal como são descritos não são senão uma “lumpen-burguesia” e não propriamente uma burguesia. Poderão vir a engrossar uma burguesia nacional que se caracteriza pela sua relação, não somente ao capital mas também ao trabalho. É que não basta ser rico para se ser burguês. E pode-se ser burguês sem se ser capitalista.

Num artigo académico que escrevi sobre o poder e a diferenciação social em Angola dizia que os novos-ricos angolanos ligados às formas de apropriação pelo poder (não somente político-administrativas mas sobretudo político-económicas) constituem "uma classe, uma “lumpen-burguesia” arrogante e exibicionista, que partilha a avidez da rapina e tem no centro dos seus interesses e poder um sistema clientelista alargado, cuja tendência transnacional a tem levado à internacionalização dos seus interesses e a uma procura hegemónica regional, pois, estabeleceu-se entre os seus elementos “uma solidariedade de interesses que os une ou lhes impõe uma estratégia comum” [George Balandier, “Problematiques des classes sociales en Afrique noire”, Cahier International de Sociologie, vol. XXXVIII, pp. 131-142].

Não há da minha parte uma divergência na descrição desse grupo social pois para mim “a economia política de poder real representa uma concreta diferenciação de recursos, de formas de apropriação e acesso a esses recursos e uma correspondente maneira de estar na vida que engendra uma progressiva estratificação da sociedade, já que esse modo de dominação está ligado a modos de acumulação, em concreto, que são permitidos por privilégios fiscais e cambiais (legais ou de facto), pelo acesso privilegiado a mercados e negócios, aos financiamentos do Estado, a empréstimos bancários, bolsas de estudo e outras alocações de riqueza”. (Nelson Pestana, “Abordagem metodológica das classes sociais em Angola”, Lucere – revista académica da UCAN, nº. 2, Junho 2005). No entanto, é preciso não confundir a “lumpen-burguesia” com a burguesia que tem a sua origem não no sangue (a não ser de forma indirecta) mas no tecido produtivo nacional e que tem sido impedida de concretizar o seu papel liderante no espaço da economia produtiva e de serviços, precisamente porque esse espaço é colonizado pela lumpen-burguesia predadora. Bastava lembrar que segundo o próprio Marx, a génese do capitalismo tem na fábrica a sua figura emblemática. Ora, a lumpen-burguesia angolana abomina a fábrica e a combate, opondo-se ao empreendedorismo da burguesia nacional que se constituiu a partir da elite dirigente do tecido produtivo socialista (nomeadamente, das Unidades Económicas Estatais, as já esquecidas UEE’s) e da criatividade dos quadros pouco acarinhados nas estruturas estatais e, depois, marginalizados pela ideologia da predação radical. E, para além da predação directa, nomeadamente através da exploração intensiva dos recursos naturais e humanos, por pessoa interposta, ela prefere agora a agiotagem, a rapina ou a prestação de serviços em sistema de monopólio, em flagrante “concorrência” desleal com o empreendedorismo nacional.

Longe de adoptar formas de trabalho e de organização modernas e modos gregários sociáveis, a lumpen-burguesia, às vezes de forma consciente, reinventa uma linhagem que é constituída por “redes de famílias ligadas ao poder por meio de casamentos, relações comerciais, ligações políticas e altos cargos nas forças de segurança, na administração” [Tony Hodge, Angola do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Lisboa, Principia, 2003:186] e nas empresas públicas estratégicas. Esta “linhagem” caracteriza-se, como dizia Henrique Abranches, por ser “essencialmente social e cultural”, sobrepondo-se à condição de classe que é, segundo o mesmo autor, “essencialmente económica e social”. A “nova linhagem” é investida como uma falsa tradição ao serviço da classe dominante através, sobretudo, do monopólio da enunciação (o “Canal 2” é uma das suas concretizações mais recentes, não é apenas uma questão económica, faz parte do actual arquétipo de dominação).

Por isto, a compreensão do mercantilismo (e não capitalismo) angolano não passa necessariamente pela determinação da classe social ou grupo de pertença mas sobretudo pela compreensão da estrutura e do funcionamento do aparelho de controlo da produção da riqueza. Este é o instrumento que permite ao Chefe e ao seu grupo impor o seu poder e fazer com que os súbditos o aceitem. E, por isto, o aparelho político de poder aparece como sendo menos um reflexo do poder económico e mais como um seu elemento constitutivo. Aqui, como se pode facilmente perceber, inscrevo-me em absoluta oposição ao determinismo económico de Marx que fazia do político uma emanação do económico na sua célebre passagem segundo a qual: “na produção social de sua existência, os homens estabelecem determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento das suas forças produtivas. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se erguem as super-estruturas jurídica e política que correspondem a formas determinadas da consciência social”.
A minha filiação vai no sentido de Mamdani que faz do seu terreno de análise “menos o modo de acumulação que o modo de dominação” [Mahmood Mamdani, Citizen and Subject – Contemporary Africa and Legcacy of Late Colonialism, Princeton, Princeton University Press, 1996], o quer dizer que há uma dependência do modo de acumulação em relação ao modo de dominação e que o abandono dos actuais modos de acumulação, implica uma mudança nos mecanismos e no funcionamento do modo de dominação. O que significa que seria preciso que a elite política dominante deixasse de utilizar “em toda lógica, o poder que [tem]; o controlo político (o Estado) para vigiar o acesso aos negócios, isto é, para determinar a natureza das oportunidades”[Anyang' Nyong'o 1995:34]. Por outro lado, para a “lumpen-burguesia” (satisfeita com os actuais níveis de acumulação) aceitar ser a alavanca da criação de uma “classe média” implica também abandonar a ideia e prática de que “a inserção dos grupos sociais subordinados no campo político traduz-se [na] adesão ao poder” [Bayart, 1992], ou seja, na imposição do “consentimento dos dominados à sua dominação” [Godelier, 1977:50].

A revisitação de Marx pode assim redundar numa rápida e (in)oportuna legitimação do anti-Marx (o tio Patinhas), na sua versão mobutista, pois há uma dialéctica da desigualdade, entre a pobreza da grande maioria e a riqueza extrema de alguns que não deve objectivamente (sem nenhum juízo de valor) ser obnubilada.

PS: E, a propósito de juízo de valor, será que apresentar o sistema do “débrouillez-vous ”, através do qual a minoria, pela sua posição privilegiada no aparelho de Estado, conseguiu acumular estrondosa riqueza, como uma fatalidade histórica irrefutável, não é a formulação de um juízo de valor? Não é próprio do normativismo autoritário que tem sempre razão?

Sem comentários:

Enviar um comentário